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As Mudanças Culturais nas Eras Axiais

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 66-69)

Seguindo Karl Jaspers, o termo “era axial” designa uma mudança acentuada de formas de vida humanas. Ele coincide com o surgimento das chamadas “altas culturas”. Ao contrário de Jaspers, não estou usando esse conceito no sentido de uma indicação cronológica rígida de uma inversão de rumos que é válida para todas as culturas, mas sim na consideração adequada das diferenças culturais (especialmente com relação à cronologia), mais propriamente num sentido do impulso evolutivo da cultura. Tais impulsos não ocorreram em diferentes culturas, todos ao mesmo tempo, mas seu efeito de provocar uma reestruturação da organização cultural da vida humana tem sido semelhante (no sentido de comparável) por toda parte. A “era axial” é um momento em que uma nova compreensão do homem e seu mundo surgem e conseguem prevalecer (com consequências a longo prazo como na forma das chamadas “culturas do mundo” ou “civilização”).16

Podem ser categorizadas três áreas fundamentais onde este impulso se manifesta: o “eu” (humano), o “mundo” (extra-humano) e o “Deus” supra-humano (ou O Divino). Considera-se que esta humanidade transcendente dual constitui-se historicamente como uma categoria cultural não natural.

O novo entendimento da “humani-dade” dos seres humanos é incorporado por um “avanço transcendental” (Eisenstadt), que provoca mudanças profundas nas categorias fundamentais que compõem o mundo humano e a concepção que a humanidade tem de si. Esta mudança 16 Cf.: EISENSTADT, Shmuel N.: “Die Achsenzeit in der Weltgeschichte”, in: ibid.: Theorie und Moderne. Soziologische Essays, Wiesbaden 2006, pp. 253 - 275, and in: JOAS, Hans/WIEGANDT, Klaus (Eds.): Die kulturellen Werte Europas, 4th ed., Frankfurt/Main, 2006, pp. 40-68.

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consiste principalmente no mundo divino que adquire uma nova (ou seja,“transcendental”) qualidade, que foi removida da realidade do mundo, quando os seres humanos agem fora de suas vidas. Para ser mais preciso em termos filosóficos, deve-se, na verdade, dizer “transcendente” ao invés de “transcendental”. O Divino assume uma forma de existência que o diferencia da vida cotidiana que, assim, torna-se absolutamente mundana. Aquelas áreas que, numa forma arcaica de vida, ainda estavam estreitamente inter-relacionadas, agora podem tornar-se unidades separadas, e isto ocorre através do seu novo caráter enquanto uma espécie, por assim dizer, intermediária.

A nova qualidade do ser humano pode ser definida por um senso de subjetividade. Isso significa que o valor que acrescenta o além, implícito na ideia de transcendência, é agora pensado como inerente à própria humanidade, marcando assim o ser humano como uma subjetividade cujo significado é derivado somente a partir de si mesmo. Neste sentido, a profecia judaica pode ser considerada como um exemplo paradigmático de como o mundo está localizado no uno e no indivíduo, e por outro lado, separados um do outro e relacionados de forma completamente nova. O humano é agora pensado como contido dentro do “coração” de cada pessoa. Estabelece, assim, uma relação pessoal, ou mesmo individual, vis-à-vis com o mundo divino.17 Em uma perspectiva invertida (em que o ser humano aparece à luz do divino) o homem pode, então — como é o caso no judaísmo e cristianismo —, ser definido como sido criado à imagem de Deus.

O confucionismo conceituou esta nova subjetividade como “ren”, que em inglês é mais comum ser traduzido como “benevolence” (“benevolência”). Em alemão, o termo “Menschlichkeit” parece ser um equivalente.18 Os princípios éticos de validade universal podem ser sintetizados sob o conceito do humanismo chinês,19 porque estão 17 A vocação de Isaías é um exemplo impressionante disso: Isaías. 6, 1-13. Bíblia Sagrada. Tradução

João Ferreira de Almeida. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/biblia.htm. Acesso em: 05 dez. 2014.

18 Ver CHEN, Yunquzan: “The Spirit of Renwen (‘Humanism’) in the Traditional Culture of China", in: RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations, Bielefeld, 2009, p. 56. Chen fala da “ideia de considerar as pessoas como o centro de tudo, prestando atenção à sua dignidade e valor...” (p. 49). Ver também MITTAG, Achim: “Reconsidering Ren as a Basic Concept of Chinese Humanism”, in: MEINERT, Carmen (Ed.): Traces of Humanism in China - Tradition and Modernity, Bielefeld, 2010, pp. 49-62.

19 Cf. numerosas referências em CHAN, Wing-Tsit (Ed.): A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton, 1963, pp. 3-48; MEINERT, Carmen (Ed.): Traces of Humanism in China – Tradition and Modernity, Bielefeld, 2010.

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integrados à ordem mundial tradicional e suas práticas rituais. Este tipo de humanismo motivou a maneira como o mundo foi condenado a tornar-se mais ligado do que nunca aos argumentos racionais.20

A partir de agora, os limites étnicos do ser humano tornam-se a ser capazes de serem transgredidos na direção da nova universalidade do gênero humano. O estado transcendental da fonte de todo o sentido divino conduz a um novo conceito de humanidade. Isto não implica que os antigos limites étnicos tenham desaparecido por completo (se é que é possível de alguma forma), mas que a eles foram concedidos um novo status em relação à área da identidade coletiva. Os outros agora também se tornaram humanos. Este processo universalizante encontra sua expressão na dimensão abrangente do mundo divino (Brahma, Javé, Allah, Deus, etc.). Independente de todas as delimitações sociais, políticas ou de gênero, o indivíduo ganhou um acesso imediato a, ou um encontro imediato com, esta divindade universal e extramundana. Isso está bem expresso nas palavras de Paulo: “Aqui não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”21 Esta universalidade da humanidade é estendida para todo ser humano único e poderia ser reivindicada por ele. E, assim, tornou possível (o que é explícito no judaísmo e no islamismo) a ideia de que matar um ser humano equivale a matar toda a humanidade.22

O poder do etnocentrismo, no sentido da velha e estreita definição étnica do ser humano, foi estilhaçado; isso, no entanto, não faz com que ele desapareça por completo, mas reapareça em uma nova roupagem a partir de um conceito generalizado da humanidade: a identidade cultural que não deriva dessa universalidade foi capaz de reivindicar e essencializar o privilégio de representar um conceito “civilizado” da humanidade, enquanto que a alteridade para os outros foi concebida nos termos de uma forma única e reduzida da humanidade, ou seja, uma deficiência em relação à “verdadeira humanidade”. E uma vez que os outros seguem a mesma lógica na formulação de sua autoimagem, um “choque de civilizações” é a consequência amarga da competição entre as ideias sobre a humanidade.

20 Cf. ROETZ, Heiner: Die chinesische Ethik der Achsenzeit. Eine Rekonstruktion unter dem Aspekt des Durchbruchs zu postkonventionelIem Denken, Frankfurt/Main; ibid.: Confucian ethics of the axial age, Albany, 1993.

21 Carta aos Gálatas 3, 28. Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Disponível em: http:// www.culturabrasil.org/biblia.htm. Acesso em: 05 dez. 2014.

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