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Passos em direção ao Futuro

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 81-86)

A historicidade mais a pluralidade da ideia da humanidade — especialmente a pluralidade que deu origem à categoria de individualidade — tiveram repercussões consideráveis para o uso dessa ideia no processo de construção da identidade pessoal.

Em primeiro lugar e acima de tudo, o poder de individualização aumentou enormemente devido ao processo de globalização causado pela economia mundial e o avanço da tecnologia. A noção ocidental de humanidade se espalhou por todo o mundo devido à colonização e ao imperialismo, ameaçando assim a validade dos outros conceitos do que é constitutivo da humanidade e de outras interpretações do mundo conectadas com eles. Havia duas maneiras de combater essa ameaça em se tratando de um desafio. Podia-se adotar o modo ocidental de pensar combinado a sua convicção do homem como um ser capaz de dominar o mundo. O Movimento 04 de maio na China e as ideias propostas por

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Hu Shi podem servir como um exemplo disso.45 Alternativamente era possível rejeitar radicalmente a cultura ocidental na forma proposta por Ghandi com sua noção de Hindu Swaraj.46 As tendências intelectuais atualmente mais difundidas e influentes dos Estudos Subalternos e do Pós-colonialismo pertencem a essa segunda alternativa. Da mesma forma como a crítica da dominação intelectual ocidental assim formulada, torna-se compreensível, a oposição direta a ela não é muito convincente, pois é considerada como a contrapartida exata do etnocentrismo ocidental ao qual se opõe.

O realismo cultural pós-moderno e o relativismo são mais algumas das tentativas de evitar a armadilha do etnocentrismo. Eles certamente aguçaram nossa visão sobre a diversidade da cultura da vida humana e, ao mesmo tempo, ofuscaram o universalismo oscilante sustentado na comunicação intercultural. O etnocentrismo se torna um elemento incontornável na formação de uma identidade cultural tão longa quanto a dos seres humanos — seja como indivíduos, seja como formações sociais (“comunidades”) — ao conceber-se como diferente dos outros por tratá-los de acordo com essa autopercepção. Nesse processo, os valores positivos são exclusivamente atribuídos ao conceito do “eu”; enquanto a alteridade dos outros é determinada por uma aberração negativa dessa norma.

Mas isso não quer dizer que a maneira pela qual as definições universalizantes da humanidade, empregadas no processo de formação da identidade, são determinadas por essa lógica binária. Pelo contrário, essa lógica é flexível, é “aberta”. Ela ainda oferece a oportunidade de humanizar, se não de superar, o “choque de civilizações”. Essa chance repousa na alteração do conceito universalizante do que é ou deve ser o homem, a partir de uma perspectiva exclusiva no interior de uma inclusiva.

Através da inclusão da alteridade do outro, a qual é deslocada da esfera de tudo o que está fora do “eu” para a área da nossa humanidade comum; de uma “humanidade” diversa (numa síntese de elementos empíricos e normativos). Através dessa virada, essa mudança fundamental de perspectiva, a alteridade se torna a manifestação específica das qualidades humanas do homem que transcendem todas as diferenças. Desse modo, 45 HU SHI: Autobiographie mit Vierzig (transl, from Chinese by Marianne Liebermann and Alfred Hoffrnann), Dortrnund, 1998. See a1so GRIEDER, Jerome B.: Hu Shih and the Chinese Renaissance, Cambridge, Mass., 1999; EGLAUER, Martina: Wissenschaft aIs Chance. Das Wissenschaftsverstiindnis des chinesischen Philosophen Hu Shi (1891-1962) unter dem Einfluβ von John Deweys (1859-1952) Pragmatismus, Stuttgart, 2001.

46 GANDHI, Mahatma: “Hindu Swaraj”, in: MUKHERJEE, Rudrangshu (Ed.): The Penguin Gandhi Reader, New York, 1993, pp. 3-66.

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ela adquire a singularidade que tem em comum com a singularidade do eu, e tudo isso dentro de um quadro conceitual no qual a diferença cultural enquanto elemento determinante da própria identidade não desaparece, mas desempenha um papel importante. Neste sentido, a diferença em relação ao outro se torna uma maneira de fazer-se a si mesmo ao ser refletido pelo outro; e os outros representam para o eu o desafio de serem reconhecidos.47 Uma compreensão abrangente da humanidade é, portanto, capaz de mitigar a amargura do etnocentrismo transformando-o em uma oportunidade de humanizar ambos os lados.48

Esta mudança fundamental é mais do que um postulado teórico distante da realidade. Há algumas conquistas históricas em que esta mudança já é prenunciada: primeiro de tudo, no enriquecimento da ideia da humanidade através da dimensão estética. Dentro dessa esfera — mas só nela — a dureza da diferenciação política e social é atenuada por meio da resolução imaginária. As “Briefe über die ästhetische Erziehung des Menschen”, de Schiller, equivalem a uma formulação clássica desta humanização do homem através da influência da arte.49 Outra manifestação do universalismo inclusivo é constituída pelas humanidades e seu método hermenêutico, onde um rico arsenal de entendimento da alteridade e da diferença foi desenvolvido. Os princípios de conciliação da universalização e com a individualização, ali aplicados, fornecem um conjunto de chances realistas para o reconhecimento da diferença cultural. Um bom exemplo disso é o conceito de “múltiplas modernidades” de Shmuel Eisenstadt.50

Enquanto isso, as humanidades também conseguiram apontar elementos da alteridade ocultos em seu próprio ser.51 Insights como estes tendem a alternar as restrições que causam ao eu o projetar de todos os elementos que são considerados inconciliáveis em relação à formação de sua 47 Emmanuel Levinas radicalizou esse argumento no sentido de conceber o eu nos termos do outro.

