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Serviços em regime administrativo e serviços em regime privado

3 A SITUAÇÃO JURÍDICA DO USUÁRIO

3.2 AS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA SITUAÇÃO

3.2.4 Serviços em regime administrativo e serviços em regime privado

espanhola no desenvolvimento da idéia de que os serviços públicos podem ser prestados mediante relações jurídicas, algumas submetidas ao direito público e outras (parcialmente) ao direito privado. Conclui que, na Itália, são reconhecidas tradicionalmente relações contratuais de obrigação nos serviços públicos prestados em regime jurídico privado.33 A necessidade de se

30 A noção de serviço público industrial e comercial surgiu com o acórdão Bac d’Eloka, de 1921, do Tribunal de Conflitos. Luiz Miguez Macho anota que “a distinção mencionada responde à necessidade do direito francês de encontrar, ante o silêncio legal sobre a questão, uma regra segura para a distribuição da competência entre a jurisdição administrativa e a ordinária, problema que não se apresenta em termos idênticos nos outros países” (MACHO. Los servicios públicos y el régimen jurídico de los usuarios. p. 161). Sobre a delimitação de competências no direito francês e sua vinculação com a qualificação do serviço público, cfr. AUBY, Jean-François; RAYMDIE, Olivier. Le service public. Paris: Le Moniteur. 2003. p. 63/64 e 69/73.

31 Note-se que Almiro do Couto e Silva rejeita essa distinção rigorosa (SILVA, Almiro do Couto e. Privatização no Brasil e o novo exercício de funções públicas por particulares. Serviço público "à brasileira"? Revista de Direito Administrativo, nº.230, p. 45/74. out/dez, 2002., p. 58, nota 24).

32 Essa, aliás, é a conclusão que se extrai da lição de Renato Alessi acerca da natureza das prestações realizadas pelo Poder Público em favor dos administrados, que são qualificadas como de natureza “normalmente publicística”, enquanto inerentes à realização de um serviço público, “devendo-se limitar o âmbito do direito privado, quando menos como disciplina fundamental da relação, às relações de prestação que se referem a serviços efetuados pelos assim chamados entes públicos econômicos” (ALESSI, Renato. Le prestazioni amministrative rese ai privati. Milano: Giuffrè. 2a. ed. 1956. p. 85-86).

33 MACHO. Los servicios públicos y el régimen jurídico de los usuarios. p. 164/165. Na nota 16, o autor reporta-se às exposições de Barettoni Arleri e Fresa sobre o tema, que teriam superado a opinião de Renato Alessi citada acima.

reconhecer a distinção derivaria da impossibilidade de uma relação administrativa entre um concessionário e um usuário, ambos pessoas privadas.34 Para Luiz Miguez Macho, essa distinção seria tão rigorosa que nem

mesmo se poderia aludir a um regime misto. Afinal, uma análise precisa mostraria dois momentos inconfundíveis: a organização e gestão do serviço, subordinada a um regime jurídico-público, e a “relação contratual de Direito

privado que se estabelece entre o ente gestor e os usuários, e que é precisamente a nota distintiva do regime jurídico-privado de prestação”.35 Por

isso, produz uma distinção entre serviços prestados diretamente pelo Poder Público (em “regime de direito administrativo”36) e serviços prestados por meio de delegação (em “regime de direito privado”37). No primeiro caso, há um ato vinculado de admissão e normas administrativas de funcionamento do serviço.38 No segundo, há um contrato de adesão,39 caracterizado por algumas

peculiaridades: (a) a impossibilidade de discutir seu conteúdo e imposição do princípio da isonomia entre os usuários,40 (b) há intervenção legislativa e administrativa sobre o conteúdo do contrato para assegurar a igualdade, a eqüidade e a razoabilidade do regramento contratual,41 (c) há uma obrigação

de contratar por parte do prestador do serviço, o que aproxima a situação dos chamados contratos forçados,42 e (d) a lei ou o Poder Público titular do serviço

34 “Com efeito, parece indiscutível que, se o ente gestor de um serviço público tem personalidade jurídico-privada (ou a tem de Direito público, mas atua nas transações jurídicas regendo-se pelo Direito privado), sua relação com os usuários se vai instrumentar de modo necessário através de técnicas também jurídico-privadas, exceto nos casos em que aquele faça uso de potestades delegadas de modo expresso pela Administração. É certo que essa relação vai estar fortemente condicionada pela interferência em todas as suas fases da Administração titular do serviço público cuja prestação constitui o objeto do contrato celebrado, mas isto não modifica a natureza jurídico-privada da mesma, posto que a Administração intervém não como parte da relação, mas como Poder Público situado em uma situação de superioridade sobre o ente gestor e usuários” (Ibid. p. 165).

