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A PERCEPÇÃO VISUAL E AS IMAGENS

6.8. A ilusão das imagens

Em 1990, o psicólogo da percepção Roger Sheppard publicou um portfólio de desenhos a par da sua autobiografia científica, sob o título de Mind Sights22.

O autor apresentou um conjunto inédito de desenhos de registo de imagens vistas em sonhos ao longo da sua vida, um portfólio artístico e autobiografia científica, na qualidade de um dos mais importantes psicólogos cognitivos e alargou a sua reflexão até à natureza das artes visuais, através de uma reflexão acerca dos mecanismos da percepção e da natureza da representação visual nas imagens.

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Numa análise feita aos seus próprios desenhos, sugeriu uma classificação em que os factores de ambiguidade e de paradoxo na percepção visual, teriam um papel chave na interpretação das ilusões visuais.

Tendo como base os seus próprios desenhos, Sheppard (1990a: 55-56), agrupou-os em nove categorias, como exemplos de diferentes anomalias visuais: (i) ilusões de

perspectiva — desenhos que permitem interpretações visuais diferentes das propriedades

objectivamente verificáveis nos elementos representados, ver Fig. 6.5; (ii) ambiguidades

de perspectiva, (iii) ambiguidades objectivas — os desenhos têm pelo menos duas

interpretações visuais que se excluem mutuamente; (iv) ambiguidades

Fig. 6.5. Ilusões da perspectiva.

figura-fundo, (v) impossibilidades de figura-fundo — partes diferentes de cada desenho

permitem interpretações incompatíveis entre si, o que impede a percepção estável do conjunto de um objecto ou de uma cena tridimensional; (vi) impossibilidades de

perspectiva; (vii) auto-referência gráfica — desenhos que se reproduzem a si próprios,

se auto-representam, ou reenviam para si mesmos; (viii) auto-referência simbólica; (ix) transmogrificação — cada desenho é interpretado não só como um objecto dado, mas também como uma transformação deste objecto que assim modifica a sua interpretação.

No caso da pintura em trompe l’oeil23, também a experiência visual do observador não é determinada por aquilo que nós pensamos estar a ver. A experiência visual é o resultado de princípios dedutivos muito complexos postos em marcha pelo nosso próprio sistema visual, apesar de eles não estarem disponíveis à introspecção consciente.

De facto, quando vemos uma imagem, não começamos por perceber uma imagem plana bidimensional, para depois deduzir qual é a cena tridimensional mais provável. O que percebemos de imediato é a sua qualidade tridimensional, tal como o sistema visual o deduziu para nós a partir da imagem. No séc. XIX, a propósito desta característica da percepção, Hermann von Helmholtz considerava-a como sendo uma inferência inconsciente (Sheppard, 1990a). Enquanto criaturas livres para nos deslocarmos, podemos fazer deduções correctas com base nas informações visuais que recolhemos pelos nossos olhos. Mas quando estamos limitados a um ponto de vista particular, por exemplo, quando vemos uma imagem, o nosso sistema visual arrisca-se, frequentemente, a retirar conclusões erradas (Sheppard, 1990a).

A evolução biológica do sistema visual foi feita em condições naturais e é tão eficaz que nem damos por isso, porque ele nos oferece uma representação que acreditamos ser absolutamente verídica e fiel. Mas em condições especiais — testes de percepção visual elaborados por psicólogos ou pinturas em trompe l’oeil — esse trabalho de dedução pode tornar consciente o mecanismo oculto no nosso sistema visual (Sheppard, 1990a).

De facto, há um teorema fundamental da topologia que afirma que as propriedades de dois objectos situados num espaço a três dimensões e num espaço a duas dimensões não se conservam na sua totalidade, o que poderia explicar, assim, a enorme variabilidade das vistas possíveis que permitem, com alguma frequência, os logros visuais (Sheppard, 1990a). Tal implicaria a ambiguidade da percepção do espaço nas imagens figurativas (pictures) bidimensionais, ver a Fig. 6.6., como uma propriedade específica da natureza do próprio processo de representação visual (Sheppard, 1990a; Gregory, 1968, 1990).

Como se «vêem» os objectos reais e as suas representações em imagens, já que os primeiros são corpos no espaço em extensão e as imagens são objectos planos? Sabe-se pelo senso comum, que a aparência dos objectos numa representação bidimensional pode ser facilmente «falsificada» ou «deformada» em relação às formas dos objectos

23 Pintura ilusionista que engana o espectador, como se fossem objectos reais. Lucie-Smith (1984)

reais. O estudo científico das ilusões visuais teve início em 1832 com descrição da figura do rombóide transparente pelo naturalista suíço Necker, ver Fig. 6.7., e a observação de que as faces se invertiam no sentido da profundidade, teve consequências nos futuros estudos e tentativas de compreensão das imagens como paradoxos visuais.

Fig. 6.6. Perspectiva Falsa, 1754, gravura de Hogart (Gombrich, 1959,1998: 205).

Devido à ambiguidade do cubo de Necker, o canto que está mais próximo do observador, num momento, passa a estar mais afastado no momento seguinte (Barry, 1997).

Na pintura de arte este fenómeno óptico perceptivo — inversão da profundidade das faces — foi explorado de modo sistemático na pintura de Victor Vasarely (Fig. 6.8), artista do movimento Op Art (Optical Art). O espaço e o volume das formas que têm como base o quadrado, ver Fig. 6.8., ora são percebidas como salientes e convexas, ora como rebaixadas e côncavas, ora os quadrados se aproximam, ora se afastam, embora estes conservem o seu tamanho e dimensões. Por outro lado, esta percepção é independente dos efeitos de claro-escuro no modo como são tratadas as superfícies. Na verdade, há um conhecimento prévio e implícito do observador em relação à forma tridimensional percebida — são paralelepípedos de base quadrada com faces rectangulares partilhadas. Mas a sua figura aparente é diferente. Ora, seria a partir daquilo que o observador «sabe» dos objectos percebidos, que o percurso de exploração e de descoberta visual e contemplação da imagem teria início.

Fig. 6.8. Victor Vasarely. Utem, 1981.

A representação de objectos tridimensionais impossíveis na superfície plana é um artifício ao qual o gravador holandês M.C.Escher se dedicou. A sua conhecida litografia intitulada Belvedere, é uma das mais notáveis. As suas imagens são muito apreciadas pelo público em geral e, em particular, por cientistas e psicólogos da percepção, devido aos conceitos abstractos muito complexos que este artista conseguiu revelar através da

forma visual (Locher, 1971). O elemento chave desta imagem é vermos dois homens a subir uma escada que une a galeria de arcos inferior com um homem e a superior com uma mulher que olham para direcções diferentes, em contradição com o que seria normal no mundo real. Os outros personagens aparecem com diferentes papéis: um homem está preso atrás das grades, um homem acompanha uma mulher no início da escadaria convidando-a a seguir para ver a vista, e outro está sentado sozinho com um modelo tridimensional de um cubo nas mãos, tendo aos seus pés, no chão, um desenho do mesmo cubo. Segundo Ernst (1978: 86), trata-se de uma casa-fantasma: «Nos estudos prévios feitos para a litografia Belvedere, de 1958, o edifício é repetidamente chamado de casa-fantasma. Como, porém, a atmosfera do desenho final não tinha nada de fantasmagórico, o nome foi mudado». De facto, não é possível construir tal casa no mundo real. Pode-se então concluir, se as representações da realidade tridimensional são consideradas como projecções da realidade sobre um plano, «nem todas as representações têm de ser uma projecção da realidade tridimensional», de acordo com Ernst (1978: 86).