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Este estudo não formulará, em capítulos específicos, definições acerca de certos institutos pressupostos para o desenvolvimento das análises indicadas no item anterior.

Conceitos como os de serviço público e delegação de serviço público são expostos operacionalmente, ao longo do texto e na medida necessária para a evolução do raciocínio. Em lugar de se formular um conceito próprio inicial, universalmente aplicável, optou-se pela demonstração pontual dos aspectos de convergência e divergência do entendimento aqui defendido em relação a outros conceitos tomados como paradigma. O capítulo final retoma os principais pontos expostos e consolida essas noções nos limites em que são pertinentes ao objeto central do estudo.

Deve-se fazer um esclarecimento inicial, contudo, acerca da expressão

aspectos econômicos, que qualifica o objeto deste trabalho.

Marçal Justen Filho menciona a dificuldade em se estabelecer um conteúdo substancial para a idéia de matéria ou atividade econômica.39 Porém, identifica ao menos uma faceta econômica no serviço público, tendo em vista que “envolve uma alocação de recursos materiais (escassos) para satisfação

de certas necessidades humanas. Como esses recursos materiais comportam diferentes destinações, impõe-se escolher um destino para eles, dentre os diversos possíveis”.40

38 É o que Chevallier afirma, p. ex., em relação à idéia de que as necessidades dos usuários estariam no centro do serviço público: tais necessidades são, na realidade, definidas e criadas pela Administração, que as imputa então aos usuários se refere a elas como “necessidades dos usuários” justamente para beneficiar-se dessa fonte de legitimidade (Ibid., p. 51/52.

39 O autor refere-se às lições de Galgano e Comparato. Este último afirma que “Até hoje, ninguém ainda conseguiu definir, precisamente, em que consiste a matéria econômica. Todos concordam, sem dúvida, com o fato de que a economia tem a ver com a produção e a distribuição da riqueza, a formação de preços, a determinação da renda nacional e o nível de emprego. A dificuldade principia, porém, quando se pensa que o próprio conceito de ‘riqueza’ ... tem evoluído e compreende hoje, além dos bens materiais, certos bens culturais, ademais de condições sociais de vida, tais como a educação, a saúde ou a segurança pública” (JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética. 2003., p. 19). A incerteza quanto à noção de economia é destacada também por Laubadère (LAUBADÈRE, André de. Direito Público Económico. Coimbra: Almedina. 1985. p. 18).

Esse ponto corresponde a um dos enfoques que o presente estudo pretende examinar com o que denomina aspectos econômicos dos serviços públicos.41 O Capítulo 5 ocupa-se exatamente das decisões alocativas, pelas

quais o Estado deve atender interesses ilimitados com recursos escassos. Examina-se de que modo o usuário é afetado por essas escolhas – mais especificamente, qual a posição jurídica do usuário em face dessas escolhas, o que se reflete, em certos casos, na exclusão da possibilidade de escolha e no dever de atendimento de interesses individuais a despeito da escassez dos

recursos passíveis de alocação. Desse modo, essa análise é inequivocamente

vinculada a aspectos econômicos dos serviços públicos.

O segundo ângulo do exame poderia ser mais propriamente denominado um aspecto financeiro dos serviços públicos. Relaciona-se fundamentalmente com os mecanismos de remuneração do prestador do serviço e com seus reflexos sobre o usuário. Discutem-se as várias conformações possíveis para que o usuário assuma a responsabilidade individual pelo uso do serviço, especificamente no que se refere à contribuição financeira para o seu custeio. Não se trata mais de uma decisão alocativa, mas dos meios jurídicos para a sua concretização. Decide-se (no plano normativo) pela outorga de um certo serviço em concessão, com subsídio público destinado a reduzir as tarifas. Isso envolve duas decisões alocativas: destina-se dinheiro público (não oriundo do usuário) para o custeio do serviço, prestigiando-se esta destinação em cotejo com outras possíveis, e vincula-se uma parte da receita privada (o montante da tarifa que o particular deverá despender) a essa mesma destinação, impondo- se a este um ônus econômico. A partir dessa decisão, implanta-se um mecanismo de percepção da receita privada (taxa ou tarifa ou, eventualmente, outros instrumentos), cada qual com seu regime jurídico próprio. Esse segundo aspecto é mais relacionado com o fluxo de dinheiro do que com a aplicação de recursos escassos. Daí o cabimento em se aludir a um aspecto financeiro do serviço público.

