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A Humanização da Humanidade na História da Europa Moderna

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 69-81)

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Os Passos em direção à Modernidade

O novo conceito de homem que evoluiu durante a era axial lançou as bases para o surgimento de dois novos fatores que se revelaram decisivos para a última época no desenvolvimento da humanidade: a racionalidade científica e a secular (ou seja, não definida e legitimada em termos religiosos) de ordenação da vida social. As ciências naturais e, mais tarde também, as ciências humanas e sociais foram fundamentais para desmistificar o natural, assim como o mundo humano. Isto foi aplicado em igual medida às regras fundamentais da vida social e à ascensão concomitante da democracia como a regra de princípio organizador. Essa nova cultura de uma sociedade civil secular e do conceito de humanidade vai ao encontro de sua expressão mais adequada na formulação de Kant, de que cada ser humano é um fim em si mesmo e nunca apenas um meio para os fins de outras pessoas, isto porque ele é dotado de uma dignidade inalienável. Esta dignidade se institucionalizou nos direitos humanos e civis, os quais formaram a base sobre a qual foi sustentada a constituição política das sociedades modernas recém-formadas.

Foi nesta sociedade civil secularizada que o humanismo moderno emergiu como o fundamento de toda a orientação cultural. Em sua manifestação específica (sumarizados acima), é o resultado de um desenvolvimento, a longo prazo, na história da civilização ocidental durante a época moderna. Nos parágrafos seguintes, gostaria de delinear este desenvolvimento sob a forma de uma tipologia complexa de várias das principais tendências da história.23

A Humanização da Humanidade na

História da Europa Moderna

O alvorecer da Era Moderna foi marcado pelo surgimento de vários tratados novos em filosofia e em teologia a respeito da “a humanidade como tal”, sua dignidade, seus riscos, bem como o seu potencial. O Oratio de hominis dignitate (Discurso sobre a Dignidade do Homem) de Giovanni Pico della Mirandola, de 1486-1487, tornou-se famoso neste 23 Esta descrição é baseada em observações pertinentes à Enciclopédia da Era Moderna: RÜSEN, Jörn/

JORDAN, Stefan: “Mensch, Menschheit”, in: JAEGER, Friedrich (Ed.): Enzyklopãdie der Neuzeit, vol. 8: Manufaktur-Naturgeschichte, Stuttgart, 2008, pp. 327 - 340.

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contexto.24 No início do século XVII, o termo “antropologia” foi criado. A Era Moderna, no entanto, é também marcada pela ideia de que o conceito de humanidade tornou-se um assunto de muita controvérsia, o que resultou em diversas reflexões sobre a sua natureza cada vez mais plural e divergente. No século XVII, a disciplina da teologia, que inicialmente manteve o monopólio da definição de como é o homem, foi substituída pela filosofia, com a qual, por sua vez, passou a competir com o discurso antropológico da jurisprudência, da medicina e das novas ciências. Mas, deixando o nível de reflexão teórica de lado, foi também no campo da própria prática cultural que as mudanças no conceito de homem ocorreram: as áreas religiosas, políticas e sociais da atividade humana; desde o século XVII, na literatura e nas artes visuais, que se tornaram cada vez mais autônomas; E, finalmente, na tecnologia, que, com base em conhecimentos científicos, tornou-se cada vez mais dominante na vida cotidiana e deu origem ao tipo humano chamado homo faber, ou seja, o homem pensado apenas em termos do que é tecnicamente viável. Além disso, o conceito de humanidade foi muito influenciado pelas mudanças na vida material das pessoas que eram, devido aos avanços na tecnologia, e, posteriormente, na produção industrial, marcados pelo êxito da luta contra a fome, a doença, a mortalidade infantil etc., bem como pelo crescimento da população resultante disso, além das consequências da migração e da expansão colonial da Europa.

