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A situação estatutária: não-caracterização de relação de sujeição

3 A SITUAÇÃO JURÍDICA DO USUÁRIO

3.3 A SITUAÇÃO DO USUÁRIO É PREDOMINANTEMENTE (MAS

3.3.5 A situação estatutária: não-caracterização de relação de sujeição

Convém investigar um ponto adicional. A alusão a uma situação estatutária do usuário reafirma a sua submissão a alterações unilaterais78

produzidas pelo poder concedente. Isso evoca a noção de relação de sujeição

especial, que é importante examinar.79

A idéia de relação de sujeição especial vincula-se a uma redução da subordinação da Administração à lei em situações nas quais determinadas pessoas encontram-se peculiarmente afetadas à autoridade administrativa. Exemplos comuns são os dos detentos, dos internados em hospitais públicos e

76 Os arts. 106 e 107 da Lei nº 9.472/1996 são um bom exemplo, assegurando a possibilidade de benefícios tarifários determinados pela concessionária, desde que observados certos parâmetros.

77 Cogite-se, p. ex., de campanhas publicitárias destinadas a obter maior adesão dos usuários aos serviços de um prestador específico. O conteúdo de tais campanhas está alheio à conduta especificamente regulada e se insere num espaço de liberdade do prestador. Dessa publicidade podem derivar direitos que o usuário pode fazer valer frente ao prestador ou ao poder concedente.

78 Muito embora tais alterações, além de sujeitar-se aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, subordinem-se a procedimento de que o usuário tem direito de participar, ainda que em condições diversas das que se aplicam ao concessionário. Sobre o tema, cfr. GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Alteração Unilateral do Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 223.

79 As relações de sujeição especial são objeto de exame de Celso Antônio Bandeira de Mello, que conclui pela sua aplicação restrita a casos limitadíssimos, com submissão a pressupostos positivos e negativos detalhados (BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo. p. 753/758). Sobre o tema, cfr. ainda LASAGABASTER HERRARTE, Iñaki. Las relaciones de sujeción especial. Madrid: Civitas. 1994.; PAREJO ALFONSO, Luciano. La categoria de las relaciones especiales de sujeción. MUÑOZ, Guilhermo Andrés; SALOMONI, Jorge L. Problemática de la Administración Contemporánea. Buenos Aires: Ad- Hoc. 1997. p. 133/150.; SALOMONI, Jorge Luis. La cuestión de las relaciones de sujeción especial en el Derecho público argentino. MUÑOZ, Guilhermo Andrés; SALOMONI, Jorge L. La problemática de la Administración Contemporánea. Buenos Aires: Ad-Hoc. 1997. p. 151/179. Especificamente sobre a aplicação (ou não) desse conceito aos usuários de serviço público, cfr. SALOMONI, Jorge Luis. Teoria general de los servicios públicos. Buenos Aires: Ad Hoc. 1999., p. 402/403, e ALESSI. Le prestazioni amministrative rese ai privati. p. 187.

os dos alunos de escolas públicas, que se submetem a regulamentos especiais, cuja base em lei é remota. Segundo a noção de sujeição especial, em tais casos não se haveria de exigir fundamento legal direto para o estabelecimento de regras específicas de comportamento no presídio, de higiene no hospital ou de empréstimo de livros na biblioteca da escola.

O problema da teoria não é apenas o da sua aplicação a esses casos centrais (que já seria questionável frente ao sistema constitucional), mas em particular a sua indeterminação, que a torna aparentemente invocável em uma série indefinida de situações. Celso Antônio Bandeira de Mello indica que a teoria pode efetivamente ser aplicada, sempre de modo muito limitado, aos casos que claramente recaem no seu campo de incidência – e ainda assim apenas em face do compromisso com a realidade e diante da ausência de construção teórica adequada para explicar as situações confinadas ao núcleo específico dessa noção de sujeição especial.80

Porém, a sua extensão indevida propõe riscos de grave infração a princípios fundamentais. Conforme denunciam Luis Miguez Macho81 e Iñaki Lasagabaster Herrarte,82 esse risco tornou-se dano concreto na Espanha, onde

a jurisprudência absorveu acriticamente essa teoria, ignorando até mesmo sua evolução posterior na própria Alemanha, onde surgiu e foi posteriormente mitigada pela afirmação da vigência dos direitos fundamentais e do princípio da legalidade também nas relações de sujeição especial.83

80 Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “enquanto não construirmos categorias próprias para explicar detidamente as aludidas situações, há que aceitar a categoria das relações especiais de sujeição – ainda que bastante reformadas em relação a sua formulação de origem –, de tal sorte que todas as discussões erigíveis ao respeito delas, para se manterem dentro do campo de um impostergável realismo, cifrar-se-ão a indagar sobre as condições e limites de exercício dos poderes que comportam” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo. p. 756).

81 MACHO. Los servicios públicos y el régimen jurídico de los usuarios. p. 177. 82 LASAGABASTER HERRARTE. Las relaciones de sujeción especial. p. 421/422.

