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A identificação do usuário: critérios flexíveis para caracterização do

2 A IDENTIFICAÇÃO DOS USUÁRIOS DO SERVIÇO PÚBLICO

2.1 A SUPERAÇÃO DA DISTINÇÃO ENTRE SERVIÇOS PÚBLICOS

2.1.5 A identificação do usuário: critérios flexíveis para caracterização do

Essa identificação deve ser criativa e flexível, não devendo ficar aferrada a posições pré-concebidas. Um exemplo concreto é a variação da jurisprudência do STF acerca da taxa de bombeiros, objeto das Súmulas nº 274 e 549. Discutia-se a constitucionalidade de taxa cobrada pelos serviços do corpo de bombeiros. A decisão final pendeu pela existência de um serviço uti

singuli neste caso, sob diversos argumentos. Em momentos variados do

debate, alegou-se que embora genérico na sua manutenção como serviço potencial, o serviço torna-se “divisível por um imperativo das circunstâncias”, e que o serviço é posto à disposição de todos, mas “passa a ter destinatário certo

e especificado sempre que a sua prestação se torna concretamente necessária”.33 De certo modo, o serviço foi assimilado à idéia de um seguro: a

30 JUSTEN. A Noção de Serviço Público no Direito Europeu. p. 233.

31 Aqui se alude ao direito à prestação objeto de uma específica relação jurídica tendo por objeto a prestação do serviço público já criado. Há outra possível alusão a um direito a prestações, correspondente a um direito à criação do serviço ou um direito à prestação do serviço pelo Estado. A esse tema retornar-se-á mais adiante, investigando-se a aplicação do modelo de Alexy para os direitos fundamentais prima facie e definitivos a prestações específicas do Estado (ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Politicos y Constitucionales. 2001. p. 494/501).

32 Segundo Mescheriakoff, “Juridicamente, é o gestor do serviço que realiza a prestação. O usuário, quer esteja em uma situação unilateral ou contratual (...), deve por conseqüência entrar em relação com este para beneficiar-se da prestação. (...) É o gestor que, por via de conseqüência, é devedor dos direitos subjetivos de que podem ser titulares os usuários” (MESCHERIAKOFF. Droit des services publics. p. 281).

33 Esses argumentos são extraídos de pareceres de Miguel Seabra Fagundes e Caio Tácito, respectivamente. Uma análise abrangente desses precedentes do STF é feita por Aurélio

prestação consistia na garantia de atendimento se e quando dele houvesse necessidade.34

Essas afirmações mostram a dificuldade na distinção, em abstrato, entre serviços uti universi e uti singuli. Os serviços de bombeiros ou de segurança pública envolvem aspectos difusos – como o policiamento ostensivo, p. ex. – e aspectos individualizáveis. Nas parcelas individualizáveis dessas atividades, é possível vislumbrar uma relação jurídica concreta entre o seu usuário (a pessoa que necessita da intervenção do corpo de bombeiros ou do amparo da polícia) e o Poder Público. Há direito subjetivo à prestação do serviço. Há um destinatário determinado e há dever jurídico de prestação – ainda que esse destinatário não seja identificável senão no momento em que a prestação do serviço se torna imperiosa.35

Essa situação é distinta da que caracteriza as atividades administrativas estritamente uti universi, como as de manutenção das forças armadas, de diplomacia.36 Em nenhum momento da realização dessas atividades haverá um usuário determinado, pois são atividades concebidas para uso difuso. Sua finalidade coletiva não se realiza pela satisfação do interesse de um usuário determinado, mas pelo atendimento de um interesse de natureza não

Pitanga Seixas Fillho (SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Taxa - Doutrina, Prática e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense. 2a ed. 2002. p. 34/45).

34 A possibilidade de identificação de um usuário em alguns dos serviços ligados à segurança pública é confirmada pelo fato de que existem, sob regime de direito privado, serviços de segurança patrimonial ou domiciliar. Há parcelas individualizáveis na atividade administrativa de segurança. Em sentido similar, Mescheriakoff aponta que o Conselho de Estado vela especialmente pelo princípio da igualdade nas discriminações tarifárias e parece “distinguir os consumos coletivos que não podem ser faturados daqueles que, constituindo um uso privativo do serviço, podem sê-lo. Essa possibilidade existe mesmo quando da prestação, mesmo sendo coletiva, pode ser feito um uso privativo anormal. É sobre essa base que as coletividades, em uma preocupação de boa gestão, começam a faturar as intervenções de socorro e salvamento realizadas num interesse particular. O problema delicado a resolver continua a ser o do critério do uso privativo e anormal” (MESCHERIAKOFF. Droit des services publics. p. 214).

