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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

5. Poderes em queda

5.3. A impunidade do homem-deus

O físico deseja a cessação dos poderes, como se deteta no seu percurso descendente, da verticalidade para a horizontalidade, de belo cavaleiro a grotesco corpo rastejante. A divindade sempre esteve presa ao corpo; este exige a terra. Gianni Vattimo refere a kenosis como caraterística do pensamento religioso e filosófico numa época marcada pela “manipulabilidade do objecto da ciência-técnica” (1996a: 20) e que, por consequência, assume contornos pós-metafísicos. A kenosis é assim o “rebaixamento de Deus ao nível do homem” (30), o que, em termos do Novo Testamento, significa a encarnação de Cristo. Ao assumir qualidades de homem e deus, o físico não toma a proximidade da terra ao divino como evidência: supera a proximidade pela fusão, já que o divino coabita com o terreno.

As manifestações do divino têm, pois, de ocorrer no corpo, a partir do corpo. Em

O Físico Prodigioso é para ele que as virtudes teologais cristãs confluem: fé, esperança

e caridade têm no físico e no seu corpo forma privilegiada de expressão, tanto nos milagres, quanto no julgamento e no cortejo final. A crença na divindade do físico nem pelos inquisidores é posta em causa, perplexos pela sua beleza aparentemente indestrutível. A esperança na eternidade manifesta-se no reencontro do físico com Dona Urraca, já na sepultura, e na roseira de cujos ramos sai uma resina esbranquiçada e uma seiva vermelha, sémen e sangue; a caridade é a própria dádiva do corpo.

Em The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde, o retrato supera a condição de objeto que capta e expressa os sucessivos pecados do protagonista; o retrato torna-se cicatriz que denuncia a decadência moral deste. Como qualquer cicatriz é indissociável do corpo, a destruição do retrato tem como consequência o aniquilamento da personagem retratada. Essa ideia repete-se em O Físico Prodigioso: o homem não sobrevive ao abandono da divindade, enquanto esta só se eterniza pela invasão de outro corpo.

No âmbito da kenosis, corpo e divindade são dificilmente destrinçáveis. Por isso não chega a desistência verbal do físico, quando afirma “quero morrer” (Sena, 1966a: 71): o corpo tem de assumir as consequências da palavra. Daí a permanência da beleza de efebo durante anos de cativeiro, cessando apenas depois do derradeiro encontro em vida com Dona Urraca. Quando esta morre, o corpo do físico transforma-se numa “ruína que se arrastava aos pés dos juízes, sem fala, babujando grunhidos” (85), retomando o estado inicial, antes da inumação, altura em que “era como um deus, quando todos viram que expirara” (109).

O poema “Marcha fúnebre de Siegfried, do «Crepúsculo dos deuses»”, escrito em 1974 e incluído na reedição do livro Arte da Música em 1977 (a primeira edição ocorrera em 1968), remete não para uma dessacralização, mas para o nivelamento entre homens e deuses:

E é o que nos diz este mostrar por música: os semi-deuses morrem como nós,

como nós sofrem mágoas de derrota, e como nós desejam, amam, gozam ou raivam da tristeza de não ter.

(1977c: 188) À exceção da raiva, o retrato traçado nestes versos de um semideus assemelha-se ao percurso do protagonista em O Físico Prodigioso. Aceita o sacrifício do seu corpo às mãos dos inquisidores, tornando-se objeto de estudo. Durante as inquirições para o julgamento, estes analisam o seu comportamento e fazem com ele experiências, de modo a tentarem o demónio. No desfile grotesco final, os inquisidores contemplam-no estupefactos. Porém, o corpo nunca é profanado, dado manter-se imune ao uso que dele fazem. Segundo Georges Bataille, “le principe de la profanation est l’usage profane du sacré” (1957: 129). Ora, tal não acontece ao corpo do físico, que permanece improfanável, numa confirmação da sua divindade. Só a inumação voluntária contraria tal situação.

Em Sinais de Fogo, Jorge, amigos e prostitutas participam numa orgia que acontece dentro de uma velha igreja. A relutância inicial das prostitutas é evidenciada por uma delas: “eu não entro, eu sou religiosa, vocês querem fazer sacrilégios” (Sena, 1979: 169). Porém, como explica o velho que vive no convento em ruínas adjacentes, “a igreja está profanada” (ibidem), porque um padre tinha sido morto no altar: a dessacralização acontece pela apropriação que o terreno faz do divino. Concretizada a profanação, a bacanal torna-se possível.

