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O direito francês: situações gerais e particulares do usuário

3 A SITUAÇÃO JURÍDICA DO USUÁRIO

3.2 AS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA SITUAÇÃO

3.2.5 O direito francês: situações gerais e particulares do usuário

No direito francês, em que o conceito de serviço público tem significação distinta e abrangência mais ampla do que entre nós,46 distingue-se a situação

do usuário em particular ou geral, conforme haja ou não um ato particular que “se interponha entre as leis, os regulamentos e o uso do serviço”, um “ato

individual que venha estabelecer um liame jurídico individualizável senão específico entre o usuário e o serviço”.47 Esse ato pode ser unilateral ou contratual. Com base nessas premissas, Mescheriakoff formula uma classificação do liame em seis situações distintas, conforme se submetam ao direito público ou ao direito privado. A classificação proposta é a seguinte:48

a) Liames de direito público

a.1) Situação geral legal e regulamentar

O usuário se põe sob o império da regulamentação do serviço pelo mero fato de que irá utilizá-lo, sem que haja qualquer título de investidura que

45 Como explica Celso Antônio Bandeira de Mello, da premissa que no contrato administrativo existem “cláusulas mutáveis” (as regulamentares) e “cláusulas imutáveis” (a parte econômica) resulta que “o contratual seria apenas o que podia ser objeto de pacto e foi pactuado, a saber: a parte econômica convencionada. Logo, só existe contrato com relação a isto. O mais provém de ato unilateral da Administração Pública sob cuja regência coloca- se o particular, sujeitando-se a uma situação cambiável” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo. p. 580).

46 Como afirma Carlos Manuel Grecco, “esclarecer a situação jurídica do usuário tem importância, mas só até certo ponto. As controvérsias suscitadas na doutrina e jurisprudência francesas, por exemplo, apontam essencialmente para dirimir uma questão de distribuição jurisdicional (administrativa ou judicial) alheia à nossa organização institucional” (GRECCO. Potestad tarifaria, control estatal y tutela del usuario. p. 445). 47 MESCHERIAKOFF. Droit des services publics. p. 229, aludindo a lições de J. M. Auby. 48 Uma análise similar é encontrada em AUBY. Le service public. p. 227/233. O exame da

situação dos usuários nos SPA e nos SPIC é feita também por LAUBADÈRE, André de; VENEZIA, Jean-Claude; GAUDEMET, Yves. Traité de Droit Administratif. Paris: L.G.D.J, v.I. 15a. ed. 1999. p. 914/915 e 924/925. Laubadère aponta que o usuário do SPA não tem direito de obter “uma condenação sob a forma de injunção dirigida pelo juiz à administração para fazer funcionar o serviço (princípio da independência da administração frente ao juiz)” (LAUBADÈRE. Traité de Droit Administratif. p. 915). A restrição não se aplica entre nós, sendo copiosa a jurisprudência em sentido contrário. Laubadère também não a aplica aos SPIC, pois os vínculos deles derivados recebem a qualificação jurisprudencial de privados, ainda que sob a crítica da doutrina (LAUBADÈRE. Traité de Droit Administratif. p. 924/925).

produza conseqüências sobre sua situação jurídica face ao serviço. Há uma investidura de fato ou um fato-condição.49

a.2) Situação particular unilateral

O usuário se coloca também sob as leis e regulamentos que regem o serviço, mas entre tais textos e o uso do serviço se interpõe um ato jurídico individual de investidura, de caráter unilateral e condicionado. Na maior parte dos casos, há uma declaração de vontade do usuário de se vincular ao serviço. Mas nem sempre há essa declaração de vontade e, quando há, não é criadora de direitos. A origem da situação jurídica do usuário não é a vontade, mas as leis e regulamentos do serviço. Há um ato-condição.50 Em face da demanda de um candidato a usuário, o serviço público pode exigir: (i) condições de forma (documentação, p. ex.), (ii) condições de fundo (idade, estado profissional etc.) e (iii) condições de fato (p. ex., número máximo de usuários). A avaliação dessas condições não é necessariamente vinculada, podendo haver um espaço de discricionariedade.51 Segundo o autor, o ato de investidura atribui ao usuário essa condição e lhe outorga o direito à sua manutenção. A investidura por tempo determinado não pode ser revogada e uma eventual alteração não se aplica retroativamente ao usuário já admitido.52 A investidura sem prazo

determinado não está protegida contra a alteração superveniente. O interesse da investidura formal “reside portanto nesta melhor proteção do usuário contra

a mutabilidade do regulamento do serviço”.53

a.3) Situação particular contratual

A jurisprudência francesa reconhece o caráter contratual da situação do usuário de alguns serviços públicos, especialmente de correios e telefonia. Há