35 Ibid. p. 166. 36 Ibid. p. 166/178. 37 Ibid. p. 178/204.

38 A situação jurídica dos usuários seria uma “relação de obrigação pública, que nasce diretamente das normas do serviço e do ato vinculado de admissão” (Ibid. p. 174).

39 Ibid. p. 179. 40 Ibid. p.190. 41 Ibid. p. 190.

42 Ibid. p. 193. Segundo o autor, não haveria contrato forçado neste caso porque a obrigação de contratar do concessionário não derivaria de lei, mas da assunção voluntária dessa obrigação por meio do contrato de concessão. Desse modo, não se aplicaria a teoria civilista que nega o caráter contratual dos contratos forçados (MACHO. Los servicios públicos y el régimen jurídico de los usuarios. p. 193/194). Sobre o tema dos contratos forçados, cfr. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Serviços públicos e concorrência. Revista de

público podem alterar a qualquer tempo as normas relativas à prestação ou à gestão do serviço, o que é tomado como factum principis em relação ao contrato entre usuário e prestador ou, nos casos em que este contrato remete expressamente seu conteúdo a definições administrativas supervenientes, é incorporado de modo automático pelo contrato (como no caso do reajuste de tarifas).43 O autor reconhece que essa última característica tem levado a doutrina espanhola – tal como, aliás, a doutrina brasileira – a reconhecer o caráter regulamentar (estatutário) da situação do usuário. Porém, o que o autoriza a afirmar a natureza contratual é a circunstância de que o contrato não pode ser alterado por nenhuma das partes (prestador e usuário), mas sim pela intervenção do Poder Público, que edita normas modificativas dos direitos de ambas as partes.44

Desde logo, pode-se apontar que há uma diferença de premissas entre a exposição de Luiz Miguez Macho e o presente estudo. Aqui, reconhece-se o caráter trilateral da relação jurídica resultante da concessão de serviços públicos. Desse modo, o conteúdo do vínculo entre prestador e usuário é alterado pelo poder concedente, que é efetivamente uma das partes da relação jurídica (complexa) da concessão. Porém, isso em si não é suficiente para que se negue o caráter contratual do vínculo. Utiliza-se a figura do contrato

administrativo precisamente para denotar uma atuação consensual da

Administração Pública caracterizada pela possibilidade de instabilização do

vínculo, de alteração unilateral das condições mutáveis do contrato. Nesse

caso, o caráter contratual deriva da existência de um núcleo imutável, Direito Público da Economia - RDPE, nº.2, p. 59/124. abr/mai/jun, 2003. p. 116/118. Segundo lições coligidas por Aragão, os contratos forçados são tradicionalmente vistos como ficções destinadas a refletir a aplicação, a tais contratos forçados, de certas normas do direito das obrigações (GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2a. ed. 1980. p. 17/19). Além disso, a recusa de seu reconhecimento como contratos derivaria de uma atitude refratária acerca da evolução dos conceitos, baseada na ilusão da certeza e na noção de que o direito seria algo absoluto e eterno, integrado por definições corretas e imutáveis (GRAU, Eros Roberto. Um novo paradigma dos contratos? Curitiba: Unibrasil, 2001. Disponível em: http://www.unibrasil.com.br/asite/documentos/critica/18/H.doc. Acesso em: 15/7/2004. item 7). Cfr. ainda NALIN, Paulo Roberto Ribeiro. Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá. 2001. p. 168.

43 MACHO. Los servicios públicos y el régimen jurídico de los usuarios. p. 199/200.

44 “Em definitivo, os contratos de prestação dos serviços públicos são lex inter partes e não podem ser modificados unilateralmente por nenhuma delas. Questão à parte é que se achem mais expostos que os contratos que se celebram no marco do livre mercado a sofrer alterações pela intervenção dos Poderes Públicos, devido ao caráter também público da titularidade da atividade que formalizam. Só neste último ponto existe uma verdadeira singularidade, mas não se pode olvidar que as modificações se vão impor por igual às duas partes da relação, inclusive quando a proposta de mudança parte de uma delas, como sói acontecer na aprovação administrativa de tarifas dos serviços públicos” (Ibid. p. 200/201).

consistente na equação econômico-financeira inicialmente estabelecida e cujos termos derivam de um acordo de vontades.45

A questão aqui será, portanto, determinar se há um núcleo efetivamente consensual no vínculo entre usuário e prestador do serviço.