• Nenhum resultado encontrado

Prática sona como narrativa poiética

6. Desenhalidades – Escritores visuais – Desenhar como quem escreve

6.7 Prática sona como narrativa poiética

Por todo o lado através do mundo, o homem deixou vestígios das suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos feitos na rocha e que vão desde os tempos mais remotos do paleolítico até à época moderna. Estes desenhos destinavam-se a comunicar mensagens e muitos deles constituíram aquilo a que chamamos “os pré-anunciadores da escrita”. (Joly, 2008:18).

A finalidade prioritária da arte sona não é atingir a esteticidade dos seus objetos, mas sim possibilitar o acesso ao conhecimento, o acesso a uma dimensão lúdica, e aprofundar o sentido da experiência humana. Mais do que grafismo, é já um “pré-texto”, uma possibilidade de escrita, uma ilustração do que a palavra evoca. Sob este aspeto, Gombrich atesta que: “Se tentarmos penetrar na mentalidade que criou esses ídolos sobrenaturais, poderemos começar a entender como a feitura de imagens nessas primeiras civilizações estava não só ligada à magia e religião, mas era também a primeira forma de escrita.” (Gombrich, 1979:23).

A escrita está presente nos desenhos sona, mas de um modo não explícito. As obras vivem por si mesmas, não vivem presas à palavra, limitadas à escrita tradicional. Admitem e incorporam em si outros códigos, outras formas de expressão, outro modo de palavra para além das palavras. Assim, a poesia nega o excesso de palavras. É mais do que aquilo que a nossa sensibilidade silencia ou insinua.

71 Na poesia, o significado não está preso ao significante, pois estamos no limiar do incognoscível e muitas vezes do incomunicável e do indizível. No caso dos desenhos sona, eles objetivam o modo de expressão poético de um povo, uma poesia que se dá a ler por um desvio da escrita propriamente dita. Cada desenho, cada poema é uma estrutura que aponta simbolicamente (ecfrasticamente?) para os signos verbais pelos quais a palavra, ausente, entra no desenho, conferindo-lhe discursividade. Apesar de as palavras não constarem explicitamente, a imaginação é convocada a criar a ambivalência dos signos visuais, isto é, a explicitação dos versos, das ideias, da mensagem. Signos “mudos” que alteram o sentido do modo de fazer poesia e de traduzir o silêncio do que fica por dizer, como se a própria ausência incorporasse um código que carregasse essa informação não explícita. É nesse sentido que entendemos a prática significante sona como poesia, sem palavras dentro, um código “legível” até no que não se vê.

O valor dos poesenhos sona é potenciado pela harmonia dos aspetos estéticos, funcionais, expressivos e dos seus referentes significantes. A conjunção destes aspetos não compromete o seu valor enquanto obras de arte ou enquanto “meras coisas reais”, como Arthur Danto designou os objetos comuns do quotidiano.

Embora com um propósito diferente, não é de todo descabido socorrermo-nos do exemplo do urinol de Duchamp para demonstrarmos como um objeto comum é transferido para o mundo da arte. No entanto, há que realçar que Duchamp o fez com a intenção de desafiar (protestar contra) a forma como os objetos de arte são percecionados. Mas a verdade é que conseguiu que um artefacto de uso prático e utilitário, dentro de um determinado contexto, seja considerado artístico, ao apoderar-se do seu espaço criativo, utilizando os referentes culturais e tradicionais para sonalizar a poesia onde tudo se funde, as imagens, o tempo, o espaço, a dança, a música e o povo na sua significância singular e plural, sustentados pela mesma linguagem, a da poesia e suas re-sona-âncias.

Provavelmente não ocorre aos produtores dos desenhos sona que o que fazem pode ser considerado património da identidade angolana. Não lhes ocorre que os desenhos possam ser propostos como produtos poéticos. Por razões económicas, sociais ou políticas, e dadas as próprias razões inerentes à tradição, nos locais de produção dos desenhos não existem condições para refletir acerca de teorias da arte, mas para que a sua produção ocorra não é necessário que haja, em simultâneo, programas académicos. Para que a arte corporificada exista, é suficiente que ocorra uma convenção entre um

72 conjunto de indivíduos que estabeleça um acordo acerca dos significados dos objetos, ou seja, basta que haja uma comunidade e um contexto ou meio para corporificar nos objetos o seu significado. Conforme afirma Melo e Castro: “A escrita só é possível à luz duma qualquer convenção, mesmo que o alfabeto usado seja elementar.” (Castro, 1995:230). Convém termos presente que a mudança da comunidade e a mudança do contexto interferem diretamente no significado que a obra adquire. O significado de uma obra pode ser mutável consoante o olhar de quem a observa e o espaço geográfico em que é observada.