49 MESCHERIAKOFF. Droit des services publics. p. 230/231. O autor menciona como exemplos o uso do serviço de postagem de cartas (mesmo não gratuito) e o acesso a um museu gratuito. Afirma que neste caso não há direitos subjetivos – embora o próprio autor reconheça que a postagem dá ao usuário o direito ao sigilo da correspondência.

50 Ibid. p. 232/233.

51 Ibid. p. 233/234. Sobre a discricionariedade na prestação do serviço público, cfr. a interessante afirmação de Gilles Jeannot: “A discricionariedade é também uma das dimensões da qualidade do serviço prestado ou da ação pública: ela corresponde à face humana atendida em todas as relações de face a face”. Segundo Jeannot, “uma administração que não deixasse nenhuma margem de apreciação local a seus agentes pareceria insuportável tanto por seu funcionamento pesado quanto por sua falta de humanidade” (JEANNOT. Les usagers du service public. p. 38).

52 Cita-se como exemplo um estudante que recebeu o direito de ocupar um quarto no alojamento de uma universidade pública por um semestre. Não será obrigado a deixar o quarto, mesmo que as novas regras o tenham tornado não-elegível para o benefício. Apenas não terá direito à renovação da ocupação.

críticas doutrinárias, que vêem na situação mero caráter unilateral, mas se afirma que essa situação contratual é “um dado de direito positivo”.54 O

contrato neste caso seria de adesão (por imposição do princípio da isonomia) e administrativo (“pode-se considerar que seu caráter administrativo deriva da

existência de um regime exorbitante do direito comum”). Dessa caracterização

contratual resultam (i) a obrigação da Administração de contratar com todos os pretendentes “dentro do limite das possibilidades técnicas”, (ii) possibilidade de alteração unilateral das cláusulas do contrato, (iii) possibilidade de aplicação de sanções ao usuário, (iv) possibilidade de reconhecimento de excesso de poder na atuação concreta da Administração derivada do contrato.55

b) Liames de direito privado

b.1) Situação pré-contratual de direito privado dos candidatos-usuários No direito francês, a situação de direito privado se põe nos chamados serviços públicos industriais e comerciais. O usuário está na mesma situação de um cliente de empresa privada. Com base na jurisprudência mais recente, Mescheriakoff reconhece efeitos para a situação pré-contratual do usuário, especificamente relativas (i) aos litígios acerca da recusa da Administração em celebrar o contrato, sob o pressuposto de que não pode haver recusa imotivada (dois motivos justificadores seriam a anormalidade da solicitação do candidato ou a sua má-fé), e (ii) ao ressarcimento de danos derivados da recusa em celebrar o contrato.56

b.2) Os usuários dos serviços públicos industriais e comerciais (SPIC) Há uma situação contratual de direito privado. Mesmo que haja cláusulas exorbitantes, o contrato não se caracteriza como administrativo. Os prepostos e co-habitantes do usuário são também considerados usuários. As conseqüências do caráter de contrato privado são (i) regime privado do ressarcimento de danos resultantes da execução do contrato e (ii) a permanência do regime privado mesmo em caso de uso irregular do serviço (uso fraudulento, uso não regulamentar, uso que causa dano).57

b.3) Situação de direito privado dos usuários de serviços públicos

administrativos 54 Ibid. p. 236. 55 Ibid. p. 237/238. 56 Ibid. p. 238/239. 57 Ibid. p. 240/241.

O autor alude a duas situações raras. A primeira é a dos locatários de bens públicos objeto do serviço público de habitação. Embora o serviço seja público, o regime de locação é privado. A segunda se refere a serviços públicos administrativos que funcionam sob regime de direito privado. O exemplo citado é o de um registro civil. Um litígio envolvendo um ato do registro civil, embora não contratual, seria disciplinado pelo direito privado.58

3.2.6 Adaptação da classificação ao regime brasileiro: a variedade de