(LEVINAS, Emmanuel: Humanismus des anderen Menschen, Hamburg, 1989 [LEVINAS, Emmanuel. Humanisrno do Outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993]).

48 Cf. RÜSEN, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1.1 (June 2004): 59- 74; also in: History and Theory 43 (2004) Theme Issue "Historians and Ethics": 118-129.

49 SCHILLER, Friedrich: “Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen (1795)”, in: Sämtliche Werke in 5Bänden,ed. Peter-André Alt, Albert Meier and Wolfgang Riedel, vol. 5, Munich, 2004, pp. 570-669 (SCHILLER, Friedrich. A educação estética da humanidade: numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995.).

50 EISENSTADT, Shmuel N.: "Multiple Modernities", in: Daedalus 129.1 (Winter 2000): pp. 1-30 (EISENSTADT, S.N.: “Múltiplas Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139-163, abr. 2001.).

51 WALDENFELS, Bernhard: Vielstimmigkeit der Rede. Studien zur Phänomenologie des Fremden 4, Frankfurt/Main, 1999.

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própria subjetividade, naqueles traços que constituem a alteridade do outro. Percebemos que estes traços não são nada mais que a sombra da extraterritorialidade de nós mesmos. Finalmente, a forma de vida secular da sociedade civil tem de ser mencionada. Em termos culturais, e com base na ideia da dignidade humana abre-se a oportunidade de viver com a diferença. O princípio da tolerância foi um primeiro passo nesse sentido. Mais do que isso, o passo importante que vai da tolerância para o reconhecimento é buscado em vários contextos.52

No entanto, a ideia de uma humanidade fundada no princípio da dignidade humana está ameaçada. Considerada a força avassaladora da economia de mercado e da lógica instrumental da tecnologia, a noção da autonomia moral e autodeterminação da humanidade parece ser apenas uma ilusão. Movimentos políticos poderosos, como o fascismo ou o comunismo foram inspirados pela ideia de superar o status quo do homem em favor de um “novo homem” ou “além-do-homem”, os quais eram considerados capazes de abandonar todas as imperfeições da vida humana, tais como existiam em sua forma contemporânea implícita, em troca de um admirável mundo novo.53 A atratividade dessa ideia foi reforçada pelas enormes oportunidades que existiam de manipular não só a cultura humana, mas também — devido aos avanços na biologia, na inteligência artificial e na pesquisa sobre o cérebro — até mesmo a própria natureza humana. Até agora, todas essas tentativas fracassaram catastroficamente. O mesmo se aplica aos atuais movimentos intelectuais do transumanismo, que ocupa todos os sonhos de felicidade e salvação por meio da promessa de realizá-los através de uma alteração no equipamento biológico do homem e do reforço da sua capacidade intelectual por meio da inteligência artificial de computadores nele acopladas.

O que é o homem? Esta questão não perdeu nada de sua tropicalidade, abertura e tentativas controversas em respondê-la. Ao serem vistos, os últimos esforços intelectuais em dar uma resposta ao desafio lançado pela globalização em direção a uma orientação cultural sustentável à luz do desenvolvimento do impulso concomitante com a teoria universal das eras axiais, existem uma série de indícios de que o humanismo moderno é um sintoma de que nós estamos bem no meio de uma segunda era 52 No entanto, as formas de vida sociedade civil secular são pluralisticamente entendidas apenas como

algumas entre outras, por isso, a chance de fazer da alteridade um espaço habitável é perdida. A sociedade civil é, em primeiro lugar, uma meta-chave que permite o pluralismo da orientação cultural.

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axial. O que está em jogo aqui são as visões (no sentido de uma melhoria qualitativa) de todas as realizações dos conceitos universalistas da humanidade que foram desenvolvidas na primeira era axial. Tal revisão exige uma “Renaissance”, uma recepção produtiva e um desenvolvimento do conceito de humanidade que, do humanismo moderno e até hoje, determina uma variedade de tradições culturais, as quais, numa comunicação intercultural decididamente ainda estão competindo umas com as outras em busca de uma compreensão não subsumida à cultura unitária da modernidade.54

De qualquer forma, a ideia de que a humanidade pode ser desenvolvida para além dela mesma, é um fator tão elementar quanto universal da vida humana, o que trouxe em jogo um novo pensamento humano, uma vez que até agora tinha sido totalmente sub exposto, se não mesmo antes desconsiderado: o sofrimento humano. Em vista dos vários crimes contra a humanidade que, como sempre, são experiências deprimentes dos nossos tempos e que as ciências humanas e sociais ainda estão lutando para compreender, o sofrimento humano deve ser muito mais focado, predominantemente em termos da questão de onde as oportunidades, mas, também, os limites de nossa humanização podem ser observados. Sem levar sistematicamente em consideração as propriedades antropológicas fundamentais e universais do homem, sua fragilidade fundamental e sua inevitável falibilidade e vulnerabilidade, qualquer reflexão realista sobre a humanidade se tornaria impossível.

54 Cf. RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Humanism in Intercultural Perspektive. Experiences and Expectations, Bielefeld 2009; RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus. Menschlichkeit in der Vielfalt der Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009.

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Historicizando a

humanidade – algumas

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