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2 A IDENTIFICAÇÃO DOS USUÁRIOS DO SERVIÇO PÚBLICO

2.3 DISTINÇÕES RELEVANTES

2.3.2 Usuário hipotético e usuário real

A noção de usuário hipotético diz respeito ao momento de criação e configuração do serviço.54 O usuário hipotético é aquele que, integrado ao

serviço público, possibilitará a realização dos valores fundamentais que a prestação do serviço pretende atingir. É o instrumento, identificado abstratamente, para o atingimento de tais propósitos.

Seria possível cogitar de serviços cuja finalidade se exaurisse na própria satisfação do usuário. Mas a generalidade dos serviços públicos destina-se a realizar valores que transcendem o interesse do usuário. Pode-se dizer que o que caracteriza o serviço público é exatamente a existência de valores subjacentes, tornando a prestação e o uso do serviço instrumentos para a

50 Sobre a ausência de significações certas para as palavras e conceitos jurídicos, cfr. JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1986. p. 11/15.

51 Para Eros Roberto Grau, a finalidade dos conceitos jurídicos é “não o conhecimento ou uma descrição da essência de coisas, estados e situações, mas a viabilização da aplicação, a uma coisa, estado ou situação, de uma determinada ou de um determinado conjunto de normas jurídicas” (GRAU, Eros Roberto. Nota sobre os conceitos jurídicos. Revista de Direito Público, nº.74, p. 217/221. abr-jun/85, 1985. p. 220. Note-se que, como afirma George J. Stigler, “as definições não oferecem nenhum conhecimento sobre o mundo real, mas elas de fato influenciam as impressões sobre o mundo” (STIGLER, George J. Memoirs of an unregulated economist. Chicago: The University of Chicago Press. 1985. p. 94). Portanto, embora estipulativas e sem correspondência com uma realidade pré-existente, as definições devem ser formuladas com a cautela de que influenciam o pensamento e a percepção sobre a realidade.

52 MESCHERIAKOFF. Droit des services publics. p. 225/226. 53 GUGLIELMI. Droit du Service Public. p. 481/482.

54 Segundo Sophie Nicinski, “O serviço público vai ao encontro de seus usuários potenciais, eventuais, não ainda designados, mas que são hipoteticamente considerados como existentes” (NICINSKI, Sophie. L'usager du service public industriel et commercial. Paris: L'Harmattan. 2001. p. 89).

realização desses valores.55 Ao se prestar serviços públicos de telefonia, p. ex., tem-se em vista assegurar o acesso de todos a essa forma de comunicação e a eficiência global das telecomunicações, não apenas a conveniência dos usuários individuais. O que justifica a presença do Estado na prestação de serviços é o vínculo com tais valores por ele titularizados, a partir de determinação constitucional. O serviço de interesse meramente privado56 não é titularizável pelo Estado por força do art. 173 da Constituição Federal.

Usuário real é o que se contrapõe ao usuário hipotético. É uma dimensão do usuário efetivo. Ao se aludir a usuário efetivo, denota-se aquele que integra uma relação jurídica concreta. A referência a usuário real é mais abrangente, uma vez que alcança também o candidato a usuário.

Quais são os direitos de um usuário hipotético? São os direitos relativos à fase anterior à criação do serviço ou os direitos relativos ao seu restabelecimento, se suprimido.57 A discussão acerca dos direitos do usuário hipotético confunde-se com o debate sobre a existência de um direito à criação

do serviço público.58 A questão se relaciona com a possibilidade de identificação de um direito a uma prestação do Estado e com a ponderação entre esse direito e as demais funções públicas que interferem na decisão do caso concreto. Os limites do direito do usuário hipotético são, no que se refere

55 Para Guglielmi e Koubi, “O serviço público não tem sentido nem realidade senão se for efetivamente utilizado pela população, pois é à vista das necessidades desta que ele é criado. (...) De qualquer modo, é o usuário potencial que faz o serviço público” (GUGLIELMI. Droit du Service Public., p. 478).

56 A dificuldade não está na situação do interesse meramente privado, mas nas situações limítrofes, em que a atividade privada é afetada por interesse público. Nesses casos, a existência ou não de serviço público é mera opção legislativa. Veja-se, p.ex., o caso dos serviços de saúde e educação. São privados (não concedidos) os serviços prestados por particulares e públicos os prestados pelo Estado, ainda que materialmente sejam idênticos. Serem privados ou públicos depende apenas de uma opção normativa.

57 Veja-se Sophie Nicinksi: “E quanto à contestação da supressão de um serviço público? De fato, o usuário não é mais potencial mas se torna hipotético porque não será um usuário efetivo senão se ele consegue fazer restabelecer o serviço suprimido” (NICINSKI. L'usager du service public industriel et commercial. p. 94).

58 Maria Cristina Cesar de Oliveira alude, nesta fase, a usuários potenciais: “... é importante observar que, relativamente aos usuários, esses podem ser considerados de forma potencial ou efetiva. Em tese, todos os cidadãos têm direito à prestação do serviço e, assim, podem ser considerados usuários dos Serviços Públicos. Nesse caso, estar-se-á diante de interesses difusos ou de interesses coletivos, ou, como quer parte da doutrina, de um direito subjetivo público. De modo efetivo, poderá haver a utilização singular do serviço, caso em que o desfrute consistirá em um direito individual ou individual homogêneo, conforme se observe a existência de origem comum” (OLIVEIRA, Maria Cristina Cesar de. O Código de Defesa do Consumidor e a Administração Pública. Interesse Público, nº.22, p. 82/94, 2003. p. 88). Disso deriva uma relevância jurídica fundamental da noção de usuário hipotético ou potencial, consistente na possibilidade de se reconhecer a legitimação extraordinária para a busca de tutela coletiva de tais interesses difusos ou coletivos.

à prestação propriamente dita, os do direito in concreto a uma prestação estatal (oposto ao direito prima facie a essa prestação).59 60 Mas seu direito de exigir

providências do Estado, ainda que não prestações diretas, vai além desse direito in concreto a uma prestação mínima.61

Antes da instituição do serviço, a posição jurídica do usuário hipotético confunde-se em grande parte com a do administrado em geral. Ainda assim, não são absolutamente coincidentes. Os administrados detêm o direito público subjetivo a que se criem e organizem serviços públicos em geral, na medida em que o interesse a ser atendido não é apenas o do usuário, mas o da coletividade. Porém, apenas o usuário (embora ainda hipotético) detém o direito de exigir prestações concretas, nos casos em que da própria Constituição derivem direitos mínimos a prestações estatais. Veja-se, p. ex., o direito à saúde. Mesmo antes da criação e organização do serviço, há um direito mínimo exercitável por alguém, que se distingue dos administrados em geral por estar na posição de usuário hipotético do serviço. O mesmo se pode dizer do direito à reparação de danos derivados da ausência do serviço. Esse direito não é titularizado pelos administrados em geral, mas pelo usuário (hipotético, porque o serviço não existe) do serviço público não ofertado.