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Adaptação da classificação ao regime brasileiro: a variedade de

3 A SITUAÇÃO JURÍDICA DO USUÁRIO

3.2 AS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA SITUAÇÃO

3.2.6 Adaptação da classificação ao regime brasileiro: a variedade de

As três situações expostas acerca do liame de direito público são aproveitáveis entre nós. As situações atinentes aos SPIC são alheias ao nosso sistema normativo. Não há, no Brasil, serviços públicos sujeitos ao direito privado. Existem serviços públicos – prestados, sempre sob regime público, de modo direto e indireto – e há atividades econômicas em sentido estrito da Administração, realizadas sob regime de direito privado, mas que são inconfundíveis com o serviço público. Assim, as atividades referidas no art. 177 da Constituição são atividades econômicas em sentido estrito, conquanto sujeitas a monopólio (mais ou menos amplo), que não configuram serviço público. Apenas por isso é que podem ser regidas pelo direito privado. Feita essa ressalva, alguns aspectos da classificação de Mescheriakoff são úteis para a compreensão do serviço público no Brasil.

Há casos em que o usuário fará uso do serviço de modo anônimo, independentemente de qualquer ato que lhe outorgue um título habilitador. Alguns aspectos do serviço postal submetem-se a essa situação. O sujeito que adquire um selo e envia uma carta simples o faz de modo anônimo. Seu direito subjetivo é o de adquirir o selo e entregar a correspondência à estrutura do prestador, o que lhe possibilita o envio da carta sem qualquer identificação ou habilitação adicional. A relação entre prestador e usuário deriva direta e exclusivamente das regras gerais do serviço.

Utilizando o mesmo serviço como exemplo, há outros casos em que o uso deriva de um ato unilateral de admissão do usuário. Quem procura a agência de correios para a remessa de um envelope por via expressa, com registro e aviso de recebimento, enquadra-se em determinados requisitos regulamentares. Há manifestação de vontade do usuário de aderir ao serviço, há o pagamento da tarifa correspondente e o direito subjetivo de que o serviço seja prestado nas condições regulamentares (de prazo de entrega, p. ex.). Há

58 Ibid. p. 241/242.

o reconhecimento administrativo dessa adesão, por meio do comprovante documental correspondente.

Por fim, há situações em que se estabelece entre a Administração e o usuário um vínculo relacional,59 do qual deriva uma multiplicidade de direitos e deveres de parte a parte, que se prolongam no tempo. Esse é o campo próprio de aplicação das chamadas cláusulas exorbitantes, que permitem a instabilização do vínculo formado entre o prestador e o usuário. Os vínculos instantâneos60 não se coadunam com cláusulas dessa natureza. Porém, a

aplicação dos poderes exorbitantes deriva de condicionantes práticas, não da natureza jurídica do contrato. Imagine-se, p. ex., um contrato (usemos esta expressão, ao menos provisoriamente) entre o usuário de uma instalação portuária e o seu arrendatário, tendo em vista a exportação de um contêiner. O contrato se aperfeiçoa no momento em que se forma o consenso61 e o usuário

cumpre integralmente sua prestação ao entregar o contêiner ao arrendatário e pagar a tarifa. Caberá ao arrendatário armazenar e movimentar o contêiner a fim de colocá-lo com segurança no navio. O contrato é de execução instantânea, não é relacional. Cumprida a prestação do usuário, há direito subjetivo a que o arrendatário promova a movimentação da carga como acordado. A despeito disso, suponha-se, no intervalo entre a entrega e o carregamento do contêiner, a edição de um ato da ANTAQ determinando, em face de situação emergencial, a suspensão de todas as movimentações de

59 Sobre os contratos relacionais de prestação de serviços públicos, cfr. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. A proteção dos usuários de serviços públicos - a perspectiva do direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v.37, p. 77/91, 2001. esp. a partir da p. 84. O autor anota que “Contratos relacionais distinguem-se de contratos descontínuos ou contratos que se realizam num só momento (instantâneos) e por isso guardam uma afinidade conceitual, uma categoria jurídica mais familiar de todos nós que são os contratos de longa duração. Na medida em que os contratos relacionais, em contraste com os contratos descontínuos, buscam regular relacionamento jurídico que perdura no tempo, ele está sujeito a uma série de contingências muito maiores do que aquelas que existem no contrato descontínuo” (MACEDO JÚNIOR. A proteção dos usuários de serviços públicos - a perspectiva do direito do consumidor. p. 84). Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem formulam observação interessante sobre o tema, que se refere à identificação de vínculos onde possa não haver contrato: “O modelo relacional é fascinante, mas desenvolvido tendo em vista problemas típicos da common law, que no direito brasileiro, em especial com base no CDC, podem ser resolvidos com a utilização dos princípios da confiança, da boa-fé, da acessoriedade das relações de pré-consumo ou pela teoria da aparência” (MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT. 2003. p. 153).

60 Sobre as obrigações instantâneas, momentâneas ou transeuntes, cfr. RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. Campinas: Bookseller. 6a ed. italiana. 1999. p. 67.

61 O contrato de prestação de serviços é consensual, como esclarece Maria Helena Diniz (DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva. 10a. ed. 2004. p. 456).

contêineres e a utilização exclusiva do cais para atividades militares. Isso afetará legitimamente o contrato de execução instantânea firmado entre o usuário e o arrendatário. Essa possibilidade de alteração unilateral não é suficiente para que não se caracterize uma relação contratual neste caso, pois é o traço central dos ditos contratos administrativos. Como já se afirmou, o que permitirá reconhecer a existência de um contrato entre o usuário e o prestador será a identificação de um núcleo consensual, do qual resulte um acordo para a especialização do regime jurídico normativamente estabelecido.62

3.2.7 A necessidade de solução flexível: a existência de aspectos