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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

3. Comércios diabólicos

3.2. Contornos éticos de uma paixão

O físico é um mágico de poderes imensos conferidos pelo Diabo; este persegue-o e aproveita-se do seu corpo. O que aparentemente é uma clara divisão entre quem

exerce o bem, ao proceder a curas miraculosas, e quem exerce o mal, pelos abusos cometidos, transforma-se numa sucessão de logros, paródia que revela a indefinição de fronteiras entre o divino e o terrestre, entre o bem e o mal. Como afirma Luís Adriano Carlos, “a leitura poliédrica de Jorge de Sena exige uma permanente consciência de que a todo o instante irrompe um movimento dialéctico em que cada posição determina uma negação que a suprime” (2001: 104). O percurso do Diabo em O Físico Prodigioso escapa à linearidade narrativa: de violador a vítima pelo amor não correspondido; de protetor vigilante a acusador mordaz dos inquisidores. Tal complexidade implica a reavaliação desta personagem: em vez de símbolo do mal, o Diabo transforma-se em espírito livre. Nietzsche questiona, em Humano, Demasiado Humano:

Não se pode inverter todos os valores? E talvez o bem seja o mal? E Deus apenas uma invenção e astúcia do Diabo? Talvez, em última análise, tudo esteja errado? E se nós estamos enganados, não somos, por isso mesmo, também impostores?

(1878: 13) Na opinião de Nietzsche, um espírito livre em formação é irredutível a uma verdade única. O crescendo de curiosidade gera pensamentos tentadores que, em última instância, isolam quem os tem, dado distanciarem-se da moralidade convencional. As questões assim formuladas implicam fazer tábua rasa da doxa. Nietzsche afirma ainda que a vontade livre, aquela de que depende o ato de autodefinição, “pode destruir o homem” (ibidem). Seguir esse caminho leva à solidão, ou à rebeldia. Por isso Maria Gabriela Llansol inclui este filósofo na sua comunidade de Geografia de Rebeldes.

O Diabo, em O Físico Prodigioso, suscita as interpelações de Nietzsche. Ao ser convocado por Frei Antão, clarifica a atitude adotada perante o físico: quer protegê-lo porque o ama. Ora, numa manifestação óbvia da transmutação de todos os valores, o protagonista não tem um anjo da guarda, mas um diabo da guarda, cuja função cessa quando o físico toma a derradeira opção de prescindir da divindade e assumir a terra. Longe está, assim, o conceito de um diabo maléfico.

Segundo Jorge de Sena, numa nota introdutória a Antigas e Novas Andanças do

Demónio, “o demónio destas andanças em forma de conto não está em mim, está no

mundo” (1977b: 12). O Diabo de O Físico Prodigioso expõe o homem (o mundo a que Sena se refere) às suas fraquezas, injustiças, ao seu pendor para o mal. No poema “Passando onde haja túmulos…”, incluído em Exorcismos, o autor lamenta a maldade, como se ela fosse própria do homem, principalmente verificável na traição: “quanto sonho jaz / de uma grandeza sempre massacrada / traída e condenada por aqueles / que

são a humanidade” (1972a: 141), exclama o sujeito poético, lamentando o desprezo votado a pessoas cujo mérito só é reconhecido depois da morte. Camões é descrito nessa perspetiva, no poema “Camões na ilha de Moçambique” (1973a: 185): o génio ignorado enquanto vivo tem a legitimidade de ser altivo. Os génios permanecem como prematuros, ideia de Nietzsche retomada por Llansol:

Semivivos, que me cercais, e me encerrais numa solidão subterrânea, no mutismo e no frio do túmulo; vós, que me condenais a levar uma vida que mais valia chamar morte, voltareis a ver-me, um dia. Depois de morto terei a minha vingança: sabemos voltar, nós, os prematuros.

(1977: 59) Poderia ser o físico, após a sua prisão, a articular estas palavras: ele é torturado, condenado à morte, pelo que seria legítima a revolta. Porém, a pena não é cumprida devido à intervenção do Diabo. Por outro lado, a morte do físico só acontece por vontade própria: deixa-se vencer pelo cansaço. A escolha e os efeitos dessa escolha, com o cortejo grotesco do físico até à sepultura de Dona Urraca, acabam por se tornar numa denúncia das atrocidades cometidas, materializando-se na destruição dos carrascos. A morte em vida que o físico experimentou durante o cativeiro é assim ressarcida.

