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O que é o “Humanismo Clássico”

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 58-61)

Humanismo clássico — um

levantamento histórico1

Why? Who? Where am I? For happiness. A human being. On earth. G.E. Lessing2

O que é o “Humanismo Clássico”

Em nenhum lugar existe uma cultura na qual alguma ideia do que significa ser humano não desempenhou um papel importante na forma como os humanos constituem sentido e regulam suas vidas cotidianas. A ‘humanidade’ é um conceito que (entre outros) vêm a designar uma das manifestações de tal ideia. O humanismo, por sua vez, fornece um significado específico a esta ideia no que diz respeito à forma como os indivíduos, bem como a vida social, se torna significativa. Estes termos não são nada claros. Eles preferem cobrir um amplo espectro de significados, nos quais a maneira pela qual os seres humanos vivem suas vidas passou a assumir a finalidade prática de proporcionar alguma orientação cultural.3

Este espectro é demarcado por dois extremos: de um lado, a humanidade compreende a noção de tudo o que os homens têm em comum, como membros da espécie Homo sapiens. Esta base comum está menos preocupada com o equipamento natural do gênero, do que com as particularidades culturais humanas compartilhadas em seus diversos estilos de vida. O que está implícito é que os seres humanos, invariavelmente, desenvolvem as operações significativas para reordenar suas vidas. A ‘Humanidade’ num sentido geral define a essência do ser 1 RÜSEN, Jörn. “Classical Humanism – a Historical Survey”. In: ANTOHI, Sorin; HUANG, Chun-Chieh; RÜSEN, Jörn (ed.). Approaching Humankind – Towards an Intercultural Humanism. Essen-Germany/ Taiwan-China: National Taiwan University Press, 2013, p. 161-184. Tradução por Marcelo Fronza. As obras citadas pelo autor editadas em português foram referenciadas também nesta língua.

2 “Por quê? Quem? Onde eu estou? Pela felicidade. Um ser humano. Sobre a terra.” LESSING, Gotthold Ephraim: “Die Religion”, in: Werke, v. 1: Gedischte, Fabeln, Lustspiele, Darmstadt, 1996, p. 171.

3 Cf. e.g. GIUSTINIANI, Vito R.: "Homo, Humanus, and the Message of ‘Humanism’”', in: Journal of the History of Ideas 46.2 (1985): p. 167 -195.

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humano enquanto um ente culturalmente determinado. Por outro lado, essa definição se limita a uma forma específica dessa essência culturalmente definida, que, por sua vez, diz respeito a um elemento central do seu arranjo de normas. O termo ‘humanidade’, assim, adquire uma conotação decididamente normativa, para além da sua condição empírica. Ele sustenta a existência humana em alguns fundamentos, isto é, em referência à sua relação específica com a natureza e com o cosmos, a qual regula a forma como os seres humanos estão lidando um com o outro. A natureza cultural do ser humano, em sua forma mais extrema, fornece significados para a escolha constante da ação e do sofrimento humanos entre a desumanidade e a humanidade.

A forma mais pronunciada desta interpretação da humanidade é chamada de ‘humanismo’. Minha preocupação é a seguinte: tornar visível e compreensível esta variedade específica em relação ao seu contexto histórico. Em fazendo isso, estarei fundindo os seres humanos com a forma mais específica, ou seja, a do humanismo tal como tem se manifestado na cultura ocidental.

Eu considero o ‘humanismo clássico’ do final do século XVIII e XIX como a manifestação mais central desse fenômeno. Lidamos aqui com uma tendência universal que apareceu em toda a Europa, a qual, contudo, assumiu formas diferentes em seus diversos contextos regionais. Tzvetan Todorov expôs a variedade francesa do modo mais impressionante.4 Estou, portanto, focalizando a variedade alemã, que está inseparavelmente ligada aos nomes de Herder e Humboldt.5

A pré-condição intelectual para construir essa constelação está na antropologia do começo da história moderna. Aqui, pela primeira vez, a interpretação do homem e do mundo já não era baseada numa autoridade não humana de construção de significados (Deus ou a Natureza), mas 4 TODOROV, Tzvetan: Imperfect garden. The legacy of humanism, Princeton, 2002 (TODOROV, Tzvetan.

O Jardim Imperfeito: o Pensamento Humanista na França. São Paulo: EDUSP, 2005).