À despedida, Rodrigues pede ao velho: “Pai, dê-me a sua bênção” (172). A frase e o gesto posterior sugerem que este último tinha sido padre, donde se compreende o epíteto de “sacristão” (168) atribuído ao seu jovem amante. Num local profanado, os interditos são superados e as transgressões sucedem-se desenfreadas. Assim, no decurso da orgia, o velho é sujeito a humilhações, troçam dele pela decrepitude e pela paixão que tem pelo jovem. Num discurso, Rodrigues descreve o corpo do velho como “a imagem acabada da decadência humana […] procurando escravizar a esta ruína uma juventude como aquela” (ibidem). Os homens profanam a dignidade desse velho; a idade profana o corpo. Deus e diabo são, para o discursante, completamente irrelevantes face ao devir do tempo a que os homens não escapam.

O contraste entre estas personagens terrenas de Sinais de Fogo e o homem-deus de O Físico Prodigioso reside na profanação. A decrepitude do protagonista no final da novela não decorre nem da ação dos homens, nem do tempo; ele mantém-se indemne, caraterística associada por Jacques Derrida ao sagrado (1996: 37). As qualidades divinas e a proteção do Diabo salvam o físico da ação dos homens. Por isso o desejo de punição acalentado pelos inquisidores está votado ao fracasso. Até quando optam pelo uso do que consideram ser métodos diabólicos, ironicamente, acabam por favorecer a vontade do físico. A sugestão de Frei Bernardo é elucidativa:

Se a tortura física do réu pode contribuir para que a sua obstinação se torne mais empedernida, e para que o Demónio, assistindo-a, mais se ria de nós, eu proponho… Vossas Reverências sabem que as torturas do amor humano são grandes, sobretudo se a carne está empeçonhada de vício. Se o Demónio o ama especialmente, por certo sofrerá de ver que ele ama ainda aquela com quem mais pecou. Sem dúvida que o pecado de ambos lhe é grato, e ele mesmo o insuflava. Mas as torturas do amor humano, como as do amor divino, essas não lhe são gratas, e poderia citar a este respeito os meus autores. Que o réu seja mantido como está, e que o tribunal observe o comportamento dele, se transferirmos Dona Urraca para a sua prisão.

(Sena, 1966a: 83) É o Diabo que concentra a atenção dos inquisidores, não Deus. Por isso, perdão e absolvição tornam-se valores irrelevantes. De vaidade ferida, Frei Bernardo admite a possibilidade do pecado da carne. Os restantes membros do tribunal aceitam relutantemente a sua sugestão, ao pensarem nos cintos de castidade que impedirão contactos íntimos. Dois pecados capitais – orgulho e luxúria – estão assim implícitos na discussão que deveria provar a culpa do físico e prover à sua punição. No entanto, estes pecados não se manifestam no físico; eles são cometidos pelos inquisidores. Para Jorge de Sena, “o amor – Eros – existe, e é na verdade e felizmente uma força terrível. Por

isso tantos cobardes físicos e morais lhe têm um medo dos diabos. Porque inclui, ou pode ser só, o prazer sexual” (1976b: 281). Este é o medo dos inquisidores, que as palavras tentam esconder, mas os atos expõem.

Segundo Vattimo, na experiência religiosa, mais do que o sentimento de falta, de pecado ou da perceção do mal, há a necessidade de perdão: esse é o “conteúdo característico da experiência religiosa” (1996b: 104). Para os inquisidores de O Físico

Prodigioso tal sentimento, ainda que cristão, não se coaduna com a racionalidade que

pretendem atribuir ao Regimento, segundo o qual lhes cumpre “humildemente observar […] rigorosa obediência” (Sena: 1966a: 81). O processo a que submetem o físico e que se prolonga por diversos anos atravessa momentos de interrogatório, tortura, experiências, assim recorrendo a métodos que contrariam valores cristãos. Afirmando a racionalidade dos procedimentos, os padres cedem à força do inexplicável e cometem heresia por obedecerem ao Diabo. Frei Antão decide convocá-lo:

Ajoelhado no genuflexório, preparou-se, rezando de olhos fitos no crucifixo. Depois, levantou-se e, benzendo-se, tirou o crucifixo da parede, e pousou-o no chão a um canto, de cabeça para baixo, e com a imagem voltada para a parede caiada. Verificou-se que a sombra da cruz, embora muito enviesada, se projectava em cruz.

