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POESIA-ME Prática Heduardiana ou a invocação da poesia visual

visual

Depois fundou o modelo: os poetas futuros com máquinas de filmar nas mãos. (Helder, 1995:148)

A Poesia é uma máquina de produzir entusiasmo.42 (Namorado, 2014:103)

De máquina fotográfica em punho, procuramos trazer à poesia materiais que, habitualmente, não são comuns na prática poética. Perante a possibilidade de sermos continuadores de uma prática significante ainda em desenvolvimento, pretendemos, com o nosso trabalho artístico, concretizar uma modalidade que, não sendo propriamente de poesia visual, é poética enquanto forma de expressão do ato estético.

Como já afirmámos, tudo serve de utensílio poético, e qualquer objeto pode receber significados diferentes daqueles que o nosso olhar está habituado a absor-Ver, visto que imagem e palavra procuram ajustar-se poeticamente no mesmo suporte, pelo que não privilegiamos o uso exclusivo de materiais verbais. Encaminhamos, antes, qualquer objeto do quotidiano a uma dimensão poética, pois na aparente banalidade dos nossos objetos, nessa conjugação entre imagens e palavras, imbricam-se ideias, vivências, vestígios das experiências passadas que modulam o nosso pensar, e encontramos um sentido diferente do sentido quotidiano das coisas que nos habitam o dia a dia e entendemos essas mesmas coisas metamorfoseadas como obras artísticas.

Para a elaboração destas nossas obras, que se encontram publicadas eletronicamente sob o nome de Paradoxos, não seguimos qualquer regra. Pelo contrário, criamos com a imagem que estiver mais próxima do pensamento. Usamos, para tal, diversos materiais do quotidiano, nem sempre propícios ou habituais à poesia. E a poesia não é só o que se escreve, o que se pinta ou desenha, mas a compreensão do mundo em que estamos inseridos. Alguns dos nossos poemas visuais não têm uma única letra ou palavra, mas existe – e é isto que importa realçar – digamos que uma

linguistificação do silêncio, ou, dito por outros versos, é um silêncio povoado de

42

Do poema intitulado Poeta, presente na obra A Poesia Necessária, publicada no Cancioneiro Vértice, 1966.

105 palavras. Qualquer objeto pode ter valor poético? Conforme lembra Manuel Frias Martins: “Quem poderá dizer o que é a poesia, a literatura, sem deixar de fora muito daquilo que também poesia e literatura pode ser?” (Martins, 2001:116)

As palavras e os objetos são instrumentos e possibilidades constantes da expressão poética. No entanto, é cada vez mais urgente repensar o sentido da arte principalmente em contextos cuja arte (a poesia) pode exprimir-se pela ausência de palavras. Acreditamos que qualquer objeto, assim como qualquer palavra, quando devidamente enquadrado e contextualizado poeticamente, pode ser dotado de um sentido mágico, poético. (E esse sentido é o de inventar poesia onde ela não existe).

A prática sona e o nosso trabalho artístico representam de um modo

performatizado o que, sendo inexpressivo, só pela poesia se diz, por met(amor)fose, por

transformação de uma ideia noutra ideia, noutro pensamento. Há um forte apelo à valorização dos aspetos visuais da linguagem que vê na poesia não apenas os seus aspetos fónicos, mas também o facto de se poder tratar de um sistema de ideias, traços, desenhos, objetos, que ora se aproximam das grafias tradicionais, ora se afastam em direção a uma escrita o menos técnica possível, que concebe o traço, o desenho como palavra.

O modelo que propomos, através das nossas próprias criações poéticas, defende que o leitor visual se deve libertar da tutela da linguagem logocêntrica ou alfabética e seja capaz de ler e/ou ver um poema na imagem de um objeto ou num traço.

Aqui também se conjugam afinidades com a prática sona. Alguns dos nossos poemas são como que orgânicos, feitos com materiais vegetais ou objetos com pouca durabilidade. O único meio de que dispomos para a preservação das nossas obras é o registo fotográfico. É uma escolha intencional, o optarmos por materiais perecíveis e claramente suscetíveis de degradação. Não temos intenção de musealizar as nossas obras e, mesmo que assim fosse, dificilmente as poderíamos conservar ou armazenar.

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2.

“PoemoGrafias” Heduardianas – Questões de publicação

Se a poesia visual necessita de um tempo físico de escrita para se escrever na página, a fotografia é instantânea: fixa um momento no momento. Se a poesia visual é presentativa e atemporal, isto é, em si própria não tem passado, nem presente, nem futuro, só tendo como referência temporal extrínseca a data em que foi feita, a fotografia atua sobre o tempo, parando-o: fixa o presente para o futuro, transformando- o sempre em passado. Não registra datas, mas os sinais dessas datas (Castro e Gotlib, apud Sousa 2009:81).