A compreensão moderna da humanidade repousa sobre o embasamento tradicional da humanidade em alguma autoridade transcendental, por meio de uma nova qualidade humana, ao transferir a qualidade espiritual implícita nesta autoridade para a ideia do homem em si.25 Este processo é de uma relevância histórica universal e só pode ser comparado com as mudanças revolucionárias no conceito de humanidade nas eras axiais: pode-se definir este processo moderno, como a humanização da humanidade, no entanto, sem, ao mesmo tempo, assumir que esta equivale — no sentido do progresso moral — ao desaparecimento da desumanidade. A “humanização” refere-se, em vez de uma mudança na compreensão que a humanidade tem de si mesma, ao processo que pode ser concretizado e diferenciado como: 1) secularização, 24 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni: Oratio de hominis dignitate. Rede über die Würde des Menschen, Latin-German, ed. and transl. by Gert von der Gönna, Stuttgart, 1997. MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70, 2006.

25 VAN DÜLMEN, Richard (Ed.): Entdeckung des Ich. Die Geschichte der Individualisierung vom Mittelalter bis zur Gegenwart, Cologne, 2001.

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2) universalização, 3) naturalização, 4) idealização, 5) historicização, 6) individualização.

a) A Secularização

Na Era Moderna, a autonomia de um homem agindo como sua própria autoridade estava em conflito com os preceitos religiosos de orientação cultural. A doutrina cristã tradicional da salvação, e sua interpretação religiosa do mundo, foi incapaz de manter seu ritmo com o crescente estoque de conhecimento fornecido pelas ciências e pelas humanidades. No século XVII, a interpretação tradicional do mundo se diferenciou em diversas áreas do conhecimento em que as explicações empíricas, sem qualquer referência a uma autoridade transcendental, tornaram-se cada vez mais relevantes para a percepção da própria humanidade. O exemplo mais flagrante disso é a virada copernicana nas ciências, o que pode ser considerado como uma revolução filosófico-científica dirigida contra a antiga visão de mundo geocêntrica do que era “natural” e sancionado pela Igreja cristã.

O retorno à antiguidade clássica era de importância decisiva para este processo de secularização. Desde o Renascimento e os movimentos humanistas a ele associados, o humanismo tem desempenhado um papel vital na formação do conceito intelectual que as classes educadas têm de si mesmas por toda a Europa.26

Sem cair completamente no esquecimento como uma fonte de significado, a religião cristã, no entanto, apresentava alguma autoridade interpretativa no que diz respeito ao fornecimento de alguma orientação em relação ao aqui e agora. Moral e intelectualmente desacreditada por várias guerras civis devido a motivos religiosos, as igrejas cristãs no século XVII foram submetidas a uma crítica da religião, tendo como consequência a subjetividade do homem moderno que, anteriormente, tinha sido fundamentada na religião cristã, enquanto agora passa a ser definida em termos exclusivamente seculares. Reivindicações a partir de verdades religiosas, que tinham encontrado a sua expressão em várias denominações (articulações “positivas” da fé), foram substituídas por uma moral universalmente humana cujas bases foram formadas pela lei da razão (por exemplo, no drama filosófico de G. E. Lessing “Nathan der 26 Cf. CANCIK, Hubert: “Die Rezeption der Antike - Kleine Geschichte des europaischen Humanismus”, in: RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus. Menschlichkeit in der Vielfalt der Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009, pp. 24- 52.

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Weise” (“Nathan, o Sábio”), de 1779, com sua “Parábola do anel”).

Como essa orientação cultural secular da moralidade da vida humana veio à existência, derivou-se daí sua autoridade na sociedade civil. Neste contexto, a fé religiosa foi concebida como uma questão meramente privada por causa da lei fundamental da tolerância. Devido à influência do Iluminismo, a compreensão secular do homem como um ser que pode dispor livremente do seu mundo, de acordo com os preceitos da razão, tornou-se o alicerce cultural da sociedade civil moderna.

b) A Universalização

Com o aumento do conhecimento fornecido pelas ciências humanas e naturais, a ideia da unidade da raça humana teve de ser revista. Na teoria racial, foi possível abandonar, por um tempo, o conceito unitário por completo, por exemplo, em La-Peyrêre, Voltaire, E. Long ou Ch. Meiners.27

No final, no entanto, o reconhecimento da unidade monogenética da humanidade prevaleceu contra a ideia de sua poligenia.28 Este quadro geral sobre o que os seres humanos têm em comum foi preenchido com o crescente conhecimento da multiplicidade das formas culturais da vida humana, como nos referiremos adiante. Os relatos de viagem desempenharam, especialmente, um papel importante nesse processo, porque com a descrição das formas de existência humana em áreas do mundo até então desconhecidas, conseguiu-se questionar a afirmação global da universalidade do homo europaeicus. Por um lado, o conceito de humanidade teve de ser adaptado ao crescente conhecimento do mundo que havia sido acumulado desde o início da era moderna e, por outro, o conhecimento recém-adquirido teve de ser integrado na tarefa de desenhar uma imagem atualizada e generalizante da humanidade.

