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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

5. Poderes em queda

5.2. O milagre, a ciência, o objeto

A ocorrência da magia em O Físico Prodigioso prende-se ao imaginário medievalista desta novela. O toque parodístico da obra seniana, porém, impede uma mera recuperação de temas antigos; também a magia e a sua ligação ao divino surgem aqui como o desmascaramento referido por Eduardo Lourenço (1999: 45). O protagonista desta novela usa práticas sobrenaturais, mas os físicos que o antecederam na cura de Dona Urraca também se distanciam da ciência tal como a pensamos hoje. A superstição dos outros opõe-se à magia divina do físico, redundando as duas numa questão de fé e milagre. Gorro, beleza e prodígios indiciam a divindade do físico (poder que ele repudiará), responsável pelos atos miraculosos. Nestes, não há ciência, mas revelação.

O físico e os seus poderes assumem-se, assim, por oposição aos outros, enquanto atestação da divindade. Por isso ele é prodigioso, ao passo que os restantes eram apenas “físicos”. No entanto, é com desconfiança que o observam:

– Grande físico… veremos – disseram os dois médicos.

E logo lhe começaram um exame. Usava ele imbigo de menino, cozido ou frito? E a corda do enforcado? Quanto tempo a punha de molho? Pela lua nova ou no minguante? E o olho mirrado do gato preto? Torrava-o? E a mão de toupeira? Em molho de giesta ou de serpão? E outras coisas mais que demonstravam a muita ciência deles, quando o cavaleiro disse:

– Mas isso são bruxedos, nunca medicinas.

Uma gargalhada geral reboou cristalina pela sala. E mesmo o frade deu largas à sua hilaridade, benzendo-se apressadamente.

Os dois médicos embatucaram. E um deles, de rosto seco e pardo, declarou: – A fronteira entre a medicina e a bruxaria é só a da virtude e a da fé.

(Sena, 1966a: 30) Ciência, bruxaria, fé: este excerto, que antecede o encontro do físico com Dona Urraca, sintetiza a confusão de conceitos de homens da ciência e homens da religião, frontalmente opostos ao homem-deus, como se este, anacronicamente, anunciasse métodos curativos inovadores, distinguindo ciência de bruxaria. Vinca-se a inversão da ordem convencional: o executante do prodígio deve atestar a sua validade, através da sujeição a um interrogatório parodicamente científico, não os médicos, nem os religiosos. Estes limitam-se a seguir receitas antigas, enraizadas em superstições e bruxarias, mas que servem de suporte às suas convicções. Mesmo a enumeração de técnicas curativas evoca rituais de magia negra, mais do que práticas medicinais. Médicos e religiosos encontram-se no limiar da transgressão, por oposição ao físico prodigioso, cujos dotes decorrem da sua condição divina.

Nietzsche afirma que qualquer filosofia “que deixa penetrar na escuridão das suas perspectivas finais o resplendor de uma cauda de cometa religioso, torna suspeito em si tudo quanto ela expõe como ciência” (1878: 119), perspetiva que pressupõe uma separação nítida entre o saber e a fé. Ora, tal separação nunca acontece em O Físico

Prodigioso. Pensando no protagonista, e sendo ele um híbrido de homem e deus, os

prodígios dispensam sustentações científicas: o milagre acontece por ação divina. Os físicos que anteriormente tentavam curar Dona Urraca, reivindicando o saber, são céticos na receção de novos métodos, no que são sustentados pelos representantes da Igreja. Ironicamente, o homem-deus parece mais crítico em relação às curas tradicionais, facilmente confundíveis com a bruxaria, do que os homens da ciência.

A conivência entre saber e religião em O Físico Prodigioso baseia-se assim em práticas mais semelhantes a sabbats (como se infere pelas perguntas dos médicos) do que curativas. A própria alusão à noite e a animais remete para as descrições efetuadas por condenados de práticas feiticeiras registadas em julgamentos da Inquisição, principalmente a partir do século XV. O processo que levou à condenação à morte na fogueira de uma suposta bruxa, Matteuccia di Francesco, em Todi, Itália, é esclarecedor. Conforme relata Carlo Guinzburg, esta mulher terá confessado que, “depois de se untar com gordura de abutre, sangue de coruja e sangue de crianças lactentes […], invocava o demónio Lucibello, que lhe aparecia em forma de bode” (1989: 255). A descrição prossegue até à chegada da bruxa ao local de realização do sabbat, onde se encontra com Lúcifer. O Físico Prodigioso, parodiando referências semelhantes, não reproduz o castigo desta bruxa italiana. O protagonista, podendo ser considerado bruxo, morre por opção; os inquisidores morrem por castigo divino.