Uma das dificuldades com as quais nos debatemos relaciona-se com a sistematização dos critérios classificativos acerca das nossas manifestações poéticas, ou seja, o conceito de arte sob o ponto de vista do criador. Assumindo a dificuldade em adotar uma definição inequívoca, ainda assim, movidos pela necessidade de situar o nosso trabalho dentro das formulações já existentes, optamos por identificá-lo com uma prática congregacional, aberta à inclusão de ingredientes simbólicos plurais.

Muito embora o impulso criativo nos torne protagonistas dos nossos próprios trabalhos, não tivemos nunca o ímpeto de teorizar sobre os aspetos mais significativos dos objetos criados. Arriscamos mesmo dizer que podemos estar perante uma espécie de “aporia”, um beco cuja saída não se mostra facilmente aos nossos olhos, precisamente porque a poesia visual, quanto a nós, não é uma proposta artística de sentido único. Amplifica-se no todo, numa exuberante multiplicidade de leituras e interpretações. Além disso, ao propormos designações definitivas ou “tendenciosas”, acabaremos sempre por incorrer em terminologias ambíguas que mais não farão do que aumentar a proliferação de categorias, tornando ainda mais remota a possibilidade de se alcançar uma designação consensual.

“Visual” é o termo que aplicamos às nossas obras, ainda que a poesia visual seja sempre mais vasta do que os trabalhos que temos vindo a criar. Desaprisionar o poema do livro, dar-lhe outros suportes, outras vias de acesso, constitui, para nós, uma das tarefas fundamentais do nosso trabalho artístico. Assim entendido, através das nossas obras procuramos uma forma de expressão capaz de equilibrar vários recursos num só corpo e de poetar com múltiplas linguagens que se tornam cúmplices e acabam por comunicar uma só mensagem.

107 O facto de atualmente existirem múltiplas formas de ler o escrito faz-nos subentender que o desenvolvimento do modo como se lê segue a par e passo com o desenvolvimento do modo como se escreve. Os suportes de escrita também já não são os mesmos.

A poesia, no seu desejo de ver e, sobretudo, de ser vista, entra em devir, passa de potência a ato. Liberta-se, livra-se do livro. O poema abandona a sua forma inicial e transforma-se, ganha um novo corpo. Deste modo, escrever poesia serve, sobretudo, não para imobilizar instantes em livros, ou reter palavras em lugares fixos, mas para acompanhar a trajetória da poesia no seu movimento de fuga do papel para outros suportes tais como pedras, madeira, tijolos, parafusos, esferovite, fósforos, botões, folhas, areia, etc. Tudo o que for poemificável.

Por exemplo, Melo e Castro, na sua obra A Proposição 2.01, aponta vários tipos de poesia, entre elas, poesia comestível. Ora, esse tipo de poesia, além de se deteriorar num curto espaço de tempo, dificilmente pode ser editado em livro, a menos que seja em fotografia. Portanto, não se nos afigura prioritária a questão da publicação dos nossos trabalhos em livro. Praticamos poesia visual pela gratuitidade daquilo que ela nos oferece.

Enveredar pela poesia visual acaba por ser um ato de coragem, na medida em que assumimos a responsabilidade de produzir à margem do mercado, quase clandestinamente, objetos artísticos ignorados nos círculos comuns, pelo facto de serem fruto de uma demonstração de recusa de diálogo com as conceções de arte que, estrategicamente, por razões mercantilistas, deixaram de ser humanizantes.

Por essa razão, o artista visual, de um modo geral, encara a poesia como a sua principal preocupação, não cedendo aos assédios comerciais que podem fazer com que prescinda da sua missão. Se assim fosse, além da estagnação estaria a incorrer noutro erro fulcral: o deixar de problematizar e perder a sua essência libertadora, inventiva e, sobretudo, interventiva.

A poesia deve simbolizar o nosso encontro com os outros. Deve comunicar aos outros a nossa liberdade de unir a vida à arte e construir não resistências, mas, sim, pontes entre o vivido e o sonhado, entre o sonhado e o materializado; pontes que

(re)ligam as nossas vivências individuais às vivências dos outros, sem nunca deixar de

privilegiar as nossas próprias raízes culturais. Frias Martins sugere o caminho:“Aquilo de que o nosso tempo precisa não é de passivas atitudes pseudo-científicas, mas sim de estímulos criativos que nos conduzam ao reconhecimento de nós próprios na linguagem

108 dos outros ou, melhor, que nos ajudem a encontrar o caminho ético que nos devolva a linguagem do outro em nós.” (Martins, 2003:155). A partir do que acaba de ser exposto, segundo cremos, a arte é o caminho (po)ético que nos leva ao outro e nos faz regressar a nós mesmos, mais ricos, mais humanizados, mais plenos, numa tentativa de recuperação da espiritualidade, essa que se vai diluindo com o crescente número de redes de

descomunicação, ou pelas várias formas dispersivas do quotidiano, mas, certamente,

pelo isolamento interior e pelas inibições que nos impomos a nós próprios. Este contexto, espiritualidade corresponde a algo que é capaz de religar sem, no entanto, se esgotar no conceito religioso, mas, digamos, com a “espiritualidade” que se identifica com a necessidade imperiosa de manifestar o inefável ou de revelar a existência oculta das vivências recalcadas na memória. Falamos de uma espiritualidade de efeitos regeneradores e transformadores e não daquela que nos aprisiona em dogmas.