Na sua aparente submissão final, o físico revela-se enquanto espírito de rebeldia. O Diabo, por seu turno, revela-se agente do bem, ao impedir a condenação desejada pelos inquisidores. Nesta inversão de pressupostos, O Físico Prodigioso contraria a tradição, mesmo no que diz respeito à luta entre o bem e o mal. Para Georges Minois, o século XX assistiu ao desaparecimento do mito do diabo, numa responsabilização dos humanos pelos seus atos. Assumido como arquétipo do mal, o Diabo serviu durante séculos de cristianismo para resolver um problema teológico: se Deus é infinitivamente bom e omnipotente, como permite a existência do mal? A resposta a este dilema aponta duas vias: “ou Deus permitiu o mal e, nesse caso, não é infinitamente bom, ou não o permitiu e, nesse caso, não é infinitamente poderoso” (Minois, 1998: 143). Ainda nos primórdios do cristianismo, entre o século IV e o século V, Santo Agostinho sugere que o Diabo é mero exemplo do erro e que, portanto, o castigo recebido – expulsão do paraíso – é merecido. Daí decorre uma ilação importante: “Deus «do mal faz o bem»” (45).

Em O Físico Prodigioso não existe tal linearidade reconfortante, uma vez que há outros agentes do mal de dúbia remissão: os padres inquisidores. São eles que torturam,

sentenciam, convocam o Diabo, entregam o físico à sua sorte, quando impotentes para o condenarem, sem réstia de compaixão. O Diabo, nesta obra, não sendo modelo de virtudes, subverte o mito ao surgir, como defende Orlanda de Azevedo, enquanto “espécie de duplo do Físico, partilhando com ele os seus poderes e, consequentemente, fazendo-o comungar de uma mesma condição” (2001: 6). Essa é a condição de homem- deus, que o físico acaba por rejeitar.

Jorge de Sena aborda o aparecimento do demónio em Os Lusíadas, de Camões, rejeitando haver nesta obra um maniqueísmo absoluto, substituído por “uma dualidade intelectualista de natureza dialéctica, em que o Bem e o Mal, a vida e a morte, a luz e as trevas, todos os opostos possíveis, lutam entre si e se harmonizam numa transformação perpétua” (1982: 406). Esta manifestação de pulsões contrárias – eventualmente o equivalente das forças apolíneas e dionisíacas propostas por Nietzsche –, torna-se capaz de gerar o inesperado que, em O Físico Prodigioso, culmina na rejeição do estatuto divino por parte do protagonista, mas também na denúncia contra os ataques ao bem. Se os representantes máximos do catolicismo – os inquisidores – são capazes das mais aberrantes torturas, então o Diabo talvez não mereça o epíteto de representante do mal.

O Físico Prodigioso ilustra como a maldade do mundo não tem de ser atribuída a

um anjo que cai em tentação, transformando-se em Lúcifer. O julgamento do físico é disso prova suficiente, como esclarece a entrevista do Frei Antão ao Diabo:

− Que me digas porque não pode morrer aquele homem mau que condenámos à morte, por amor de Jesus Cristo.

− Vais suportar que eu te diga? − Vou.

− Porque o amo perdidamente, desde que primeiro o vi. E não consinto que ele seja destruído. Longamente, durante estes anos, eu vos quis provar que não consentiria. E, quando tentastes a própria tentação, quando a imagem dele ia perder-se, porque a mulher não resistiria ao abraço dele, eu castiguei-vos.