5 Esta definição historicamente específica do termo ‘humanismo’, não é a dominante na literatura

internacional sobre este objeto. Neste contexto, o termo é entendido no sentido de um lar filosófico do discurso que é típico do humanismo moderno inicial, ou seja, o modo como naqueles dias dos ‘humanistas’ (pessoas educadas na antiguidade clássica) cultivavam a ‘humaniora’ (as disciplinas intelectuais que investigavam e debatiam a antiguidade clássica) demarcando sua distância crítica em relação à lógica discursiva da escolástica e aos laços com o dogmatismo eclesiástico. A partir disso, pode ser concebida uma atitude intelectual mais geral perante a vida. Um exemplo disso é a definição de Edward Said do humanismo enquanto uma atitude liberal, abrangente e crítica das ciências humanas (“seja como abertura a todas as classes e origens, quanto um processo interminável de discursos, descobertas, autocríticas, e da libertação”, Humanism and Democratic Criticism, New York 2004, p. 28 e seg.). Nessa definição, o humanismo perde a sua especificidade histórica e se torna uma fórmula estilizada do liberalismo intelectual — além ficar privado de todas as manifestações concretas que existem por causa das circunstâncias históricas particulares.

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era referida apenas à humanidade em si, enquanto um objetivo final. Isso foi adequadamente expresso por Kant em sua famosa fórmula, segundo a qual as três questões fundamentais da filosofia, as quais também formam a diretriz geral para a orientação cultural dos seres humanos — o que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? —, convergem para a pergunta: o que é o homem?6

Este recurso da humanidade em si mesma, como a única fonte para a definição cultural do que é ser humano, só se torna humanista, no sentido mais verdadeiro, se e quando os sujeitos passam a ser objetos do valor específico como uma espécie enquanto princípio antropológico e se, sendo assim humanos, adquirem o status de uma norma absoluta, quando procuram regular toda prática humana.

O humanismo, na sua forma moderna, fusiona a dimensão empírica da experiência humana com um elemento normativo. Immanuel Kant formulou esta ideia em sua forma mais definitiva:

...O homem considerado como uma pessoa, ou seja, um sujeito com uma razão moral e prática, é exaltado acima de qualquer coisa, pois nessa qualidade (homo noumenon), ele não apenas é valorizado devido à realização para outras pessoas ou seus próprios fins, mas como um fim em si mesmo, isto é, é possuidor de uma dignidade (um valor interno absoluto) pelo que merece ser respeitado por todos os outros seres racionais, portanto, pode medir-se em relação a todos os outros deste tipo e estar em pé de igualdade com os mesmos.7

No humanismo clássico, a ‘humanidade’ é considerada como o critério último de qualquer operação de criação de sentido e, como tal, é concebida em duas aplicações universais, tanto em um sentido empírico (que engloba toda a humanidade existente no espaço e no tempo), quanto em um sentido normativo (atribuindo a cada sujeito a dignidade de ser seu próprio fim).

Este critério de significado também é posto em jogo enquanto um critério de legitimação das regras políticas. O humanismo, entendido como uma variedade política da fundação legal do Estado, é formado por direitos humanos e civis. Esta universalidade é, ao mesmo tempo, um 6 KANT, Immanuel: Kritik der reinen Vernunft 1781, 2nd ed. 1787, A 805, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm WEISCHEDEL, vol, 4, Darmstadt 1968, p. 677 (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.); KANT: Logik A. 26, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm WEISCHEDEL, vol. 5, Darmstadt 1968, p. 448) (KANT, Immanuel. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

7 KANT: Metaphysik der Sitten A 93, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm Weisehedel, voI. 7, Darmstadt 1968, p. 569). (KANT. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003).

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historicismo universal; assim como por princípio, o homem e o mundo são interpretados e compreendidos a partir de critérios históricos.

Para cada ser humano e para cada modo particular de conceber a sua vida, esse tipo de humanismo assume uma forma específica: a da individualidade.

A qualidade universal, bem como a individualizada, de cada ser humano só é conceitualizada enquanto um potencial antropológico; sua realização está condicionada à implementação de um processo individual, o qual, ao mesmo tempo, tem uma dimensão social. Este processo pode ser categorizado sob o nome de ‘educação’, (em alemão “Bildung”).

Todas estas particularidades são os elementos essenciais que caracterizam o humanismo moderno como uma construção intelectual. Mas, isso é mais do que apenas uma simples ideia. Já está institucionalizado na forma de vida da sociedade civil burguesa. A convicção de que toda crença religiosa, em suas diversas manifestações históricas e em suas divergências com outras crenças, pode ser integrada numa ordem social secular que obriga todas as religiões conviverem pacificamente (“tolerância”), é um aspecto indispensável desta forma de vida.

As humanidades são concebidas pelo humanismo como um sistema organizado de interpretações, que podem reivindicar certo grau de validade universal. Os direitos humanos e civis, tal como estão consagrados nas constituições modernas, podem ser considerados como a instituição mais poderosa do humanismo moderno, e o que não é menos importante, por causa da reivindicação de sua validade universal.

No que se segue, proponho uma interpretação do conceito de humanismo dentro de uma perspectiva histórica, ou seja, gostaria de posicioná-lo dentro do quadro temporal no qual deve ser avaliado o processo de globalização contemporâneo.

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 58-61)