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O Conceito Moderno de Humanismo

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 139-142)

Numa perspectiva mais sistemática de Humanismo, este pode ser descrito como um padrão de pensamento acerca das diferentes dimensões da vida humana e da sua regulação cultural. Este padrão baseia-se numa argumentação antropológica centrada no princípio da dignidade humana. As duas problemáticas - antropologia e dignidade – foram claramente articuladas por Immanuel Kant, ao afirmar que em cada orientação cultural da vida humana há três questões básicas que têm de ser respondidas: O que posso eu saber? O que devo eu fazer? O que posso esperar? E ele acrescentou – numa expressão típica do pensamento

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moderno – que todas estas três questões podem ser resumidas numa única e decisiva questão: O que é o ser humano (Kant,1800, p. 29)? De acordo com Kant, a resposta a esta questão tem de reconhecer a qualidade cultural fundamental de cada ser humano: ele ou ela é sempre mais do que apenas um meio para os propósitos dos outros, é sim um propósito para si mesmo. Kant denominou como dignidade humana este “ser um propósito para si mesmo” (em alemão: Selbstzweckhaftigkeit).9

Com base neste humanismo antropológico, existe um necessário fermento espiritual e mental da sociedade civil baseado culturalmente em valores universais seculares, como liberdade de expressão, estado de direito, igualdade perante a lei, pluralismo religioso num quadro de moralidade universal, representação dos dominados nas instituições dominantes, etc. Assim, o humanismo tem uma dimensão política. Ele critica formas feudais de dominação política e de vida social e coloca a dominação política submetida a leis sobre direitos humanos e civis. O Humanismo é claramente oposto e dirigido contra qualquer forma autoritária de dominação política.10 Na sua dimensão social o Humanismo exige igualdade civil, contra a superioridade da nobreza e, mais tarde (na sua particularidade socialista), contra qualquer tentativa de opressão social.

Na sua dimensão intelectual, o Humanismo sustenta a ideia de humanidade que vai de encontro à sua própria universalidade empírica e normativa, dentro e através da diversidade e mutabilidade cultural. Portanto, ele promove as categorias de historicidade e de individualidade na compreensão do mundo humano. Com estas categorias, ele molda o trabalho académico das Humanidades e as suas estratégias hermenêuticas para compreender a diversidade cultural e a mudança histórica sob a forma de processos cognitivos de investigação metodologicamente regulados. Nesta dimensão, o Humanismo opõe-se fundamentalmente a 9 “O homem como pessoa, isto é, como sujeito da razão moralmente prática, é exaltado acima de qualquer preço. Com esta individualidade (homo noumenon), ele não é valorizado simplesmente como um meio para os fins de outras pessoas ou até para os seus próprios fins, mas existe para ser apreciado como um fim em si próprio. Isto significa que ele possui dignidade (um valor intrínseco absoluto) pelo qual ele merece o respeito de todos os outros seres racionais do mundo, pode avaliar-se em relação a cada membro da sua espécie e pode considerar-avaliar-se a si próprio em pé de igualdade com todos eles." Kant, I. 1797. Metaphysik der Sitten, A 93 (tradução inglesa: http://praxeology.net/ kant7.htm; 9.5.2011])

10 No caso alemão, isto encontra-se documentado de forma paradigmática no manifesto político de Wilhelm von Humboldt: zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen de 1792 (tradução inglesa: Humboldt, W. v., 1854. The Sphere and Duties of Government [The Limits of State Action]. London: John Chapman.) [http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_ staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=589&Itemid=99999999; 9.5.2011])

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qualquer forma de dogmatismo e favorece a livre e ilimitada expressão de pensamento como meio de discutir quaisquer assuntos de interesse comum.11

Pela sua antropologia, o Humanismo tem um forte impacto na Educação, num sentido lato de auto-cultivação humana ("Bildung"). Qualquer pessoa deve ter oportunidade de desenvolver as suas capacidades de forma holística e, portanto, ele ou ela representa a criatividade cultural da mente humana, numa manifestação individual sob condições específicas da sua vida. A Educação humanística opõe-se a qualquer utilitarismo que instrumentalize o desenvolvimento humano, ao valorizar a utilidade social como sendo essencial para criar uma personalidade independente.

