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2 A IDENTIFICAÇÃO DOS USUÁRIOS DO SERVIÇO PÚBLICO

2.3 DISTINÇÕES RELEVANTES

2.3.12 Usuário e terceiros em relação ao serviço

Saber-se se alguém é usuário ou terceiro destina-se a permitir identificar o regime jurídico aplicável. Há dois momentos principais em que se manifesta a distinção: primeiro, em relação à organização do serviço; depois, em relação aos danos derivados da prestação.

O usuário integra – de modo hipotético, potencial, futuro ou efetivo – uma relação jurídica com o prestador. O terceiro não, embora possa ser afetado pela prestação do serviço. Os usuários detêm direitos específicos quanto à criação e configuração do serviço público.109

Mescheriakoff alude a que, nos serviços de saneamento, o proprietário de um imóvel servido é usuário do seu ramal doméstico, mas é terceiro em relação à rede pública.110 O sentido dessa distinção é o de revelar que um

acidente que cause dano ao sujeito derivado de seu ramal doméstico o afeta como usuário e se submete ao regime próprio. Um acidente ocorrido no ramal público o atinge como atingiria qualquer outro indivíduo, pelo que se submete ao regime geral de responsabilidade patrimonial do Estado. Ainda que a distinção possa não ter, entre nós, todas as derivações que dela se extrai no regime francês, há diferenças entre o regime jurídico do usuário de serviço público e o dos administrados em geral. Justifica-se a preocupação em se estabelecer as distinções necessárias.

109 O tema é tratado no item nº 2.3.2.

A distinção proposta por Mescheriakoff no exemplo citado não pode ser aceita sem ressalvas.

Poderia ser, em tese, reputada admissível em relação aos danos causados pelo serviço, como fez o STF no julgamento do RE 262.651/SP, no qual se assentou que “A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito

privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras que não ostentem a condição de usuários”.111 O voto do relator aplica restritivamente o art. 37, § 6º, da

Constituição, como se extrai do trecho adiante transcrito: “Esta me parece, na

verdade, a melhor interpretação do dispositivo constitucional, no concernente às pessoas privadas prestadoras de serviço público: o usuário do serviço público que sofreu um dano, causado pelo prestador do serviço, não precisa comprovar a culpa deste. Ao prestador do serviço é que compete, para o fim de mitigar ou elidir a sua responsabilidade, provar que o usuário procedeu com culpa, culpa em sentido largo”. Segundo o voto, “A ratio do dispositivo constitucional que estamos interpretando parece-me mesmo esta: porque o ‘usuário é detentor do direito subjetivo de receber um serviço ideal’, não se deve exigir que, tendo sofrido dano em razão do serviço, tivesse de provar a culpa do prestador desse serviço”. Por isso, conclui que “estender a não- usuários do serviço público prestado pela concessionária ou permissionária a responsabilidade objetiva – CF, art. 37, § 6º – seria ir além da ratio legis”.

Esse entendimento prevaleceu por maioria, contra os votos dos Ministros Celso de Mello e Joaquim Barbosa. Em nossa opinião, a interpretação adotada no julgamento é excessivamente restritiva. A premissa adotada deriva da afirmação de Romeu Felipe Bacellar Filho, que distingue, no contrato de concessão, uma relação jurídica entre poder concedente e concessionário e outra, entre este e o usuário, afirmando que nesta incide a responsabilidade objetiva, precisamente porque “é o usuário detentor do direito subjetivo de

receber um serviço público ideal, com todas as garantias e benefícios inerentes à atuação pública, mesmo sendo esse serviço prestado por terceiros que não o Estado”.112 Porém, parece-nos que a afirmação do doutrinador não tem o sentido nem a extensão que lhe deu o julgamento do STF. Afirmar que a responsabilidade objetiva incide nas relações entre o prestador do serviço e o usuário não é o mesmo que dizer que não incide nas relações entre o

111 2ª T., Rel. Min. Carlos Velloso, j. 16.11.2004, maioria. O voto do Relator encontra-se transcrito no Informativo STF nº 370, de 15-19.11.2004.

112 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Interesse Público, nº.6, p., 2000., p. 44/45).

prestador do serviço e terceiros, vítimas de dano provocados por sua atuação comissiva.113 O regime de responsabilidade patrimonial do concessionário do

serviço público é idêntico ao da Administração114: não responde objetivamente

apenas perante os usuários, mas frente a todas as vítimas de sua atuação comissiva.115 116 Esse regime é confirmado pelo art. 17 do CDC, invocável neste caso por refletir o regime administrativo e por compor a norma de atribuição de legitimidade processual para as ações coletivas do CDC: a

113 Em nossa opinião, ao fazer essa extensão, o STF aplicou como se fosse lógico um argumento (o argumento a contrario sensu) que tem natureza ideológica, ou seja, depende da finalidade (valorativa) que se pretende atingir.

114 Nesse sentido, o voto do Min. Carlos Velloso refere-se, discordando, à manifestação de Celso Antônio Bandeira de Mello produzida em manuscrito não publicado, assim lançada: “(...) Quando o Texto Constitucional, no § 6º do art. 37, diz que as pessoas ‘de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes nesta qualidade causarem a terceiros’, de fora parte a indispensável causação do dano, nada mais exige senão dois requisitos para que se firme dita responsabilidade: (1) que se trate de pessoa prestadora de serviço público; (b) que seus agentes (causadores do dano) estejam a atuar na qualidade de prestadoresde serviços públicos. Ou seja: nada se exige quanto à qualificação do sujeito passivo do dano; isto é, não se exige que sejam usuários, nesta qualidade atingidos pelo dano. (...) Com efeito, o que importa, a meu ver, é que a atuação danosa haja ocorrido enquanto a pessoa está atuando sob a titulação de prestadora de serviço público, o que exclui apenas os negócios para cujo desempenho não seja necessária a qualidade de prestadora de serviço público. Logo, se alguém, para poder circular com ônibus transportador de passageiros do serviço público de transporte coletivo necessita ser prestadora de serviço público e causa dano a quem quer que seja, tal dano foi causado na qualidade de prestadora dele. Donde, sua responsabilidade é a que está configurada no § 6º do art. 37”.