83 Herrarte é especialmente contundente: “Tal foi a abundância de casos em que o TS [Tribunal Supremo] utilizou a categoria que se entenderam como RSE [Relações de Sujeição Especial] as atividades submetidas a uma simples autorização administrativa. A atuação do TS não pode ser entendida nada mais que como uma fuga para a frente. A um possível desatino do legislador ou da Administração se responde com outro desatino ainda maior, de tal modo que a categoria RSE perde todos os seus possíveis contornos. De estar circunscrita aos militares, presos, estudantes e funcionários, a RSE passa agora a ser o status ordinário dos cidadãos” (...) “Acudir às RSE é uma solução fácil e muito pouco rigorosa, além de duvidosamente compatível com o texto constitucional. Em definitivo, considera-se que as RSE são uma categoria justificável historicamente, assumida acriticamente e útil judicialmente. Sua utilização tem solucionado os mais variados problemas interpretativos, sem maior esforço de argumentação. Com ela se pode fazer referência a todas aquelas situações nas quais o cidadão se encontra em uma situação de ‘dependência acentuada’, o que se produzirá sempre que o cidadão tenha uma relação

Com base na lição de Renato Alessi,84 Luiz Miguez Macho aponta que só é possível falar-se em relação de sujeição especial do usuário nos casos em que a prestação do serviço público exige o internamento continuado do usuário em um estabelecimento público. Nessa situação é que se poderia aludir a alguma modulação específica dos limites para a restrição de direitos e liberdades individuais do usuário. Nos demais casos, os limites gerais da atuação administrativa seriam plenamente aplicáveis.85

Na nossa opinião, não há necessidade de se recorrer à controvertida e perigosa noção de relação de sujeição especial para se estabelecer os limites da relação jurídica entre usuário e prestador neste caso. A disciplina concreta do serviço ou (a) será estipulada normativamente, com base na competência regulamentar da Administração ou (b) derivará de ato consensual entre o prestador e o usuário (p. ex., a adesão a normas de funcionamento de uma biblioteca). Não tem por fundamento nenhum exercício potencializado de supremacia pública nem se baseia em uma mitigação dos limites jurídicos da atuação administrativa.

A atribuição legal de competência administrativa para modificar o regulamento do serviço e, com isso, afetar a posição do usuário será mais ou menos genérica (ou seja, haverá mais ou menos cláusulas gerais no texto legal) conforme a necessidade de cumprimento da finalidade atribuída à Administração. A localização do ponto ótimo entre a especificidade e a generalidade exigíveis do texto legal é baseada nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a fim de que não haja sacrifício indevido das garantias constitucionais do usuário. Esse ponto já é objeto de construção doutrinária na teoria do regulamento administrativo, que alude a regulamentos contingentes para identificar casos em que se dá, sem frustração do princípio da legalidade, maior amplitude à competência normativa da Administração. Aludir-se a uma relação de sujeição especial nestes casos apenas se presta a legitimar uma figura sem apoio constitucional e que, no direito comparado, tem sido

jurídica com a Administração. Se algumas relações jurídicas produzem uma maior intensidade da dependência, dificilmente poderá deduzir-se disso conseqüências jurídicas” (Ibid. p. 425).

84 “O que está a demonstrar como o conceito de sujeição pessoal especial do usuário, derivado de uma relação de prestação administrativa, pressuponha necessariamente, sobretudo, uma participação pessoal – no sentido de que a participação deve ocorrer mesmo com a intervenção da pessoa física do usuário – do usuário mesmo na realização da prestação, um contato pessoal – diria quase, físico – contato este tendo um caráter de uma certa, relativa, permanência e continuidade, do usuário com a autoridade ou ente que efetua a prestação” (ALESSI. Le prestazioni amministrative rese ai privati. p. 187).

empregada em situações muito distantes do seu núcleo principal, afetando negativamente os limites postos à ação administrativa.86

Como destaca Jorge Luis Salomoni, os fundamentos da noção de sujeição especial (vinculação especial do administrado à Administração, déficit de legalidade e diminuição dos direitos fundamentais) são incompatíveis com o sistema constitucional e com qualquer princípio de legitimidade.87 Já em ocasião anterior, o autor destacara que “a regulação das relações entabuladas

entre consumidores e usuários de bens e serviços e o produtor, distribuidor, comercializador e prestador em sentido amplo destes bens e serviços, assim como a intervenção estatal e privada de controle, está reservada à lei como surge claramente do art. 42, terceiro parágrafo [da Constituição argentina]”.88

No Brasil, a questão é igualmente clara. Primeiro, nem há que se buscar qualquer confirmação de reserva legal, pois o campo normativo da lei entre nós

