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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

1. Homens e divindade

1.2. Experimentalismo como reação

O inconformismo perante uma humanidade pouco ética e um Deus ausente são

topoi frequentes na obra de Jorge de Sena. Como afirma no prefácio a Os Grão- Capitães, o autor transfigura a realidade de modo a “tornar mais monstruosas, como o

que os nossos olhos temem reconhecer na «realidade», experiências vividas, testemunhadas, ou adivinhadas nas confissões involuntárias e contraditórias de alguns dos actores” (1974: 16). Em O Físico Prodigioso sucedem-se situações de magia e de feitos milagrosos, pelo que o realismo está distante, se tomado enquanto reprodução fiel da realidade. A ação parece decorrer na Idade Média, mas a incerteza de uma

localização temporal e espacial precisa impede a associação ao retrato de uma época. Esta obra não é, pois, uma novela histórica. Contudo, as personagens agem de modo verosímil, mesmo quando as situações são aberrantes, como no grotesco cortejo que anuncia o fim do físico, ou quando são tomadas pelo descontrolo, por exemplo, na festa orgíaca da clareira. Os excessos decorrem assim de um propósito bem definido pelo autor: expor o inconfessável dos relacionamentos humanos.

Em O Físico Prodigioso, tal acontece sobretudo pelos jogos de poder, tanto em termos de sedução, quanto de soberania. Religião e poderes sobrenaturais determinam todas as ações das personagens, mas revelam também a atitude do autor face às questões referidas. A propósito da conceção desta obra, explica Sena:

O experimentalismo narrativo, jogando com o espaço, o tempo, a repetição variada do texto, etc., é uma das bases essenciais desta novela, como o é a Idade Média ou algo de semelhante, fantástica, em que a situei. Esta «época», dando-me uma distância «pseudo-histórica», permitia-me uma liberdade da imaginação em que o fantástico, com todas as implicações eróticas e revolucionárias como eu sentia ferver em mim na pessoa do «físico», podia ser usada para tudo.

(1977a: 10) Experimentalismo, liberdade, erotismo e revolução são palavras-chave de O

Físico Prodigioso, obra que o autor preza especialmente por ver no seu protagonista um

“muito bem-amado filho” e um “alter-ego” (9). A liberdade criativa é notória nos mais diversos pormenores, como na narração do mesmo acontecimento em colunas separadas, cada qual relatando uma versão diferente: uma delas dentro dos padrões morais do tempo da escrita desta novela, a outra como que diabolizada; as duas concorrendo para a perplexidade do físico (e leitores), dadas as múltiplas interpretações possíveis dos acontecimentos.

Jorge de Sena não destaca, na citação acima, um outro tema de particular pertinência desta novela: a reflexão sobre a divindade e o homem. No entanto, a expressão final é suficientemente ampla para abarcar os questionamentos religiosos explorados ao longo de toda a obra do autor. Abandono dos deuses, divinização do homem, interrelação homem-deus, apropriação de um corpo por parte dos deuses são temas recorrentes em Sena, pelo que surgem de forma natural, ainda que sempre complexa, em O Físico Prodigioso. O protagonista é um homem-deus cujo desfecho anuncia a morte do corpo e a prevalência da divindade que o invade. Esta liberta-se da matéria, voluntariamente dissolvida na terra, mas encontra novo corpo, numa sugestão

de eternidade ou eterno retorno – o novo físico herda os poderes daquele que optou pela morte.

Segundo Gilda Santos, O Físico Prodigioso é um “libelo alegoricamente perene contra todas as manifestações de injustiça” (2009: 10). De facto, em causa estão os obstáculos colocados a um verdadeiro domínio sobre um percurso de vida e, consequentemente, ao exercício da liberdade de escolha. Ao físico é vedada a possibilidade de gerir o seu corpo e a sua condição. Ele nunca decidiu ser homem-deus: foi a madrinha a estabelecer um pacto com o Diabo. Também nunca conseguiu converter-se em homem: ao pretender fazê-lo, o caminho que se lhe abriu foi o da morte. Esta, de resto, a sua única escolha.

