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Per(SONA)lidade e conteúdo dos desenhos na areia

6. Desenhalidades – Escritores visuais – Desenhar como quem escreve

6.1 Per(SONA)lidade e conteúdo dos desenhos na areia

Geralmente, o autor dos desenhos na areia está entre os membros do povo. Registe-se, no entanto, que isso não quer dizer que o artista só exista enquanto entidade coletiva e não na sua dimensão individualizada.

Alargar o sentido da poesia visual à prática significante sona é libertar a poesia de um sentido literal fixo e imutável, prática que se encontra ligada à pureza inicial do homem no seu “estado de natureza”.

Por primitivo, entendo os primeiros artistas que não têm nenhuma relação com a experiência dos outros. (Lourenço, 2017:109)

Desenhos emergem como figuras que pertencem ao estádio mais “primitivo” da capacidade inventiva humana quando se criava em busca da reunificação do ser, e desenhar, pintar, garatujar era uma prática espiritual cujo objetivo era a comunhão entre o ser e o mundo, uma arte, como escreveu Joyce, “capaz de nos fazer regressar ao selvagem coração da vida”16. E como nos diz Manuel Antunes: “Precisamente porque chegámos a uma época em que se tende para a completa exteriorização do sujeito é que necessitamos regressar à poesia e ao poder de humanização que ela contém. [...] Urge restabelecer o equilíbrio, urge re-interiorizar o homem. Nesse trabalho, está reservado à poesia um papel de relevo” (Antunes, 1960:44).

O regresso ao estado de poesia só é possível pelas premissas dessa poesia de matriz primitiva, mas de uma primitividade sofisticada, isto é, no sentido de estar a montante e não a jusante da origem.

Nas palavras de Luísa Freire: “A poesia (e toda a arte) é uma longa pergunta que irá durar uma vida” [Freire, A Pequena Prosa I (inédito)]. É quase impossível, se o não for mesmo, definir o que é a poesia ou a arte sem que fora dessa definição fique (em amnésia) muito do que é igualmente uma e outra coisa. Roman Jakobson colocou bem a questão ao afirmar que: “A fronteira que separa a obra poética do que não é obra poética

16Veja-se a epígrafe da obra de Clarice Lispector, “Perto do coração selvagem”, Editora Nova Fronteira, 9ª Edição – 1980.

53 é mais instável do que a fronteira dos territórios administrativos da China”(Jakobson, apud Martins, 2003:110).

A prática significante sona é pré-categorial, é uma modalidade artística que se posiciona antes de existirem fronteiras territoriais entre os diferentes espaços artísticos da nossa atualidade. O seu alcance artístico atua fora dos sistemas de convenções estéticas, pelo que não obedece a uma sistematização. É algo que nasce de uma realidade e se trans-funde noutra, abrindo as cortinas à “imagina-ação”, ou seja, ao espaço de afirmação para a liberdade imaginativa do homem.

Os desenhos na areia constituem uma forma de expressão anterior ao próprio conceito de arte. Poesia que renuncia à significação, ao automatismo da linguagem corrente, e nasce como se não fosse pela mão de quem a executa, mas pela de um “eu” plural, uma espécie de “inconsciente coletivo” que se manifesta de acordo com os mandamentos da comunidade. Não é a si mesmo que os sona exprimem, mas a um “eu” universalizado.

Escapando a qualquer tematização, os desenhos sona escapam também à intenção de enquadrar a sua matriz dentro de um padrão ou corrente estilística. Criam-se pelo fluir da espontaneidade ou por uma vontade de adivinhar o mundo, em poesia. Eles conservam ainda uma ingenuidade e modéstia que nem sempre é valorizada nas expressões artísticas atuais.

A propósito da questão do primitivismo sona é útil ter em conta as palavras de Manuel Frias Martins: “Se alguns dos povos dessas culturas não podiam escrever, nem ler, chamar-lhes iletrados ou primitivos é introduzir noções irrelevantes e inadequadas, pois só pelo fato de não utilizarem a escrita, ou de a utilizarem unicamente para conservar certos registos, isso não significa que não tivessem linguagens altamente desenvolvidas e, como é sabido mas tantas vezes esquecido, a linguagem não surge do vazio, pois implica conceitos, sistemas de conceitos, possibilita um conhecimento do mundo [...] manifestações artísticas (que embora sendo, por vezes, unicamente orais nem por isso perdem o seu conteúdo artístico). [...] é cada vez mais urgente o reconhecimento dos valores criados nessas culturas que alguns antropólogos contemporâneos apontam como a principal função da antropologia o dizer às sociedades «civilizadas» o que elas precisam aprender dos povos dessas culturas” (Martins,1983: 76-77).

54 Existem povos que, não obstante não saberem ler nem escrever, estão em profunda comunhão com o pensar e com a ação coletiva17 da comunidade, ou seja, por mais que se desconheça o que é a poesia, esses povos são portadores de um elevado grau de sabedoria e de sentido poético – esse poder mágico e incognoscível que não necessita de ser ensinado para ser compreendido; essa atividade que não necessita de ser escrita para ser lida e assimilada. Resumindo, trata-se da semente daquilo que hoje se pretende materializar através da lógica, através da razão, através da rutura com a espiritualidade e de uma comunhão e/ou cumplicidade com as forças incognoscíveis do universo. Melo e Castro colocou a questão do seguinte modo: “Para a crição [...] a palavra não é necessária, pois tudo pode constituir, e constitui, um sistema de comunicação criador” (Castro,1977:193).