86 Um bom exemplo é o que ocorreu na Espanha, que introduziu essa teoria em sua prática jurídica sem atentar nem mesmo para a evolução do tema na Alemanha, onde já não tinha a extensão pretendida pelos espanhóis. Passou-se a se reconhecer indiscriminadamente a existência de relações de sujeição especial, com o efeito de quebra da legalidade. É o risco da importação indevida de construções jurídicas estrangeiras. Esse risco pode ser especialmente gravoso entre nós, diante da tendência de apropriação de princípios estrangeiros sem qualquer atenção aos seus reais limites na origem. É o que denuncia Sérgio Buarque de Holanda acerca da característica nacional de adesão a formas, regulamentos e teorias como se da “sabedoria e sobretudo da coerência das leis depende[sse] a perfeição dos povos e dos governos”. Tratando do processo de independência dos países ibero-americanos, aponta que “As palavras mágicas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade sofreram a interpretação que pareceu ajustar-se melhor aos nossos velhos padrões patriarcais e coloniais, e as mudanças que inspiraram foram antes de aparato que de substância. Ainda assim, enganados por essas exterioridades, não hesitamos, muitas vezes, em tentar levar às suas conseqüências radicais alguns daqueles princípios” (HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. 22a. ed. 1991. p. 134). Naturalmente, essa constatação não deve levar ao ceticismo de se duvidar da normatividade dos nossos textos legais. A advertência serve para que se busque a construção prática do Direito, atentando-se para que a perfeição e coerência dos textos não se traduzem na justeza da prática. O Direito deve ser construído na implementação viva dos textos normativos. Serve também para que se tenha na devida conta o risco de apropriação de novas teorias que possam incorporar-se a esse quadro de “formas perfeitas” – com o especial risco derivado do caráter potencialmente autoritário da teoria da sujeição especial.

87 SALOMONI. Teoria general de los servicios públicos. p. 402/403.

88 SALOMONI, Jorge Luis. La cuestión de las relaciones de sujeción especial en el Derecho público argentino. MUÑOZ, Guilhermo Andrés; SALOMONI, Jorge Luis. Problemática de la administración contemporánea. Buenos Aires: Ad-Hoc. 1997. p. 153/179. p. 175. O autor indaga: “Se se parte dos princípios que nascem da supremacia da Constituição, e com eles de um especial sistema de repartição de poderes; da vinculação portanto desses poderes ao marco normativo constitucional; da declaração de direitos que opera como prioritária ante o poder ou de uma autoridade superior, já que constituem a regra e a sua limitação, a exceção, sempre dentro das normas constitucionais, pode-se falar da possibilidade de existência de uma relação de sujeição especial com as características mencionadas anteriormente? A resposta é contundente: não” (SALOMONI. La cuestión de las relaciones de sujeción especial en el Derecho público argentino. p. 178).

é total. Depois, o art. 37, § 3º, da Constituição e o art. 27 da EC nº 19/1998 não deixam qualquer dúvida quanto à necessidade de lei para regular as relações entre usuários e prestadores de serviço público.

Mas o ponto central é o de que a própria noção de relação de sujeição

especial entra em conflito com a estrutura construída constitucionalmente para

o controle da Administração.

Deve-se, portanto, acolher a recomendação de Iñaki Lasagabaster Herrarte: “na atualidade esta categoria está necessitada de uma profunda

reconsideração doutrinária e jurisprudencial. Esta reconsideração deveria levar a seu definitivo abandono. Sua utilização, como se tentou deixar manifesto, provoca mais problemas do que os evita, é caprichosa e, especialmente, produz uma grande insegurança jurídica. Daí que se propõe o seu definitivo abandono. A Constituição e as normas gerais de interpretação aportam os instrumentos bastantes para tornar desnecessário acudir às denominadas, descritivas e juridicamente dificilmente definíveis relações de sujeição especial”.89

A noção de situação estatutária em que estão os usuários não guarda qualquer vínculo com a idéia de relação de sujeição especial. A uma, a situação jurídica dos usuários é plenamente regulada e submetida integralmente aos limites da atuação da Administração Pública. A duas, as relações de sujeição especial não são admissíveis em nosso sistema constitucional. A três, mesmo os autores estrangeiros que as admitem (limitadamente) no campo do serviço público, restringem sua configuração apenas às situações em que o usuário está fisicamente submetido a internamento continuado junto ao prestador como requisito para o desfrute do serviço – situação que pode ser satisfatoriamente explicada, em termos jurídicos, sob o prisma da competência regulamentar da Administração.90

Em aprofundado acórdão relatado pelo Des. Fed. Mairan Maia, o TRF-3ª Região examinou questão similar, atinente à situação dos consumidores em planos de saúde. Reputou que as operadoras de planos de saúde estão em situação de relação de especial sujeição frente à ANS, mas que “os

consumidores não se sujeitam a este poder especial de sujeição, sendo afetados tão-somente em função da finalidade atribuída por lei à ANS de tutela

89 LASAGABASTER HERRARTE. Las relaciones de sujeción especial. p. 425/426.

90 Os exemplos óbvios seriam os de internação hospitalar e de permanência em escola pública. Veja-se que ambos referem-se, no Brasil, a serviços prestados diretamente pelo Poder Público, pois tais serviços tornam-se privados – não objeto de concessão ou permissão – se prestados por particulares.

de seus particulares interesses como categoria”.91 Ainda que tenha aplicado o conceito às operadoras – o que nos parece inadequado pelas razões já expostas92 –, a decisão exclui defitivamente sua aplicação aos usuários do

serviço.