Contudo, a vagueza própria da expressão “econômico” favorece e não impede o seu uso com o sentido largo de abranger tanto os aspectos atinentes às decisões alocativas quanto ao fluxo de pagamentos relativos ao serviço público. É com esse sentido amplo que se alude, neste estudo, a aspectos

econômicos do serviço público. Não se reputa adequado restringir o objeto da

41 Manuel Afonso Vaz, ao delimitar o objeto do direito econômico, alude à atividade econômica produtiva como “o processo produtivo organizado – conjunto de actos de sucessiva transformação dos bens naturais escassos até adquirirem a qualidade de bens adequados ao consumo” (VAZ, Manuel Afonso. Direito Económico - a ordem económica portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora. 4a. ed. 1998. p. 28).

análise à posição jurídica do usuário em face de tais aspectos econômicos do serviço público. Essa posição jurídica é analisada de modo mais abrangente, como se extrai dos capítulos 2, 3 e 4 deste trabalho. Considera-se que, ao referir-se paralelamente aos dois núcleos do trabalho (posição jurídica do

usuário, de um lado, e os aspectos econômicos do serviço público, de outro), o

título retrata do modo mais apropriado os objetivos deste estudo.

A preocupação central da análise dos aspectos econômicos do serviço público dirige-se aos serviços de natureza social (saúde, educação, saneamento, transportes, limpeza urbana).42 A maior parte dos exemplos e exames de casos concretos é oriunda dessas áreas. Contudo, não se considerou adequado restringir também o título desse modo, uma vez que a análise realizada é aplicável, em sua quase totalidade, a serviços públicos de outra natureza. Mesmo serviços públicos com forte conteúdo econômico, como os vinculados a telecomunicações ou energia elétrica, têm sua existência justificada pelo vínculo com a realização de direitos ou valores fundamentais da Constituição. Além disso, ao se examinar a posição jurídica do usuário, a natureza de seu vínculo com o prestador (delegatário ou não) do serviço e os limites e fundamentos para a interferência do direito do consumidor sobre a situação jurídica do usuário de serviços públicos, realiza-se investigação e adotaram-se conclusões aplicáveis à generalidade dos serviços públicos. Desse modo, embora se compreenda e subscreva a opinião segundo a qual há

serviços públicos, não um serviço público (o que significa haver vários regimes

jurídicos, não um regime universalmente aplicável), reputa-se cabível, nos limites deste estudo, aludir-se a um objeto referido aos serviços públicos em geral.

Além disso, o exame de tais aspectos econômicos é necessariamente limitado pela finalidade deste estudo. A análise foi centrada nos pontos vinculados à idéia de participação do usuário em uma relação jurídica concreta

42 Marçal Justen Filho classifica os serviços públicos em sociais (“aqueles que satisfazem necessidades de cunho assistencial, tal como a educação, a assistência, a seguridade”), comerciais e industriais e culturais (JUSTEN FILHO. Curso de Direito Administrativo., p. 499). Embora se deva adotar com cautela uma classificação dessa natureza, em face do risco de confusão com classificações estrangeiras similares (p. ex., serviços públicos administrativos e serviços públicos industriais e comerciais, na França), concebidas em face de regimes diversos e com propósitos inexistentes no Brasil (p. ex., definir a jurisdição competente, o que para nós não faz sentido), isso denota a percepção de que há uma distinção entre várias espécies de serviço em face da necessidade a ser satisfeita. A noção de serviços sociais que adotamos é mais ampla que a do doutrinador citado, que enquadra como comerciais e industriais as prestações relativas a saneamento, transportes e limpeza urbana. Uma classificação material semelhante à adotada por Marçal Justen Filho é encontrada em DUPUIS, Georges; GUÉDON, Marie-José; CHRÉTIEN, Patrice. Droit administratif. Paris: Armand Colin. 8a. 2002. p. 497/500.

envolvendo o prestador do serviço ou o seu titular. Não se pretende uma

exposição exaustiva acerca de cada tópico desses aspectos econômicos, mas a demonstração do modo como se manifesta a relação jurídica de serviço público em relação a ele. Isso é perceptível na análise das tarifas e taxas de serviço, objeto do Capítulo 6.

Por fim, procuramos observar, na medida do possível, a advertência de Cass Sunstein de que “as pessoas freqüentemente concordam nas práticas

mesmo quando discordam nas teorias”.43 Busca-se dar menos importância às

divergências de cunho teórico – embora a exposição e a proposição de soluções de algumas dessas divergências sejam necessárias e ocupem uma parcela significativa deste estudo – e focalizar a análise nas suas conseqüências concretas.

43 O trecho original é mais longo: “O ponto mais amplo é que, para muito fins, é desnecessário resolver as disputas mais profundas para que se possa fazer um grande progresso na via social e política. As pessoas freqüentemente concordam nas práticas mesmo quando discordam nas teorias. Estão de acordo sobre o que fazer mesmo em meio a desacordo ou incerteza sobre porque devem fazê-lo”. Sunstein adota essa premissa para concluir que “os direitos mais fundamentais devem ser vistos como instrumentos pragmáticos concebidos para proteger interesses humanos importantes, independentemente de como sejam definidos” (SUNSTEIN. The second bill of rights., p. 177/178).