(1966a: 93) Frei Antão persuade-se de que o réu é um “homem mau”; para o Diabo, esse aspeto é irrelevante, pois o que lhe interessa é a paixão salvífica que tem pelo físico: só a cedência a tal paixão impede que a pena capital se concretize. Dona Urraca já o insinuara num diálogo com o físico: “se for preciso, há-de proteger-te, em vez de aproveitar-se da tua hora” (Sena, 1966a: 75). Se, de acordo com o arquétipo cristão, o Diabo deve sempre exercer o mal, então este momento representa a sua queda, já que ele cede à tentação e salva o físico. Neste exemplo, tal implica o restabelecimento da justiça, na medida em que o físico não cometeu qualquer crime. Por outro lado, para os

cristãos, apregoar a palavra de Cristo é apelar ao amor entre os homens. Ora, Frei Antão invoca o seu nome com uma mensagem de condenação à morte. Assim se invertem os papéis.

Apesar de este frade se sentir intermediário de Deus na comunicação com os homens, e, por consequência, ou inerência de cargo, portador legítimo do poder divino, nem ele nem qualquer outro membro da igreja católica conseguem castigar o físico. Como Orlando Nunes de Amorim sustenta, “n’O Físico Prodigioso, Deus não existe: quem distribui o bem e o mal, quem o condena é tão somente o Diabo” (1999: 270); deste modo, “a sua derrocada é, de um certo ponto de vista, mais grandiosa e, poder-se- ia dizer, mais «comovente»” (ibidem).

Segundo explica Harold Bloom, o gnóstico Valentino (século I) interpreta a origem do mal a partir de um mito adâmico neoplatónico. Assim, os anjos temem Adão por corresponder ao arquétipo Antropos e, desse modo, ser-lhes hierarquicamente superior. Por isso, vingam-se dele e é essa a origem do mal: assustados pelo possível castigo de Deus, “the angels rapidly hid or botched their work” (1980: 58), ou seja, criam o universo e fazem dele a casa de Adão. Não é só o mal que resulta da vingança dos demiurgos, pois o próprio universo tem aí a sua origem, assim ficando indissociável do mal. O homem primevo (e com ele o meio em que vive) torna-se vítima da inveja de seres inferiores ao Deus Uno (que se mantém numa transcendência absoluta), mas igualmente divinos. Em O Físico Prodigioso, o Diabo também exerce a sua influência sobre os destinos de um jovem homem, sendo responsável pelos seus poderes miraculosos. No entanto, não há inveja nem sentimento de vingança que determinem a queda do físico. Contrariamente aos demiurgos gnósticos, é irrelevante para o Diabo o Uno transcendente: só o terreno interessa, pelo que a queda do físico se deve apenas ao fracasso da condição de homem-deus.

Não é apenas nos momentos solitários do físico que o Diabo se manifesta, apossando-se dele sexualmente. Dona Urraca revela-o:

Querias que eu te amasse como amo, e não o sentisse perto como um rival infeliz? Mesmo agora ele está aqui. Mas não se atreve. Desde o momento em que, sem saberes, vinhas ao meu encontro, o que ele não tivera não teria já. Não é por mim, nem pelos teus poderes. Mas porque tu vinhas ser nos meus braços o amor que ele não conhece, o prazer que ele não tem, e esta fúria alegre que, mesmo sem amor, não há nos vícios que ele possa dar.

O Diabo acompanha o físico constantemente, mesmo que nem sempre o assédio se manifeste. Querendo o seu bem, permite que concretize a paixão pela senhora do castelo. A perspetiva do Diabo fornecida por Dona Urraca distorce a expectativa até aí gerada pela novela. De súbito, o “riso casquinado” (17) que sempre identifica o iminente ataque ao corpo do físico perde o cariz sarcástico, indiciador de supremacia. Afinal, tratar-se-á apenas da satisfação expectante, face à consciência de que os momentos próximos serão meros interregnos numa atitude de indiferença com que o físico pensa o Diabo. Por isso, a paixão deste pelo físico contrasta com a existente entre o físico e Dona Urraca: o Diabo torna-se perdedor, “rival infeliz” (74) de uma disputa amorosa.