Por outro lado, o plurilinguismo torna a questão de se saber ler e escrever uma questão deveras complexa, pois a leitura e a escrita não se esgotam, por exemplo, no domínio do alfabeto romano, mas no domínio de um conjunto de sistemas de representação simbólica anteriores à emergência da própria escrita. Digamos que a palavra começa pelo uso funcional da imagem. Estamos perante aquilo que poderia ser designado de uma alfabetimagem, isto é, o “alfa” da escrita, enquanto ponto de partida para o discurso estaria situado não nas palavras, mas numa construção gradual e sistemática de símbolos que partem da imagem e culminam na escrita.

Assim, os símbolos pré-verbais sona (transmissores de ideias e conceitos) não só se ajustam às palavras como também (e sobretudo) se ajustam à oralidade de tal modo que representação gráfica e fala se intercompreendem mutuamente.

Seguindo esta linha de pensamento encontramos nas palavras de Ana Paula Tavares a seguinte afirmação:

“A palavra escrita estava há muito inscrita nos hábitos dos

Tschokwe, que sempre deixaram um lugar especial aos seus Akwa kuta sona18, ou seja, os conhecedores dos desenhos, ou ainda os produtores de

17 Algo semelhante à proposta de Lautréamon: “A poesia deve ser feita por todos” (Lautréamont, 1988: 247).

18 Nome dos mestres que conhecem e dominam a arte do desenho sona. Geralmente homens entre os quarenta e os sessenta anos de idade. Aqueles a quem poderíamos chamar de “escritores visuais sona”. Note-se ainda que, o desaparecimento desses “escritores visuais” e a consequente ausência de novos aprendizes têm contribuído para a degradação e extinção desse património cultural que são os desenhos sona.

55 textos escritos, os vulgarmente conhecidos. Desenho e tradição oral estavam estritamente ligados, mesmo que esta arte já fosse, no momento do desenvolvimento da investigação, uma arte residual, por vezes até confundida com a cartografia” (Tavares, 2009:65).

Nesta linha, os desenhos sona constituem uma linguagem ideográfica, códigos imagéticos que não obedecem a uma sistematização. No entanto, ao expandir o atributo “grafismo”, ampliando-lhe o campo de significação, constatamos que um traço, uma linha, um ponto pode significar uma palavra ou uma frase inteira. Como nos refere José Martins Vaz: “Não tendo sinais gráficos para porem diante dos outros as mágoas íntimas, convencidos de que as palavras não são muitas vezes suficientes «por as levar o vento»; desejando que o «sermão» ficasse por algum tempo presente na mente dos delinquentes; perante todas estas necessidades, encontraram uma maneira simples, airosa e poética de conseguirem o seu intento: a representação, por imagens humanas, de animais e simples coisas da natureza, que encerram em si todo um assunto que tinham para expressar ao próximo” (Vaz, 1969:28).

Assim, é necessário ler os desenhos sona sem intenções que se posicionem acima do que eles pretendem dizer; lê-los sem interrogações metafísicas por não serem textos de ler, mas textos de ver.

A questão da ilegibilidade dos sona19 parece irrelevante, pois nem sequer nos parece que a dicotomia legibilidade-ilegibilidade se enquadre aqui. Não será tanto à ausência de legibilidade que deveremos dar ênfase, pois esta só se verificará sob o olhar

19

É claro que, perante um poema em que os termos não estabeleçam qualquer relação de concordância entre si, a mensagem fica ilegível e indecifrável. O isolamento dos signos pode, em determinados contextos, representar um bloqueio à compreensão e à comunicabilidade. Uma letra solitária no meio de uma página até pode significar qualquer coisa; no entanto, o seu isolamento faz com que escape à coerência possível da sintaxe. No que se refere aos desenhos sona, a sua articulação com as palavras faz com que cada ícone, ainda que apareça solitário, tenha valor verbal. Esta questão está na origem de divergências de perspectivas entre vários autores, por exemplo, E. M de Melo e Castro e Manuel Frias Martins. É necessário contextualizar os signos. Caso contrário, dar-se-à aquilo que passaremos a designar como solidão frásica. Passemos a um breve exemplo: se num determinado contexto aparecerem as letras “D”, “V” e “R”, isoladas e sem qualquer conexão entre elas, isto poderá não ter qualquer significado. No entanto, se lermos as três letras num contexto relacional, poderemos encontrar um sentido novo produzido não apenas pela junção dos termos, mas, sobretudo, porque passa a existir uma composição pictórica que evoca um significado, quer dizer, passa a evocar (poeticamente), por exemplo, a palavra “DEVER”. Palavra essa que, podendo ainda ser lida da direita para a esquerda, começando pela sílaba “VER”, e depois a sílaba “DE”, forma a palavra VERDE. Conclusão, um signo em estado de solidão frásica, não se torna nulo em si, porque está num estado de latência, mas a sua ilegibilidade nulifica a sua comunicação.

56 ocidental, e não ao partir de uma observação enraizada no universo africano. Não se trata, por isso, de uma “antiescrita”, na medida em que nos sona não há uma intenção literária explícita.

É de salientar que, atualmente, no Ocidente, já se começa a verificar a mesma tendência. Determinadas obras ou correntes artísticas só são inteligíveis entre os artistas ou entre grupos de entendidos na matéria, partilhando, pois, o código que lhes confere uma inteligibilidade interdita a outros. Mesmo no universo da poesia, determinados autores, por produzirem textos assentes numa matriz radicalmente enraizada no universo intelectual da produção poética, não são fáceis de entender.

Contudo, não há o propósito de tornar os desenhos ilegíveis, como, por exemplo, sucede nos poemas visuais de Ana Hatherly. Os ideogramas cujos traços e linhas insinuam a pontencialidade das palavras, embora não estando visíveis, podem, ainda assim, ser lidos, porque o ato de ler, seja em que linguagem for, implica decifrar códigos, e a palavra “sona” significa, na língua bantu, desenhar, escrever. Podemos, então, afirmar que estamos perante a invenção de um sistema de escrita.