(91) Rito de absolvição, antes da heresia: primeiro, a reza ao Deus católico do Regimento; depois, o chamamento do Diabo e um diálogo que culmina em “pacto selado” (95). A cruz cristã depositada ao contrário no solo e a sombra enviesada atestam a proximidade herética do inquisidor às forças demoníacas, que ele próprio reconhece. Por isso diz aos correligionários que “recebera uma visitação” (99). Esta não é uma forma eufemística de revelar o encontro com o Diabo, mas de ocultar a heresia, assim expondo a tentação deste Frei Antão seniano: seguir as diretrizes das “potências infernais” (100), instigando os outros inquisidores a obedecer-lhes.

Em O Físico Prodigioso, a heresia está ironicamente reservada aos mais voluntariosos defensores da Igreja católica. No estabelecimento da diferença entre pecado e heresia, Georges Minois esclarece que, para o Manual dos Inquisidores, impresso em Barcelona, em 1503, sob instruções de Torquemada, “invocar o diabo e pedir-lhe que faça o mal não é, logicamente falando, uma atitude herética, dado que a prática do mal faz parte da sua função” (1998: 99). Trata-se, nesse caso, de pecado, sendo heresia afirmá-lo como Criador. Ora, nesta perspetiva, ao convocar e estabelecer um pacto com o Diabo, Frei Antão atinge o limiar da heresia. Não o convocando

enquanto criador, solicita a sua intervenção para resolver um problema que excede o domínio terreno. O confronto é entre entidades divinas.

Os membros da Inquisição agem de acordo com o que leem no Regimento do Santo Ofício. Daí decorre que, como defende Francisco F. Sousa, nesta novela de Sena, “Deus é invocado em nome de uma ordem que é sumamente corrupta e deste mundo” (1990: 37). Por isso os métodos inquisitoriais incidem sobre o castigo do corpo, no que se inclui a tortura para a extorsão de confissões, mas pretendendo exercer um efeito dissuasor de pecados e heresias. Por isso, no sinistro cortejo final, a decadência do físico, interpretável como resultante da tortura, deveria amedrontar a multidão. Só que, mesmo perante as ameaças dos padres, o assombro sobrepõe-se ao medo, e a turba persegue o corpo rastejante. Ao radicalizar os avisos, gritando “estais excomungados. Que a maldição de Deus caia sobre vós e os vossos filhos!” (Sena, 1966a: 106), Frei Antão declara o Deus regimental dos processos inquisitoriais como o Anticristo, porque Deus da intolerância e do ódio.

No estudo sobre a estância 65 do Canto VIII de Os Lusíadas, Jorge de Sena considera que “Camões não emprega a palavra «pecado» para a falta originária, e sim

delito” (1982: 397), e iliba o Demónio de responsabilidades; afinal, a culpa é da

“malícia humana que, cometendo-o, possibilitou uma inimizade entre os humanos, alimentada por aquele” (ibidem). O Diabo tenta e diverte-se; os homens pecam e incompatibilizam-se entre si. Este retrato elucida o relacionamento do Diabo de O

Físico Prodigioso com os padres da Inquisição. Ao afirmar “pacto selado” (1966a: 95)

no final do diálogo com Frei Antão, o Diabo confirma a tentação deste inquisidor pelas artes demoníacas. Por outro lado, transforma os rostos dos frades no rosto do físico, e isso marca o início dos desentendimentos entre eles, que se acusam e eliminam mutuamente. Assim se transformam num “pequeno grupo de capuzes” (88) e estabelecem nova analogia: a enforcar o físico está um “carrasco encapuzado” (ibidem).

Os padres inquisidores atribuem ao Diabo a responsabilidade pelos dons do físico, negando-lhe qualquer resquício de ligação ao Deus católico. Ao considerá-lo apenas recetáculo de uma vontade demoníaca, despojam-no de tudo quanto possuíra, do gorro à identidade. A própria forma de tratamento revela tal usurpação. Na segunda metade da novela, em que o narrador passa a assumir o ponto de vista dos inquisidores, o físico deixa de ser nomeado. As palavras “ele”, “corpo”, “réu”, “criatura” e “homem” substituem a designação até à altura adotada. Deste modo, torna-se nítida a irrisão a que

os frades pretendem condená-lo. Porém, qualquer tentativa de controlarem a divindade que nele persiste é infrutífera.

O físico nunca teve nome próprio. Recusa mesmo tê-lo, pois, como comenta com Dona Urraca, “o nome que me deram não é o meu” (45). O homem-deus encarna a divindade provisoriamente, como se percebe no final da novela, quando outro físico se anuncia, ao mesmo tempo que a roseira simbólica da união do físico e Dona Urraca se solta ao vento. E é essa divindade a protagonista de O Físico Prodigioso. Para além do bem ou do mal, de pecado, absolvição ou heresia, a divindade adere à terra e aos homens que nela vivem. A kenosis derrota o julgamento da Inquisição.