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A qualificação do vínculo como de natureza contratual

3 A SITUAÇÃO JURÍDICA DO USUÁRIO

3.2 AS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA SITUAÇÃO

3.2.2 A qualificação do vínculo como de natureza contratual

Porém, quando se alude a uma natureza contratual do vínculo entre o prestador e o usuário, tem-se em vista uma situação diversa. Pretende-se refletir o fato de que, em diversas situações, o usuário candidata-se ao

20 Segundo Marçal Justen Filho, “... pode reputar-se que os usuários integram a relação jurídica da concessão como parte”, do que derivam três grandes controvérsias: “A primeira consiste em admitir que a relação jurídica da concessão é integrada não apenas pelo poder concedente e pelo concessionário. A segunda reside em afirmar que a Sociedade participa da relação de concessão, sendo atribuída aos usuários a legitimidade para participar do vínculo. A terceira envolve a admissão da restrição da participação dos usuários, os quais não teriam posição jurídica equivalente àquela atribuída às outras partes” (Ibid. p. 554). Em obra posterior, o doutrinador esclarece que a participação na relação jurídica da concessão cabe aos usuários enquanto categoria, não como indivíduos – fazendo-se um paralelo com a noção de categoria conhecida no direito do trabalho (JUSTEN FILHO. Curso de Direito Administrativo., p. 533).

21 Essa premissa autoriza a compreender sempre a situação do usuário em um quadro democrático, de respeito aos direitos fundamentais. Assim é que deve ser lida a manifestação de Francisco Campos, para quem “o fato de, mediante a personificação, a institucionalização ou a descentralização, haver o Estado conferido aos interessados diretos no serviço a participação na sua administração, não induz naqueles interessados a existência de um direito adquirido a participarem indefinidamente na gestão do serviço. A sua situação é puramente legal ou regulamentar; o seu direito de participação é apenas uma competência que lhes foi colada pelo Estado e que este pode, a todo momento, modificar ou suprimir” (CAMPOS, Francisco. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense. 1943. p. 277).

recebimento do serviço, preenche os requisitos necessários e, voluntariamente,22 adere ao regime de prestação do serviço – com ou sem

adaptações ao seu caso específico. Tem-se em vista não a participação do usuário em sentido genérico (como parte da Sociedade) na relação de concessão, mas a atuação do usuário concreto, específico, na criação de um vínculo determinado com o prestador do serviço. Embora uma atuação derive da outra, seriam momentos distintos e inconfundíveis.23

Maurice Hauriou afirmava o caráter em parte contratual da relação entre o usuário e o serviço público, notadamente nos casos de serviços públicos industriais e comerciais. Ressaltava que, nesses casos, o usuário poderia valer-se das condições contratuais ou invocar diretamente o regulamento do serviço nas situações em que pretendesse fazer prevalecer situações regulamentares mais vantajosas não previstas em seu contrato.24

Juarez Freitas identifica dentre as relações jurídico-administrativas uma espécie, “ainda que com certas tintas de atipicidade”, consistente nas “relações

de consumo dos serviços públicos, vale dizer, aquelas que, regidas por normas de indisponível ordem pública e de interesse social, deixam-se entretecer pela Administração Pública ou delegados seus e toda pessoa física ou jurídica que utilize o serviço essencial como destinatário, mediante remuneração, exceto as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.25 Pretende estabelecer uma ponte entre a situação estatutária do usuário e da concessionária e o conceito legal de relação de consumo de serviços (art. 3º, § 2º, do CDC), identificando como relação de consumo apenas a que envolve o uso remunerado de serviço público.

22 Essa voluntariedade, embora fortemente afetada pelas circunstâncias fáticas, existe sob certo ângulo mesmo nos serviços de fruição compulsória, nos quais o usuário que se encontre nas condições normativamente previstas é obrigado a utilizar o serviço. Assim, p. ex., nos serviços de abastecimento de água, a origem do dever de utilizar o serviço é o ato voluntário de aquisição do domínio ou da posse de um imóvel atendido pelo serviço. Ao ocupar a posição de proprietário ou possuidor, voluntariamente, torna-se sujeito passivo do dever de utilizar o serviço de abastecimento. O mesmo se diga quanto ao serviço de limpeza urbana. A suposta falta de voluntariedade neste caso é fática, não jurídica.

23 Luis Miguez Macho destaca fortemente a distinção entre esses dois momentos (MACHO, Luis Miguez. Los servicios públicos y el régimen jurídico de los usuarios. Barcelona: Cedecs Editorial. 1999. p. 165/166).

24 HAURIOU, Maurice. Précis de droti administratif et de droit public. Paris: Dalloz. 12a. ed. (1933). 2002. p. 140.

25 FREITAS. Regime dos serviços públicos e a proteção dos consumidores. p. 221. Sob essa premissa, Juarez Freitas examina a aplicação aos serviços públicos de diversos preceitos próprios do Direito do Consumidor.

Cláudia Lima Marques intensifica o dissenso acerca da natureza da relação entre prestador e usuário ao restringir a aplicação do CDC aos “serviços prestados em virtude de um vínculo contratual, e não meramente

cívico, entre o consumidor e o órgão público ou seu concessionário”.26

Ressalve-se que a autora reconhece o caráter de verticalidade da relação contratual entre a Administração e o usuário, “reservando-se a administração

faculdades que quebram o equilíbrio do contrato”. A autora conclui que “A nova disciplina dos contratos de fornecimento de serviços públicos deverá conciliar as imposições do Direito Constitucional, com a proteção do consumidor e as prerrogativas administrativas”.27

Na lição de Cláudia Lima Marques, o caráter contratual do vínculo existente entre a Administração Pública (ou seu delegado) e o usuário é apresentado sem discussão. Fernando Costa de Azevedo ocupa-se de apartar esse vínculo do contrato de concessão (ao qual reconhece caráter administrativo), para defender que a “relação jurídica que se estabelece entre

prestadores (públicos ou privados) e usuários apresenta contornos mais vinculados ao direito privado. Trata-se de uma relação obrigacional entre particulares, formalizada, não poucas vezes, pelo instrumento jurídico do contrato.28

Portanto, há duas questões distintas. Uma é determinar se o vínculo específico entre o prestador e o usuário tem caráter contratual ou estatutário. Outra é, reconhecendo-se uma natureza contratual, determinar se essa relação jurídica é sujeita a um regime de direito público ou de direito privado. Cada uma delas submete-se a variações de acordo com o modo de prestação e a configuração legal de cada espécie de serviço público.29

26 Com isso, a autora exclui os serviços ditos uti universi e outros prestados sem remuneração, mas inclui os prestados mediante o pagamento de taxas (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. 4a ed. 2002. p. 486, nota 642).

27 Ibid. p. 485/486.

28 AZEVEDO. Defesa do Consumidor e Regulação. p. 63.

29 Cassagne anota que “Em rigor, não é possível deslindar genericamente, para todos os casos, a situação jurídica do usuário, cuja caracterização dependerá dos elementos que sejam próprios de cada relação jurídica”. Em seguida, expõe classificação que, como se sustenta adiante, parece incompatível com as premissas do direito brasileiro: (i) se o prestador for ente estatal, a relação pertence ao direito público, podendo ser contratual ou estatutária; (ii) se o prestador é um concessionário privado, a relação se rege pelo direito privado, embora seja sujeita a regulamentação disciplinada pelo direito público (CASSAGNE, Juan Carlos. El Contrato Administrativo. Buenos Aires: Abeledo-Perrot. 1999., p. 141).

3.2.3 Aspectos de direito comparado: o sentido da discussão no Brasil