A interpretação da diferença cultural continuou a ser regida pelo pressuposto típico de que todos os homens foram naturalmente dotados com a capacidade de escolher livremente, bem como racionalmente, a sua identidade cultural. Essa hipótese se tornou parte da cultura política na forma dos direitos humanos codificados que se voltaram para um debate 27 LA PEYRERE, I.: Prae-Adamitae, 1655 (Reprint: Kessinger Publishing, 2009); VOLTAIRE: Essai sur les moeurs et l’esprit des nations et sur les principaus faits de l'histoire depuis Charlemagne jusqu'a Louis XIII, 1756 (repr.: Paris, 1963, 2 voIs.); LONG, E.: History of Jamaica, 1774 (new print New York, 2009); MEINERS, Ch.: Grundriβ der Geschichte der Menschheit, Lemgo, 1785.

28 A antropologia de Johann Friedrich Blumenbach era típica em relação a isso, bem como altamente influente em termos discursivos. (De generis humani varietate nativa liber, Göttingen, 1775). Sobre o contexto histórico e cultural Cf. REILL, Peter Hanns: Vitalizing nature in the Enlightenment, Berkeley, 2005.

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duradouro sobre os direitos naturais. A história desta cultura se estende desde as modernas constituições democráticas, que ainda estavam confinadas às nações individuais, a todo o caminho até a “Declaração Geral dos Direitos Humanos” proposta pela Organização das Nações Unidas em 1948, a qual incluiu toda a humanidade.

Este valor correspondeu a uma quebra em relação à assimetria etnocêntrica da maneira em que a identidade cultural foi constituída, e que a inclusão ou exclusão foram acusadas de defender diferentes valores positivos ou negativos. Mesmo que as culturas ocidentais afirmassem processar padrões civilizatórios mais elevados do que outras culturas, a legitimação da exploração e repressão que vieram junto com ela eram claramente limitadas — pelo menos no que se referia à reflexão teológica, filosófica, jurídica e moral. Ao atribuir aos “outros” certas qualidades humanas, incluindo-os também na raça humana, o seu tratamento bárbaro era (em nome de uma civilização superior) colocado abertamente à crítica à luz dos padrões humanos mínimos, e em nome de um tipo de civilização mais elevado, que por sua vez significava que poderia ser limitado por meios legais.

As regras políticas dos homens sobre os outros homens assim ficaram restritas em termos teóricos, e sua legitimidade se pôs como uma premissa para a liberdade fundamental de cada indivíduo submetido a tal regra. Isso implicou numa reivindicação fundamental na participação no poder político. A humanização moderna do homem teve seu apogeu político, especialmente na Europa e nos EUA, na evolução dos direitos humanos e civis, constitucionalmente consagrados e sancionados, os quais continuam vigentes até o presente.

Como os direitos humanos, por definição, foram derivados e pertencem a toda a raça humana, eles também poderiam ser reivindicados pelas pessoas que, seja por conta da falta de liberdade real (por exemplo, no caso de repressão) ou a falta real para alguns da definição básica do elemento da humanidade (por exemplo, da razão, no caso de crianças pequenas, ou deficientes mentais ou morais, no caso, de desvios sociais), não foi alcançada uma definição padrão de um ser humano livre, razoável e ético. Ao mesmo tempo, o processo moderno de regulamentação das regras políticas e vida social por meios constitucionais, que começou na Europa Ocidental e nos EUA, tornou-se, em algum grau, globalizado.