35 Bernardo Ribeiro de Moraes anota que o pronunciamento do STF deu-se antes da consagração constitucional do atual regime das taxas. Para o doutrinador, os serviços objeto das Súmulas nº 274 e 549 do STF são gerais e indivisíveis (MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e prática das taxas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1976. p. 157).

36 Sacha Calmon Navarro Coelho alude a situações em que mesmo o serviço de diplomacia poderia gerar relações individuais, como as atinentes à obtenção de passaportes ou autenticações consulares, afirmando que o exemplo (que é de Bernardo Ribeiro de Moraes) revela que “serviços uti universi somente ensejam taxas se, por alguma forma, puderem ser apropriados uti singuli” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense. 7a. ed. 2004. p. 641). Nos exemplos citados, não se está diante de serviço público mas de atividade de polícia administrativa. As atividades de diplomacia propriamente ditas são realizadas em prol da coletividade em geral.

individual. Pelo menos uma parcela dos serviços de bombeiros e segurança têm característica diversa. Sua finalidade pública se realiza mediante o atendimento de interesses individuais dos usuários. Esse é um dos elementos de sua configuração como serviços públicos: a aptidão para realizar sua finalidade de interesse geral mediante a satisfação de necessidades individuais dos usuários.

Ou seja, há atividades administrativas que realizam o interesse público mediante a construção de estruturas materiais (obras públicas). Outras realizam-no por meio de ações que apenas aproveitam aos administrados de modo difuso (como a atividade normativa da Administração ou o fornecimento de utilidades indiscrimináveis). O serviço público atende ao interesse público através do oferecimento de utilidades que cada indivíduo possa fruir de modo singular. 37 Caso contrário, não se estará diante de serviço público, mas de

atividade administrativa de outra natureza.

A análise de tais serviços aparentemente uti universi também mostra a impossibilidade de se identificar o serviço público a partir da sua possibilidade de delegação. Os serviços de bombeiros ou de segurança não são indelegáveis porque não é possível identificar um usuário, mas porque envolvem o exercício de força, monopolizada pela estrutura própria do Estado.

Marçal Justen Filho aponta que a falta de capacidade de fato não afasta a caracterização do usuário, pelo que um absolutamente incapaz pode usufruir o serviço público.38 Isso não impede que se reconheça o usuário como sujeito

de direito nem como integrante de uma relação jurídica. A condição de sujeito de direito corresponde à aptidão para ser titular de direitos e obrigações, de ser

37 Agustín Gordillo destaca que “Somente há interesse público quando em uma maioria de indivíduos, cada um pode encontrar seu interesse individual: o ‘interesse público’ em que cada indivíduo não possa encontrar e identificar sua porção concreta de interesse individual é uma falácia. Há interesse público nos serviços de transporte, águas, correios, telefones, eletricidade, porque cada indivíduo de uma maioria de habitantes tem um interesse pessoal e direto em viajar, comunicar-se por escrito e por telefone e ter energia elétrica. Esse interesse público consiste em que cada indivíduo seja bem atendido na prestação do serviço. Há serviços que não se traduzem em prestações individuais a pessoas determinadas, mas quando um serviço se efetiva em prestações individuais o usuário é o objeto principal do serviço e é ele que o regime jurídico deve proteger” (GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, v.Tomo 2. 6a. ed. 2003. p. VI-29/VI-30).

38 JUSTEN FILHO. Teoria geral das concessões de serviço público. p. 549. No REsp nº 637.332/RR, o STJ reconheceu a condição de usuários do serviço hospitalar para neonatos e nascituros (“... em decorrência de que muitos usuários, dentre eles vários nascituros, faleceram por deficiência de assepsia material e/ou humana no referido hospital”) – 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, j. 24.11.2004, v.u., publ. 13.12.2004.

titular de relações jurídicas.39 Toda pessoa, ainda que absolutamente incapaz, é sujeito de direito.

Há ainda a situação dos órgãos de pessoas jurídicas ou as congregações não personificadas, como condomínios ou consórcios. Nesses casos, ainda que os serviços sejam dirigidos aos órgãos (coleta de lixo de uma Secretaria de Estado, p. ex.) ou à congregação (fornecimento de água a um condomínio residencial, p. ex.), os usuários são a pessoa jurídica de direito

público (o Estado) ou as pessoas agremiadas (os condôminos).

A contrapartida pecuniária do serviço público pode ou não existir.40 Há serviços gratuitos, em que o direito do usuário à prestação independe de pagamento.41 Há outros serviços que, embora sujeitos a contrapartida pecuniária, não poderão ser negados ao usuário mesmo na ausência de pagamento. Seja como for, em todos os casos se estará diante de um direito

subjetivo de alguém, o prestador do serviço, tendo por objeto uma prestação de

serviço público. Disso deriva tanto a identificação do serviço (em face de outras atividades públicas) quanto do seu prestador (direto ou delegatário).