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Provisória eternidade ou a infinita efemeridade da arte

[Os desenhos na areia] são feitos e geralmente logo apagados, quando muito duram horas enquanto o vento os não consome. [...] Em cada dia que passa e em cada velho que morre, vê desaparecer testemunhos preciosos do seu passado colectivo. (Mário Fontinha, 1983: 39)

[A poesia] inventa-se e destrói-se para que ela viva a sua tremenda metamorfose. (Aragão, 1981:39).

Cada desenho na areia é único e irrepetível. A sua degradação, concomitantemente, é parte integrante do processo criativo precisamente porque não há, da parte dos seus autores, a intenção de perenizar. É uma arte da memória. Uma arte que se materializa na memória que dela nos fica como um ensinamento. Nestes termos, aproximam-se das performances ou happenings.

Os seus autores não têm a intenção de preservá-los para além do tempo necessário à sua fruição e veem na consumação dos artefactos desenhados não uma perda, mas uma restituição, ou seja, a deterioração da obra representa a continuidade da própria obra por ser uma componente do ato criativo.30

É curioso verificarmos que nalguns povos africanos o tempo (a eternidade) não tem, diversamente do que acontece nos países ocidentais, uma duração indefinida e nem é visto como um acontecimento com uma carga vivencial negativa no sentido da sua passagem ser uma aproximação à finitude.

O desaparecimento de um homem não recai sobre a presença dos outros como uma sombra pesada, pelo contrário, encaixa-se com atos festivos de tal maneira que as pessoas, libertas da sensação opressiva da perda, cantam e dançam como se, consentindo essa fratura, devolvessem à morte a ausência sentida. Nas nossas sociedades tradicionais africanas, a morte ainda é integrada na vida, os rituais fúnebres são uma oportunidade de interligação coletiva. A morte confere um sentido à vida, na medida em que nos obriga a um tomar consciência da nossa finitude. A finitude é vista

30 “Destrói tudo e faz outra vez”, atesta Bruno Munari para nos alertar para a necessidade da não estagnação em modelos fixos e imutáveis. Destruir aqui ganha um sentido positivo, de edificação. Reconstruir, partindo do modelo anterior para o superar, transcender criativamente (Munari, 2007:145).

85 como uma oportunidade para ascender a um outro estado de consciência. Não obstante, parece haver um exagero festivo que se tem verificado nos últimos anos, na medida em que deixamos de distinguir se estamos numa cerimónia fúnebre, numa farra entre amigos ou num casamento. Isso acontece por exemplo, em Luanda, em que os óbitos se transformaram em oportunidades para fazer negócio e comercializar produtos diversos.

Não pensar no tempo será uma forma de o suprimir? Para grande parte dos povos africanos, o tempo, essa expressão numérica do pensamento, não é um lugar devoluto ao qual é necessário apagar o peso da sua passagem. Também os desenhos, afastados da obsessão de eternizar nos objetos a nossa contingente passagem pelo mundo, fundam a sua própria eternidade no que, acabando-se, permanece. É como se, ao criar uma temporalidade própria, os autores conseguissem manusear o tempo infinitamente irresolúvel. Cada desenho é um lugar de memória, é uma dádiva, uma doação que faz prova da intemporalidade pelo seu paradoxal desaparecimento.

Constituem estas figuras sem dúvida trabalho efémero, lúdico, intelectual e decorativo, sendo a sua execução uma habilidade verdadeiramente engenhosa - o que revela uma acuidade visual e manual muito apurada - além de uma sensibilidade estética considerável; podendo ainda ser empregadas como auxiliar de memória, servindo para começar uma narração. Serão assim desenhos que fazem falar, ligados às recitações, trazendo consigo o seu significado. Comportam uma mensagem que brota do sentido colectivo depurado para a criatividade e fantasia do artista. (Fontinha, 1983: 43)

Os desenhos sona fazem falar porque a arte é essencialmente um diálogo com o outro. Um diálogo que expressa, através da “sensibilidade estética”, da criatividade e da memória, o que, podendo ser indizível (ou inefável?) só pode ser pronunciado com o auxílio da arte e da poesia. Como constata Filomena Molder: “A arte tem sempre a ver com matéria, com a mudez própria dos materiais, tem sempre a ver com coisas que não podem ser ditas. A arte deixa ouvir sons e deixa ver formas e manchas, coisas que nunca poderão ser palavras, isso mesmo que se furta a ser chamado nas coisas, uma reserva intraduzível, um recuo que não se deixa pronunciar em nenhum nome. [...] Desse recuo, e dessa reserva inapagável, nasce a tensão dilacerada entre as palavras e as coisas, que os poetas conhecem tão bem.” (Molder, 1999:170).

86 Não sendo finalidade dos autores criar obras em nome próprio, mas possibilitar o acesso da comunidade a domínios da vida que só pela poesia se tornam exploráveis,

faláveis, constatamos, então, que o objeto artístico, na dimensão aqui aduzida, está

intimamente relacionado com uma missão pedagógico-construtiva, o possibilitar o acesso a determinadas tradições, mensagens e significados que de outra forma permaneceriam vedados às gerações vindouras, o levar o homem a conhecer a vulnerabilidade da sua vida, simbolizada pela evanescência da areia.

No entanto, no nosso mundo moderno, edificado a partir de “obras” mais tecnológicas do que tecnopoéticas, em que o idealismo tem vindo a ser substituído pelo realismo, as coisas aparecem e logo a seguir perecem, a eternidade tem a duração de um “piscar de olhos”, visto que as modas são vertiginosamente instáveis. Mas, ao contrário do que acontece em povos mais remotos, a fugacidade das suas criações é precisamente o que confere consistência a essas mesmas criações. A vida e as “coisas” adquirem um valor “absoluto” por serem raras e irrepetíveis. Assim, não nos surpreendemos que os autores dos desenhos sona dediquem tanto tempo à criação das suas obras, mesmo sabendo que se tratam de manifestações efémeras.

Quanto mais distante e desligado o objeto artístico estiver dos interesses alheios à essência da arte, tanto mais inequivocamente estará próximo da poesia, daquilo que não é fugaz, temp(h)orário, porque vive no presente e em presença do futuro que anuncia. Para algumas comunidades, o tempo, soma de muitos agoras, pode ter mais do que três dimensões ou ter apenas uma, a de um tempo pleno e fecundo que não pode ser guardado, mas aguardado. Um tempo que, por ter três dimensões acaba por ser

trivializado, quer dizer, vivido de um modo trivial, sem profundidade. Porque vivemos

reféns de uma espera que nunca chega.

Perante o que foi dito, a nossa posição não é apenas a justificação do valor estético da prática sona, mas é, sobretudo, uma chamada de atenção para um património de memória que deve ser preservado para além dos limites temporais da nossa memória biológica. Por sua vez, José Martins Vaz, focando precisamente o facto de os desenhos na areia estarem em vias de extinção, comenta: “Podemos dizer que há cerca de 60-80 anos que deixaram efectivamente de ser usados” (Vaz, 1969:28).

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