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c) A Naturalização

Desde o início da Era Moderna, o homem descobriu a si mesmo em termos do contraste acentuado e da mediação dialética entre o seu estatuto como um ser natural e intelectual, tudo ao mesmo tempo: por um lado, tornou-se, assim, uma coisa, isto é, um objeto corpóreo da análise racional e, com base nisso, de dominação tecnológica e manipuladora. Por outro lado, tornou-se o senhor da dominação e da manipulação. Esta distinção deve-se ao fato de que o homem, ao estudar a si mesmo, nunca pode descrever-se como tal, mas sempre apenas em termos relacionais: por causa de suas qualidades naturais como um animal e por causa de suas particularidades espirituais enquanto um ser relacionado com Deus. O homem, assim, foi dividido em um objeto de observação científica, por um lado, e em um ser espiritual, por outro.

René Descartes expressou esta dicotomia na relação do homem consigo mesmo e com o mundo numa fórmula altamente relevante através da diferenciação entre “res cognitas” — uma substância exclusivamente intelectual ou um espírito não corpóreo — e “res externa” — um mero pedaço de matéria. Como res extensia, o homem foi considerado em pé de igualdade com os objetos materiais do mundo, especialmente os do não pensamento, e, portanto, poderia ser objeto de investigação científica.29

A dimensão científica que a reflexão sobre a humanidade adquiriu através disso pode ser vista como um aspecto especial do processo de naturalização e de racionalização. A ciência passou a cuspir uma variedade de disciplinas especializadas. Até o final do século XVIII, isso resultou numa distinção relativamente rígida entre a observação puramente científica da humanidade (por exemplo, na biologia e na anatomia) e a interpretação das ciências humanas (especialmente em filosofia e em teologia). Pelo final do século XVIII, ambas as abordagens foram unidas sob a forma de uma filosofia de vida global. O espírito que pertencia exclusivamente ao homem foi agora concebido como uma unidade ou força singular que transforma e completa-se com o objetivo de moldar o mundo humano (por exemplo, J. E. Blumenbach e J. G. Herder). O Humanismo clássico, — como, por exemplo, o proposto por Herder ou pelos irmãos Humboldt, mas especialmente por Goethe — foi a tentativa de se reconectar a cultura humana, que havia sido criada pelo espírito não-material, à natureza material, dando assim a esta última uma dimensão “humanitária” repleta 29 DESCARTES, R.: Meditationes de prima philosophia. Meditationen über die erste Philosophie. (Latin/

German, ed. v. Gerhart Schmidt), Stuttgart, 1985 (DESCARTES, R. Meditações sobre Filosofia Primeira. Campinas: UNICAMP, 2004).

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H umanis m o cl áss ic o — u m le vant ament o his ric o de significados normativos.

Desde a metade do século XIX, novas áreas da ciência vieram à existência na interface com os conceitos naturais e culturais da humanidade, a partir de novas abordagens metodológicas, especialmente de natureza analítica, tais como a etnologia, a psicologia, a psiquiatria e a sociologia. Devido ao foco específico dessas disciplinas, a compreensão das formas de vida humana foi ampliada ao ponto de se tornar um estudo mais interpretativo, embora os estudos especializados e metodologicamente heterogêneos das ciências humanas tenham superado as antigas ciências humanas com o paradigma hermenêutico da interpretação textual.

d) A Idealização

Concomitante e num intercâmbio complexo com a visão naturalizadora da humanidade, a tendência histórica da idealização evoluiu, por meio do conceito de natureza humana, que assumiu um caráter nitidamente espiritual. Nesse processo, a tradição religiosa do homem enquanto feito à imagem de Deus foi transformada, para se tornar uma forma de divindade secular e mundana do homem; isso foi caracterizado por termos como “espiritualidade”, “bom senso” (em oposição à razão) e “pessoa”. Quanto mais cedo os pensadores neoplatônicos do século XV, como Nicolau de Cusa e Marsílio Ficino viram o ser humano como um artista, um “alter deus” era capaz de espalhar a luz divina na natureza e, assim também, na natureza humana.