Confrontada com a pergunta do físico, a audiência ri, e a gargalhada é “cristalina”: como se todos estivessem convictos da santidade de tais práticas, fundamentando a fé no facto de serem os próprios padres os principais estudiosos destas artes. Conforme Robert Muchembled explica, “não havia, para esses intelectuais [dos séculos XVI e XVII], qualquer fronteira a separar a medicina da religião, ou a ciência da fé” (2000: 100). Ora, nada prova que físicos e padres tenham práticas eficazes: Dona Urraca definha a cada momento. Por outro lado, o ritual do físico prodigioso revela-se salvífico: o seu sangue casto salva-a.

A verdade instituída era uma falácia, mas não há um real reconhecimento dos méritos do físico, condenado a ser perseguido por aqueles que se veem sonegados do poder. Por isso a afirmação final: médicos e religiosos são um só e sustentam as suas práticas apenas numa kantiana fé dogmática, cujos fundamentos entroncam na obediência ao que é interpretado como vontade de Deus, confundindo fé e saber. Assim, para os físicos e religiosos do castelo, reivindicar a fé e as virtudes resulta na legitimação do sistema sociorreligioso em que vivem.

Nesta obra de Sena, nem médicos nem representantes eclesiásticos podem ser considerados cientistas, muito menos sábios. Segundo Claude Lévi-Strauss, ao longo da evolução humana, houve “um divórcio – um divórcio necessário – entre o pensamento científico e […] a lógica do concreto, ou seja, o respeito pelos dados dos sentidos e a sua utilização” (1978: 24). Não havendo uma clara distinção entre bruxaria e medicina, como comenta um médico de Dona Urraca, a separação da lógica do concreto e do

pensamento científico dilui-se. O domínio é o da cultura, senão mesmo da fé, pelo que o divórcio apontado por Lévi-Strauss está apenas em esboço nesta novela. Milagre e ciência permanecem indissociáveis.

Desde a cura de Dona Urraca até ao final do capítulo seis, o físico empreende um percurso de conhecimento do seu corpo, mas também de consciencialização do impacto sobre os outros. Ele representa o indemne e o fiduciário, seguindo a formulação de Jacques Derrida, que usa estes adjetivos para qualificar “dois veios do religioso” (1996: 50). Se o indemne diz respeito ao intocável, o fiduciário prende-se à fé. A divindade do físico permanece intacta para além da sua desistência; eterniza-se ao transferir-se para outro físico. Já a atitude das donzelas revela uma crença ilimitada nos dons do físico. Para estas testemunhas dos prodígios, “a verdade é prometida para além de toda a prova, toda a percepção, toda a mostração intuitiva” (1996: 89). Esta fé inabalável baseia-se na beleza e palavra dele. Posteriormente à cura de Dona Urraca, as exigências aumentam, e ao testemunho ou ao penhor da palavra, as donzelas pedem mais atos, exigem novos milagres. Também o fiduciário permanece.

“Os dias corriam festivos no castelo” (Sena, 1966a: 69) após todos os prodígios. Atestação, milagres, preces são práticas superadas, porque nada mais há a desejar, e a veneração ao físico transforma-se numa espécie de atração circense para os habitantes do castelo (donzelas e ressuscitados), pois “a multidão de homens e mulheres não se cansava de vê-lo aparecer e reaparecer nos braços [de Dona Urraca], o que saudava com aclamações delirantes” (ibidem). Esperam o prodígio enquanto atividade lúdica: o milagre não serve para uma transformação humana, nem as donzelas pretendem do físico qualquer ensinamento. Interessa somente o assombro perante o maravilhoso. O mesmo acontece no seguinte extrato de Na Casa de Julho e Agosto, de Maria Gabriela Llansol:

Como fora das coisas criadas há as coisas incriadas, um peixeiro que assistia à missa viu uma coroa luminosa envolver a cabeça de Cristo e segredou a quem lhe estava perto: «Milagre». «Milagre», acabou Margarida por perceber que uma mulher dizia ao seu ouvido.

Como quando se chega ao milagre a decadência há muito começou, nada murmurou a Eleanora

(1984a: 127) Um reflexo transformado em milagre é o alimento da crendice, que, neste excerto, a Inquisição usa para perseguir cristãos novos. As beguinas Margarida e Eleanora não têm de pactuar com estas mentiras: a mística que perseguem não se compadece com

manifestações histéricas. As “coisas incriadas” aludem ironicamente à facilidade com que o rumor se gera, fomentando o clima para a obtenção de algum tipo de benefício. Neste caso, a Inquisição reforça o seu poder, perdendo todos quantos acreditam na justiça dos homens ou de Deus.

Este episódio ilustra o milagre enquanto sinal de decadência humana, na medida em que o homem projeta na intervenção sobrenatural a resolução de inquietações e maleitas, assim coartando a possibilidade de superação dos limites humanos. Essa atitude acaba por beneficiar os poderosos, de que a Inquisição é exemplo, pela astúcia em explorar vulnerabilidades humanas. Interessa menos se o milagre acontece ou não; importante é manipular os seus efeitos.