Partindo da ideia de que “a pessoa só é pessoa em relação com os outros” (Gonçalves, 2001:100), em nosso entender, é a poesia que nos coloca em comunhão e em relação ontológica com o outro. Ela, a poesia, é a via de acesso ao outro, aquele que, na maior parte das vezes, reside clandestinamente na nossa consciência.

Praticar poesia através da criação de poemografias leva-nos a harmonizar a nossa dimensão humana com o universo, restaura, regenera a alteridade, torna-nos capazes de assumir o nosso próprio estado poético e de nos colocarmos em relação com o outro.

Poemografando, colocamos a poesia em prática para inventar uma nova

realidade, na qual possamos estar mais distantes de relações de mera permuta de instantes comercializados e mais próximos de relações que privilegiem o intercâmbio de afetos recíprocos que nos remetam para uma visão ontológica em que os “outros” participem com a sua singularidade, e o seu tecido humano seja tanto mais rico quanto mais diverso.

Através de uma atitude desconstrutiva que nos possibilita uma (re)construção constante do discurso poético, cruzamos texto e imagem e, neste cruzamento, no qual convergem recursos que não são de exclusividade literária, concretiza-se o aparecimento de novos elementos produtores de sentido. O poema pode ser uma foto passível de ser emoldurada num quadro, ou pode ser oferecido como um presente, ou pode ser movido e transportado de um lugar para o outro; o poema tem peso, tamanho e medida. O poema pode ter como finalidade não ser um poema e ser outra coisa

109 qualquer, mediante a interpretação e o olhar de quem o absorve e observa. O poema transforma-se num produto da imaginação criadora.

Reeducar os sentidos e a sensibilidade dos outros é também inspirar artisticamente, estimulando a criatividade do visualizador. Fora de portas, nomeadamente, no Brasil, onde o projeto tem vindo a ganhar maior recetividade, alguns professores utilizam as nossas obras como fonte de inspiração para iniciação dos alunos mais novos à poesia. O facto de fundirmos, nas nossas poemografias, vários ingredientes poemáticos permite que o projeto seja compreendido por um público mais amplo, desde as crianças aos adultos, estes tantas vezes “adúlteros” relativamente à sua capacidade de espanto perante o que há de mais simples e belo; à sua capacidade de interpelar o mundo para lá das aparências; tantas vezes incapazes de resgatar o imaginário e de se maravilhar com o que de inefável a vida tem. Como dissemos algures, num poema, de possuir o deslumbramento das coisas simples, preservando a capacidade de fabulizar e idealizar horizontes.

Nesta sequência, juntam-se ainda os convites de participação em escolas, para falarmos acerca da poesia visual. Esta intervenção tem-nos demonstrado que a poesia visual tem uma linguagem universal que ultrapassa, pela sua visualidade, as balizas linguísticas de cada povo. Qualquer pessoa, até mesmo um iletrado, pode captar a sua mensagem. São poemas que se pautam pela simplicidade e se dão ao olhar, recusando os discursos predominantemente lógicos, por isso, suscetíveis de limitar a imaginação.

Em arte, a novidade não surge de uma tábua rasa, mas é fruto de pressupostos já existentes que outros criadores delegaram à nossa imaginação. Nesse sentido, qualquer vanglória é uma glória em vão. Cria-se a partir do já criado, pro-criando. Todo o ato criativo é sempre uma tentativa de consagrar o novo, tendo como ponto de partida o que o antecede e criando para além dessa antecedência. A criação decorre sempre de uma sucessão de manifestações anteriores.

A arte é, por isso, um exercício de memória, o resultado do conhecimento herdado, uma conciliação entre o passado e o presente, a formulação de vários paradigmas diferentes, mas nem por isso divergentes.

O artista-poeta, ao investir novas práticas no sentido das coisas já criadas, está a partilhar a sua mundivivência com os que virão depois dele. Através da poesia, presentificamo-nos num presente que já não será nosso, mas que, ainda assim, nele teremos participação. Por essa razão, tem sido extremamente gratificante verificar que há quem busque inspiração no nosso trabalho, inovando-o, enriquecendo-o.

110 Damos como exemplo o produto artístico (em fotografia ou vídeo) que temos recebido da parte dos professores sinalizando o resultado do trabalho realizado com os alunos mais novos. A vanguarda só deixa de ser vã, quando guarda em si o Ser.