Vítima de um pacto, conforme os seis primeiros capítulos da novela esclarecem, o físico é também vítima de um julgamento absurdo promovido pela Inquisição, satirizado nos seis capítulos seguintes, que terminam a novela. Alegações descabidas, tortura e facciosismo, cuja intenção é condenar (mesmo que as provas não sejam evidentes), remetem para a contemporaneidade do tempo da escrita desta novela. Ainda que se encontrem nela referências claras a processos de condenação a bruxas e hereges empreendidos pela Inquisição desde a Idade Média, nota-se uma crítica acérrima ao totalitarismo. Sena não ignora a ameaça e a intolerância decorrentes de regimes ditatoriais. Por duas vezes se exila por motivos políticos: em 1959, altura em que parte para o Brasil, assim se refugiando da ditadura de Salazar, e em 1965, após os militares tomarem o poder nesse país e instituírem um regime totalitário, vendo-se assim coagido a partir para os Estados Unidos, onde veio a falecer treze anos volvidos.

Em termos internacionais, os anos de 1950 e 1960 foram também relevantes por exporem os horrores nazis, sucedendo-se julgamentos de criminosos de guerra. O do oficial nazi Adolf Eichmann, em 1961, mereceu a atenção de Sena, ao ponto de escrever o conto “Defesa e justificação de um ex-criminoso de guerra”, inserido na coletânea

Novas Andanças do Demónio (1966f), em que narra as memórias de um militar alemão,

defendendo a ideologia nazi. Segundo George Monteiro, “Sena’s indictment of Hitler’s ideology and the barbaric Nazi behavior they gave birth to is given great power through his calculated omission from his «Eichmann story» of all mention of Eichmann and the Jews” (1990: 12). A adoção do ponto de vista de alguém que comete crimes contra a humanidade como Herr Werner Stupnein, o protagonista do referido conto, esclarece a lógica que conduz à formação de uma ideologia do mal.

Num estudo sobre o nazismo, Phillipe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy explicam que o mito criado pelos acólitos de Hitler nada tem de irracional: o que existe é uma “logique du fascisme” (1991: 25). Eichmann, como os fictícios Stupnein ou os inquisidores de O Físico Prodigioso, representa o horror de regimes totalitários, mas a sua presença enquanto seres humanos não os distingue substancialmente dos restantes homens, assim demonstrando como a normalidade pode camuflar perversidades.

Os inquisidores da novela de Sena agem de acordo com os princípios que defendem, o que não justifica a sua perversidade. Acompanhar o processo de condenação a partir dos atos dos inquisidores, como acontece nesta novela, permite desmontar as estratégias de manutenção de poder, baseadas num Regimento legitimador dos atos mais atrozes. E se no conto “Defesa e justificação de um ex-criminoso de guerra” a perplexidade advém de uma argumentação fria e lógica da opressão e do racismo, em O Físico Prodigioso, o desmascaramento dos atos humanos reprováveis processa-se pela irrisão: os inquisidores são humilhados pelo Diabo, mas também pelo próprio físico, através da sua resistência passiva.

Nesta novela, a religião não sai incólume, porque também ela propicia a criação de organizações que agem de acordo com uma vontade de poder desenfreada. É pelo menos esse o retrato traçado em O Físico Prodigioso da Inquisição. Enquanto homem- deus, e neste aspeto por oposição, o físico exemplifica o que Jorge de Sena pretende com as suas personagens: expô-las às suas fraquezas e assim promover o que Eduardo Lourenço apelida de “desmascaramento da experiência humana” (1999: 45). Como Nietzsche, Sena apercebe-se de que os valores estão em permanente mudança, mas acredita na liberdade enquanto princípio absoluto, mesmo que tal signifique um desafio a Deus.

Através de O Físico Prodigioso, e usando uma vasta amálgama de influências, incluindo dos contos tradicionais, Sena escreve uma novela de transgressão. Como comenta nas notas finais à obra, “crê o autor que, boa ou má, nunca se fez em português uma diablerie tão inescapável como o seu conto ou novela” (Sena, 1966b: 123). A palavra “diablerie” refere-se, pois, não só às diabruras descritas ao longo da obra, como à própria subversão de género por ela assumida. Não surpreende assim que as duas histórias do século XV retiradas de Orto do Esposo (que, segundo o autor, serviram de base para a criação de O Físico Prodigioso), apareçam de tal modo transfiguradas ou diabolizadas. Fica a interpelação a uma época distante, através, por exemplo, do encaixe de cantigas de amigo – inventadas pelo autor –, para além de alusões a um imaginário

mágico, com simbologia notoriamente medieval e superstições que se ligam a práticas religiosas populares ancestrais. Deste modo, o experimentalismo de Sena vinca-se pela capacidade de subverter expectativas que as referências concretas suscitariam, num exercício de plena liberdade criativa. A regra, para Sena, consiste num exercício de provocação com vista à denúncia de atropelos éticos. Nem a atitude religiosa, nem Deus saem ilesos deste processo.