Por fim, não se deve esquecer que o Humanismo teve uma relação especial com as Belas Artes: ela existe no seio de uma autonomia ilimitada de liberdade de expressão contra regras de formação previamente estabelecidas, dependentes de interesses políticos e socais. As Belas Artes ganham assim um lugar cultural na vida humana como condição necessária para realizar a liberdade humana e a auto-realização.12

Este humanismo é um campo de ideias multifacetado. Mas o que dizer da realidade? Ninguém pode negar que, em muitos países - sobretudo no Ocidente, mas não só - se estabeleceu uma forma da sociedade civil com elementos humanistas, como por exemplo, o princípio da dignidade humana. Esta forma de vida tem os seus limites e encontra-se permanentemente ameaçada por falta de bom encontra-senso. Mas em geral, é evidente que existe uma atração por ela em todo mundo e, na prática, vê-se que o seu impacto está a alargar-se. O humanismo político tem sido plasmado em muitas constituições modernas, nas suas referências aos direitos humanos e civis. A humanização da dominação política tem sofrido muitos recuos e perversões mas, apesar de tudo, pode-se obpode-servar uma tendência histórica geral quanto ao pode-seu alargamento e aprofundamento. Logo desde o início, o humanismo social teve de confrontar a sua ideia de igualdade civil com as novas formações de classe e as fortes tendências de limitarem o usufruto das classes inferiores aos benefícios da sociedade civil como, por exemplo, a novas instituições de 11 Apesar de criticar radicalmente a forma ocidental de compreender as diferenças culturais, Edward Said saudou o Humanismo (que, na verdade, é um pressuposto para a sua crítica): Said, E., 2004. Humanism and Democratic Criticism. New York: Columbia University Press.

12 Na tradição humanista alemã, isto está documentado de forma paradigmática nas cartas sobre a cultura estética da humanidade, de Friedrich Schiller (Ueber die aesthetische Erziehung des Menschen in einer Reyhe von Briefen 1795, Stuttgart: Cotta (tradução inglesa: On the Aesthetic Education of Man in a Series of Letter [http://www.bartleby.com/32/501.html; 9.5.2011])

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Educação. Um problema específico da igualdade social foi excluírem as mulheres de direitos políticos e de independência social; mas, a longo prazo, a sociedade civil está a ultrapassar a relação desequilibrada entre sexos. Um outro problema específico emergiu do princípio humanista de individualismo: muito facilmente isto poderá levar a um enfraquecimento da responsabilidade e solidariedade social e, portanto, esse princípio tem de ser complementado essencialmente com o reconhecimento da dimensão intersubjetiva da personalidade humana.

O humanismo intelectual tem-se estabelecido no seio da constituição teórica e metódica das Humanidades e Ciências Sociais – contanto que elas trabalhem com a hermenêutica enquanto estratégia cognitiva para lidar com a diversidade e a diferença cultural. Os seus princípios de reconhecimento das diferenças têm de lutar contra o viés nacionalista. E numa perspectiva intercultural tem de ser aplicado e reforçado ainda, contra tendências etnocêntricas na formação da identidade cultural.

O Humanismo educacional entrou finalmente na educação superior mas, ao mesmo tempo, estabeleceu limites no acesso social. Isto é evidente no caso do ensino secundário humanístico na Alemanha. Mas não foi só neste país que as atitudes elitistas foram confrontadas com abordagens universalistas de Educação para todos. A ideia de centrar a Educação em torno do princípio de personalidade livre continua ainda sob pressão, em nome da utilidade social.

No documento HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA (páginas 139-142)