Os primeiros artistas do século XVI, como Leonardo da Vinci e Albrecht Dürer, criaram suas obras de acordo com essa ideia. O homem agora não só foi considerado como o objeto reificado de análise e explicação racional (e, consequentemente, dominado pela tecnologia), mas ao mesmo tempo figurou como tema no papel de “maitre et possesseur de la nature” (Descartes).30 Mesmo o ser humano estando reificado como um cadáver vivissecado e como uma fonte de percepção científica, acabou tornando-se um objeto de fascínio estético, especialmente no que diz respeito ao próprio ato da vivissecção, por exemplo, em Rembrandt em “A anatomia do Dr. Tulp” (1632). Leonardo, que realizou a vivissecção de cadáveres, representou a figura humana como um objeto espiritual da mais alta ordem. A explicação mais abrangente desta espiritualização do 30 DESCARTES, René: Discours de Ia méthode, 1637 VI, S. 2 (Discours de Ia Méthode, 6e partie. Paris, 1966, p. 168; German translation: Abhandlung über die Methode, transl. Arthur Bu- chenau, Leipzig, 1919, p. 51). DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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homem como um ser natural foi concebida pelo idealismo alemão.

A pré-condição histórica mais importante para este conceito antropológico ligado à personalidade moral era a ideia do homem que foi feito à imagem de Deus, além da prática religiosa — sobretudo no protestantismo — da relação pessoal e direta com Deus. “Estar diante de Deus” tornou-se agora parte do conceito da própria humanidade. Assim, por exemplo, Dürer deu traços semelhantes aos de Cristo no seu autorretrato de 1500. Esta interiorização da relação com Deus, da parte do sujeito individual, levou à ideia da subjetividade humana, que é marcada pela liberdade de consciência e de ação autoresponsável. O homem agora se torna consciente de sua capacidade de se afundar no status de um animal ou de ascender às esferas de Deus por meio de suas próprias ações. A autonomia cultural da humanidade resultante deste ato de emancipação religiosa com relação à determinação de si e de seu mundo foi sucintamente expressa por G. Pico della Mirandola (1486), quando, por ocasião da criação do mundo, ele faz Deus dizer para humanidade: “A natureza limitada dos outros está circunscrita pelas leis que eu lhes passei. Não afetado por quaisquer restrições você deveria determinar sua própria natureza de acordo com sua própria vontade, cujo poder eu lhe emprestei”.31

O conceito de natureza espiritual do homem também se manifestou na fundação sistemática de auto- interpretação humana. Isto é evidente na virada hermenêutica das ciências humanas, no final do século XVIII para o início do século XIX. Tomaram os impulsos a partir da filosofia da vida e racionalmente evoluíram em um método específico para investigar o mundo humano na variedade de suas manifestações históricas.32 As culturas humanas, então, passaram a ser objeto de pesquisas interpretativas, teoricamente fundamentadas em um “método de compreensão sistemática” (Johann Gustav Droysen)33 e na autocompreensão da humanidade, os quais estava inextrincavelmente vinculados à capacidade de perceber e reconhecer a diversidade cultural de ambos em termos da cultura humana, produzida por causa da “orientação educacional” (Blumenbach) de todos os seres naturais — embora muito além dos limites da natureza. 31 Ver nota 24.

32 REILL, Peter H.: The German Enlightenment and the Rise of Historicism, Berkeley, 1975; REILL, Peter H.: Vitalizing Nature in the Enlightenment, Berkeley, 2005.

33 DROYSEN, Johann Gustav: Historik. Historisch-kritische Ausgabe, ed. Peter Leyh, vol. 1, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1977, p. 22 and others (DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009).

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Para Herder, que designou o homem como o primeiro “ser emancipado da criação”,34 a realização cultural humana se tornou mensurável pelo padrão de como ele percebeu o potencial de estar em choque com a sua “humanidade”. Na base desta concepção humanista do homem enquanto um fim em si mesmo, as ciências humanas evoluíram no final do século XVIII, ao mesmo tempo, com uma dupla abordagem: a antropológica e a histórica.

A estetização da percepção humana de si e do mundo constitui um processo separado nesse desenvolvimento. Nos meios da arte, as qualidades naturais e espirituais da existência humana se reconciliaram e esta síntese humanista da natureza e do mundo humano está harmonizada, de tal forma, que pode ser levada em linha de conta com a autodefinição

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