O Diabo é, em O Físico Prodigioso, um ser contemplativo, apaixonado discreto e sofredor, que se aproxima do seu objeto de paixão apenas quando este está só. Tal procedimento sustenta a opinião de Francisco Cota Fagundes, para quem “o Diabo, nas obras de Jorge de Sena […] não é mais do que a personificação de muito que é humano, concebido como sendo sobretudo a personificação do indestrutível e inescapável poder do amor erótico” (1992: 209). Interpretar o Diabo enquanto personificação do inconsciente humano implica um distanciamento da tradição milenar no Ocidente, que associa o corpo ao mal através da ação demoníaca, instigada pelas hierarquias religiosas principalmente a partir do século XV. Perseguições a bruxas e acusações de corpos possuídos por íncubos e súcubos levaram a julgamentos e condenações à morte bárbaros. Conforme explica Georges Minois, “o Diabo […] concentra em si as reacções de medo, de revolta, de rejeição, assim como o fascínio por todas as delícias proibidas” (1998: 154). Ao empreenderem um combate contra as forças maléficas, os inquisidores acabam por cometer tantas atrocidades quantas as atribuídas ao próprio Diabo, como O

Físico Prodigioso ilustra:

Porque uma coisa precisamos saber e não sabemos: como se explica que um homem dotado pelo Demónio de tamanhos poderes, e gozando mesmo – e benzeu- se – do seu particular comércio e protecção, não tenha poder para libertar-se, nem que o porco sujo tente libertá-lo? Que malignidade terá o Príncipe das Trevas arquitectado, se nestes anos o abandonou?

(Sena, 1966a: 82) Não há ironia nestas interrogações proferidas por Frei Atanagildo, por alturas do julgamento do físico: ele está genuinamente intrigado com a inação do Diabo. A perplexidade, porém, suplanta qualquer sentimento de compaixão ou justiça. Tal como os membros da Igreja católica ou protestante que, sobretudo até ao século XVIII,

investigavam minuciosamente os casos de feitiçaria com vista à expulsão definitiva dos demónios, também no julgamento do físico, nesta obra de Jorge de Sena, os inquisidores revelam um conhecimento das artes demoníacas que o protagonista nunca demonstra ter. A hipocrisia do discurso dos inquisidores não se prende às questões demoníacas, mas aos atos cometidos para castigarem o físico. A ironia de Frei Atanagildo está, pois, na persignação: o ato de esconjurarem o demónio secundariza-se pela prioridade dada ao castigo do físico.

Em O Físico Prodigioso, o papel do Diabo define o relacionamento possível dos homens com o divino, ao mesmo tempo que revela as incongruências humanas perante o divino, colocando em causa o próprio sentido de dignidade, conforme Jorge de Sena vinca. O mote parodístico encontra-se desde logo no prefácio a Novas Andanças do

Demónio, coletânea de contos onde O Físico Prodigioso foi primeiramente publicado:

É possível que ele [o Diabo] não exista. Mas é minha opinião que o nosso mundo precisa muito dele. Tantas barbaridades monstruosas ou gentis têm sido, e continuam sendo, perpetradas em nome do combate a ele, e tanta gente tem pago tão caro a sua dedicação a alguma decência de ânimo, que vai sendo tempo de, para instalar-se uma ordem mais consentânea com a dignidade do Homem, se começar a venerar, com respeito, o Espírito Maligno, já que a veneração ao Outro parece que não dá grandes resultados…

(Sena, 1966c: 256) O demonismo assim descrito distancia-se de um culto do mal, ou de uma pesquisa dos meandros obscuros de mentes perversas. Jorge de Sena, nesta citação, procura uma divindade alternativa, numa crítica sobretudo às instituições eclesiásticas que contribuíram para, ao longo da História, se multiplicarem situações de injustiça, senão mesmo de horror. Essa, por exemplo, a história da Inquisição. A propósito do terrorismo, Slavoj Žižek comenta que “if there is a God, then everything, even blowing up hundreds of innocent bystanders, is permitted to those who claim to act directly on behalf of God, as the instruments of his will” (2008: 116). Desse ponto de vista, os terroristas da novela de Sena são os inquisidores. Tal manifestação de crença, por um lado, e a impunidade, por outro, são postos em causa pela novela de Sena. Retomando a ideia do autor, o mundo precisa do Diabo: agindo por paixão e expondo hipocrisias e injustiças ele adota um posicionamento ético capaz de questionar ortodoxias. Deste modo se esclarece a função de desmascaramento assumida pelo Diabo em O Físico