Bourdieu coloca a seguinte questão: “O que faz com que uma obra de arte seja uma obra de arte e não uma coisa do mundo ou um simples utensílio?” (Bourdieu,1996:324). A arte gera-se a partir do momento em que as "meras coisas reais" começam a ser avaliadas e pensadas como obras de arte e, simultaneamente, em função desse pensar, a comunidade inculca nas “coisas” os significados ou a identidade comum que lhes confere o reconhecimento de si e dos outros. É a comunidade que estabelece o significado dos objetos artísticos.

A ausência de divulgação de um acontecimento artístico, seja ele literário, poético, seja ele em livro ou outro formato, levará a que não seja conhecido pelo público, o que por sua vez promoverá a sua incompreensão. No caso da arte sona, essa situação é ainda mais complexa por se tratar de obras predominantemente realizadas na areia, daí o seu caráter de inamovibilidade. Dificilmente poderá ser transportada, exposta num museu, dada a fragilidade da matéria de que é feita. Poderemos, assim, deduzir que dificilmente conseguirá transpor as fronteiras do seu território de produção.

Se no princípio não era o verbo, mas sim a imagem, imagens-poema sendo já a antecipação da poesia, estas reportam-nos a uma dimensão anterior à experiência do poético e da palavra. Para podermos ler os traços e linhas que compõem a prática significante sona, os desenhos sona comunicam por uma aparente incomunicabilidade. Aqui cada figura é uma espécie de máscara que nos obriga a lidar com o desconhecido e, nessa medida, podemos concluir que se trata de um desafio à nossa capacidade imaginativa. É uma prática que resiste à tradição discursiva. A palavra é exibida como silêncio, mas num silêncio com significação. Silêncio como forma de escrita, silêncio enfático que emerge do mistério que os membros da comunidade ou o “leitor” nelas deve adivinhar. Melo e Castro ajuda a compreensão:

73

O texto não existe porque não é texto; o texto não existe porque foi escrito de um outro modo; o texto é texto porque há sempre um modo outro (mesmo desconhecido) de ser lido e/ou não ser lido; o leitor é leitor porque pode sempre inventar um modo de ler e/ou de não ler qualquer texto, mesmo o ilegível. (Castro, 1998:64)

Deste modo, poderemos dizer que o texto existe por causa do leitor, pelo leitor: é este que lhe dá corpo, que o faz existir onde antes nada poderia ler. É o seu ato de eleitor/recetor de uma mensagem que o cria e, assim, o lê. O autor/emissor desafiou essa leitura com um conteúdo que ele mesmo lerá de um outro modo, porque usando outro código. Segundo Melo e Castro: “A ilegibilidade é do leitor; ele não conhece o código em que a escrita está escrita. [...] A ilegibilidade é do texto; ele não usa nenhum código ou o código é visual-visual ou usa vários códigos simultaneamente, ou usa códigos conhecidos, mas de um modo desconhecido” (Castro,1998:64).

Essas "ilegibilidades", a do leitor e a do texto, ambos destituídos de um código, oferecem a possibilidade de captar a mensagem de forma(s) diversa(s). Um leitor, uma mensagem. E o mesmo leitor, num espaço-tempo diferente, pode chegar à conclusões diferentes acerca da mesma mensagem. Afinal, ele está a ler o que nunca foi escrito.

O fato de possuir este código permite-lhe traduzir o vocabulário plástico impresso no objeto. É evidente que esta leitura tem de ser situada no seu contexto social e cultural. Um dos exemplos mais flagrantes típicos dessa caraterística de arte africana são as tampas de panela26 de Cabinda que inserem mensagens entre grupos familiares e, particularmente, entre indivíduos. Constituem, assim, uma espécie de escrita que fixa o pensamento através de símbolos bem significativos para a sociedade em questão. A linguagem dessas tampas inscreve-se num sistema semiótico bem integrado no todo cultural e social das respetivas etnias localizadas naquela região de Angola. (Lima,1981:19-20).