115 Há dois comentários acessórios que devem ser feitos. Primeiro, alude-se à atuação comissiva porquanto a atuação omissiva submete-se a disciplina diversa, em que se exige a demonstração da culpa administrativa do prestador, ainda que sujeita a presunções. O segundo é que, mesmo se se pretendesse restringir a responsabilidade objetiva do concessionário às relações com o usuário, isso não excluiria o direito da vítima do evento a buscar ressarcimento, segundo o regime de responsabilidade objetiva, junto ao poder concedente. Em nenhuma hipótese a vítima poderia permanecer sem a indenização adequada. Sobre este último aspecto, pode-se acrescentar que seria possível cogitar de um regime em que, para maior previsibilidade de suas obrigações, o concessionário respondesse apenas perante o usuário, cabendo ao Poder Público responder (como delegante e, assim, responsável pela atuação do concessionário) frente a terceiros alheios ao serviço. Porém, essa solução não parece compatível com o art. 37, § 6º, da Constituição. 116 Ressalve-se a posição parcialmente contrária de Weida Zancaner, que estende aos

concessionários a mesma responsabilidade reconhecida ao Poder Público, mas reputa objetiva a responsabilidade tanto no caso de atos comissivos como no de omissão do prestador (ZANCANER, Weida. Responsabilidade extracontratual das concessionárias de obras e serviços públicos e do Estado concedente. WAGNER JUNIOR, Luiz Guilherme Costa. Direito Público - Estudos em homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey. 2004. p. 761/770.). Sobre a responsabilidade subjetiva por atos omissivos da Administração, cfr. ainda FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 7a. ed. 2004., p. 269/272, com a ressalva de que é, porém, objetiva a responsabilidade pela omissão de fiscalizar a conduta dos concessionários de serviços públicos (o que se reflete nos direitos subjetivos do usuário frente ao poder concedente, na relação trilateral da concessão).

proteção própria de consumidor (inclusive, portanto, as medidas judiciais próprias) é estendida às vítimas da prestação do serviço, pelo que, p. ex., há legitimação extraordinária do Ministério Público ou de associações para propor medidas relativas a danos provocados a terceiros (inclusive no que se refere a trechos públicos de redes de serviço, p. ex.), ainda que não estejam envolvidos interesses diretos de usuários de serviço público.

Em nossa opinião, portanto, o direito do usuário (não do terceiro) de exigir um serviço adequado não se confunde com o direito, que é do usuário e do terceiro, de ser indenizado pelos danos causados pelo prestador do serviço. Embora a inadequação do serviço possa também causar danos ao usuário, o que dará a este um fundamento adicional para ressarcimento, trata-se de situações diversas.

Por outro lado, a distinção proposta por Mescheriakoff em relação aos ramais internos e externos de uma rede não é aceitável em relação à posição do usuário frente à organização do serviço.117 Neste caso, o interesse do usuário individual abrange mesmo a rede pública.118 Não se limita à situação de seu ramal privado. O usuário detém o direito de exigir a conduta adequada mesmo se referida à rede pública.

Em suma, a posição de usuário é denotada pela existência de uma relação jurídica entre ele e o prestador do serviço, tendo por conteúdo a prestação do serviço público. A questão central estará na identificação dessa relação e da sua abrangência. Cogite-se, p. ex., de dois indivíduos em uma estação rodoviária. Um deles aguarda o transporte público, o outro assiste a um espetáculo artístico. Apenas o primeiro é usuário de serviço público e se submete a esse regime próprio. O segundo é usuário de um bem público: não têm qualquer vínculo, nem mesmo potencial, com a prestação do serviço.119

117 Um outro ângulo da questão foi examinado pela Corte Especial do TRF-4ª Região ao julgar a Arg.Inc. na MAS 2002.72.05.002803-3/SC (Rel. para o acórdão Des. Fed. Luiz Fernando Wowk Penteado, j. 26.8.2004, maioria, DJ 8.9.2004). Reconheceu-se que o chamado “seguro-apagão” tinha natureza tarifária porque se relacionava com etapas anteriores do serviço, ainda que não tivesse vínculo direto com a parcela do serviço visível para o usuário. Esse entendimento confirma a relevância das etapas logicamente anteriores de organização do serviço.

118 Veja-se, p. ex., o caso examinado pelo STJ no REsp 302.484/RJ (Rel. Min. Barros Monteiro, j. 16.9.2004), atinente à interrupção de serviço telefônico provocada pelo rompimento de um cabo externo.

119 Essa distinção pode ser relevante, como se apontou, para a definição dos limites da responsabilidade do prestador. Anote-se que, mesmo em relação ao usuário, o STJ tende a aplicar restritivamente a responsabilidade objetiva do prestador (prevista tanto no CDC quanto no art. 37, § 6º, da Constituição). Assim, no REsp 402.708/SP, o STJ assentou que o prestador do serviço de transporte (no caso examinado, metrô) não é responsável por indenizar vítima de homicídio ocorrido em uma estação, ainda que se tratasse de