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Limites do Auto-Criticismo

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 142-145)

Gostaria de trazer a tradição humanista ocidental à atual discussão intercultural acerca de como lidar com o desafio da globalização, ao nível dos princípios de orientação cultural que sejam válidos ao nível transcultural. Para tal, é necessário aguçar a nossa visão sobre os seus limites e realizar o seu auto-criticismo. Embora tenha já indicado anteriormente alguns deles, eles devem ser listados de um modo mais sistemático:

Política e socialmente, o humanismo moderno tem o seu limite no problema insolúvel de assegurar um estatuto social para se ser membro da sociedade civil de pleno direito. Sem um estatuto social da pessoa que ganha a sua vida, todas as vantagens de dignidade humana não podem evoluir completamente. Adicionalmente, o Humanismo moderno tem de enfrentar o perigo da desigualdade social crescente, e, como consequência,

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uma dissolução do bom senso.

Intelectualmente, o Humanismo moderno encontra os seus limites (a) por não estar suficientemente consciente da desumanidade humana, (b) pela sua relação ilusória com a Antiguidade clássica, (c) por manter elementos etnocêntricos na sua ideia de Humanidade e História universal, (d) por um conceito limitado de razão, e (e) pela relação altamente problemática entre humanos e natureza.

Estes cinco pontos necessitam de uma breve explicação:13

a) O Humanismo clássico está consciente das potencialidades de cada ser humano se tornar desumano, suprimir, subjugar, instrumentalizar e desumanizar outros seres humanos. No quadro da antropologia e teoria da história idealista, este potencial de desumanidade foi negligenciado não tendo sido, portanto, tomado em conta de forma sistemática. Os seus seguidores acreditavam no progresso como um processo de longa duração humanização das condições de vida humana. Herder (1784-91, pp. 588f.), por exemplo, afirmou na sua Filosofia da história:

“O curso da história demonstra que, pelo crescimento de uma humanidade autêntica, os demónios destrutivos da raça humana foram realmente diminuídos.

Após os crimes contra a humanidade que culminaram no Holocausto, que deu ao século XX a sua assinatura histórica, tal otimismo tornou-se impossível. Só um humanismo que possa enfrentar o desafio destes crimes e encarar a face do Holocausto pode ser viável para uma orientação da vida humana dirigida para o futuro (Rüsen, 2008).

b) O Humanismo clássico teve de demonstrar que a sua ideia de humanidade era realista. Tal foi feito por uma referência básica à Antiguidade clássica. Os humanistas do final do século XVIII e início do século XX acreditavam que nesse tempo específico – sobretudo na Grécia clássica – tinha sido alcançado o pleno desenvolvimento das ideias sobre a forma de vida humana.14

Sabemos que tal não aconteceu, e que a razão histórica para a 13 Na apresentação seguinte, recorro a uma parte de um texto para publicação (Temporalizing Humanity – Towards a Universal History of Humanism. In: Rüsen, J., Spariosu, M. and Zhang, L. eds., 2011. Exploring Humanity – Intercultural Perspectives on Humanism. Bielefeld: Transcript [forthcoming]).

14 Encontra-se um exemplo em Humboldt, W. v., 1807. Über den Charakter der Griechen, die idealische und historische Ansicht derselben. In: A. Flitner and K. Giel, eds., 1961. Werke in fünf Bänden. Vol. 2: Schriften zur Altertumskunde und Ästhetik. Die Vasken. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, pp. 65-72.

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concretização do humanismo era uma grande ilusão.

c) O conceito humanista clássico de uma História universal pretendia dar espaço às diferenças culturais no curso da história sem o preconceito da superioridade ocidental. Contudo, este humanismo tinha de se colocar a si próprio no curso da história, e ao faze-lo não conseguiu evitar privilegiar a civilização ocidental, embora o seu criticismo do imperialismo ocidental seja evidente, principalmente no pensamento de Herder. E se lançarmos um breve olhar à caracterização dos Africanos na antropologia desse tempo (por exemplo, na antropologia de Kant), podemos ver uma parte de etnocentrismo que, com efeito, ainda existe.

(d) O pós-colonialismo trouxe um criticismo radical do conceito ocidental de razão. Essa corrente interpretou tal conceito como um meio de dominação, subjugando todas as outras formas de vida intelectual, que seguiram diferentes ideias de mente e espírito humano. O Humanismo clássico usou o conceito de razão mas não reproduziu simplesmente a atitude de governar o mundo inerente ao conceito moderno de razão. Em vez disso, o Humanismo atribuiu-lhe um potencial hermenêutico abrindo-se assim a uma nova consciência da variedade e diferença das formas de vida humana. Contudo, está ainda aberta a questão sobre se este potencial de compreensão é realmente livre em relação a qualquer vontade de dominação, e se ele abre suficientemente um espaço para o reconhecimento dessas formas de vida humana que não estejam comprometidas com este tipo de razão.

(e) Um aspecto do carácter problemático do conceito ocidental de razão encontra-se no seu modo de moldar a relação humana com a natureza, que é uma forma de dominação incondicional. Atualmente, tornaram-se evidentes as consequências catastróficas desta relação. O Humanismo ocidental não confirmou ou legitimou completamente esta atitude de dominação. Além disso, a sua ideia da relação humana com a natureza tem-se mostrado bastante vaga. Na penumbra desta ambiguidade, o Humanismo ocidental tradicional tem provado ser incapaz de desenvolver uma ideia acerca de como é a relação entre o ser humano e a natureza (Rüsen, 2006).

O desenvolvimento intelectual no ocidente após o processo da modernização mostrou uma renúncia progressiva à tradição do Humanismo embora haja várias tentativas para a sua renovação. O

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representante mais proeminente desse anti-humanismo é Friedrich Nietzsche. Essa renúncia culminou na ideia de que o homem se torna subjugado sob o efeito quer de não instâncias – ou de super instâncias como o super-homem – quer do “ser”, ou de estruturas anónimas da vida social ou mental. Isto foi o fim do movimento antropológico; o homem ‘descentrou-se’ do interesse filosófico de compreender o mundo.

Na política podemos observar correntes similares de enfraquecimento e descrédito da tradição de Humanismo: Houve, talvez, apenas um fraco protesto contra o poder de movimentos políticos desumanos como o fascismo e o comunismo. Pelo contrário: o comunismo até podia invocar a tradição do humanismo e subscrever o “humanismo real” para a supressão e aniquilação de formações e movimentos sociais que não se enquadravam na sua ideia de progresso histórico (Scherrer, 2011).

Nos tempos mais recentes, dois movimentos intelectuais contribuíram substancialmente para a marginalização e dissolução do Humanismo: a) o pós-modernismo negou qualquer abordagem aos valores universais, e b) o pós-colonialismo acusou a ideia ocidental moderna de legitimar a destruição de países não ocidentais. O Humanismo tem sido criticado como um meio para dominação política e de roubo da dignidade e autodeterminação aos outros povos e culturas. (será outra questão ainda ver se este criticismo fez ou não uso de princípios humanistas, confirmando assim o Humanismo no seu movimento contra ele próprio). Por fim, o sucesso fascinante da investigação biogenética e do cérebro apoiaram uma nova tentativa de substituir os modos de pensamento centrados na cultura (que incluem, evidentemente, o humanismo) por modos de pensamento centrados na natureza.

Uma nova abordagem com um propósito

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