A existência de um físico prodigioso na novela de Sena remete para um plano fundamentalmente teológico, porque esta personagem produz milagres de facto. Porém, ao descobrir o poder dos seus feitos, o físico substitui a euforia pela saturação. Assumindo a vontade de ser apenas homem, talvez o físico pondere acerca da necessidade dos milagres: para quê continuar, se eles servem para propósitos humanos, demasiado humanos? Assim, Sena e Llansol reprovam o aproveitamento que os homens fazem da fé em milagres ou fenómenos sobrenaturais.

Dir-se-ia que o imaginário dos milagres estaria ausente em épocas de grande evolução técnico-científica. Aprender a Rezar na Era da Técnica, de Gonçalo M. Tavares, desmente tal conceção. Lenz Buchmann, o protagonista, sente-se imbuído do mesmo sentimento divino ao exercer o ofício de cirurgião: “a sua mão direita tem uma aura, uma cintilação não científica; um dedo suplementar, digamos, dedo invisível que dá o toque último que nos casos extremos salva” (2007: 26). Neste caso, a medicina produz o milagre, mas a salvação acaba por permitir interpretações místicas. Talento e perícia parecem a Lenz uma predestinação divina, que lhe concede valor alquímico, pois “numa situação de frio intenso, aquela mão, segurando o bisturi, seria o fogo” (ibidem). Há porém uma diferença notória desta personagem em relação ao físico de Sena, pois o suposto milagre da cura tem como principal consequência um autoendeusamento: Lenz transforma-se num mitómano.

O bisturi é, para Lenz Buchmann, o objeto que o diviniza, hierofânico, como o gorro da invisibilidade. O físico, após reverdecer a clareira, primeiro grande prodígio para além das curas habituais, questiona-se: “como nunca pensara que o gorro era a omnipotência, e não só o instrumento de torná-lo invisível?” (Sena, 1966a: 51). O gorro em O Físico Prodigioso simboliza a eternidade e supremacia do divino, dado

permanecer e encontrar novo dono, apesar das hecatombes que sucedem à inumação do protagonista. E se, para Pedro Eiras, a sugestão fálica do corpo ereto do físico “acentua- se com o gorro mágico, glande simbólica” (2008: 40), já Maria Alzira Seixo destaca este objeto enquanto “metonímia do poder e do encantamento, símbolo do demonismo persistente com o qual Jorge de Sena insiste em acreditar na acção da natureza humana” (1990: 20). Inegável é o papel do gorro tanto na consumação erótica (diz Dona Urraca que, como o físico perdeu a virgindade tendo posto o gorro da invisibilidade, manter-se- ia casto, sem diminuição do poder milagroso do seu corpo), quanto na concretização dos prodígios:

Teve então uma inspiração súbita. Abaixou-se e pôs o gorro na cabeça, ao mesmo tempo que cerrava os olhos, na formulação do pedido. Seria que o gorro ainda obedecia? Sentiu nos lábios um calor. Contra o corpo um corpo se colava. E mãos mui finas lhe afagavam o dorso. Abriu os olhos. O gorro obedecera.

(Sena, 1966a: 21) O gorro e a palavra conseguem transformar o mundo. Através deles, o físico é capaz de alterar o curso do tempo, desfazer o acontecido. Isso não implica uma associação ao demonismo. O gorro pré-existe ao pacto com o Diabo, na medida em que resulta de uma oferta anterior da madrinha ao físico. Se a invisibilidade se liga por tradição às forças do mal, por estas agirem de forma clandestina, este dom do físico não resulta em atos maléficos.

A própria invisibilidade do Diabo nesta novela nem sempre pode associar-se ao mal. Na proximidade do físico, só o seu riso casquinado e as carícias se percebem, já que está invisível. Quando convocado por Frei Antão de Salzburgo, mostra-se apenas como uma luz, assumindo depois a imagem de quem o chamou, num novo jogo de espelhos. Bem e mal indiferenciam-se, pela confusão dos papéis atribuídos a frades e ao Diabo. Este coincide com o físico no uso da invisibilidade, sugerindo uma transgressão: o mal dissemina-se pelos próprios representantes eclesiásticos, capazes dos atos mais maléficos.

O Diabo pode ser o desmascarador mordaz dos inquisidores, como o físico pode usar os seus poderes de invisibilidade para usufruir dos prazeres carnais, altura em que, afirma Óscar Lopes, pratica “os seus mais intensos actos eróticos, e ao que parece em conúbio com o Demónio ou um seu duplo feminino” (1978: 331). Os dois ligam-se pelo apelo do corpo, e “disso não haveria poder do gorro que o [ao físico] salvasse” (Sena, 1966a: 21). Este objeto revela a divindade, promovendo o milagre para além de

qualquer explicação científica. Porém, não impede a atração pelo terreno. Corpo e divindade exigem e cedem, num percurso inconciliável. Belo, escolhido, protegido, venerado: o homem-deus cresce em glória até à saturação. Nessa altura, só o abismo é solução.