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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

3. Comércios diabólicos

3.3. Pactos com o divino

Repúdio, revolta, resignação constituem atitudes patentes na obra de Jorge de Sena face ao divino. Por isso, o desejo de comunicação entre homens e deuses não é unívoco, nem harmonioso. O pacto estabelecido entre o físico e o Diabo evidencia o conflito latente no relacionamento do díspar: domínio e subjugação inviabilizam cumplicidades. A existência do divino inevitabiliza-se, mesmo se apenas enquanto imaginário humano, como o deus descrito em “Metamorfose”, que, sugere o sujeito poético, será “imagem, só lembrança, aspiração” (Sena, 1958a: 38). Na novela de Sena, sendo o protagonista um misto de homem e deus, a comunicação entre terreno e divino torna-se tão natural quanto inescapável. O pacto representa a sua manifestação concreta. Há um primeiro pacto em O Físico Prodigioso: aquele que atribui os dons ao protagonista, estabelecido entre a madrinha e o Diabo, portanto, sem a existência de uma vontade explícita por parte do visado. Mas há também um outro pacto, que Frei Antão celebra com o Diabo, de modo a resolver o problema da inviável condenação do físico. Voluntários ou involuntários, os pactos desta obra distanciam-se de um propósito tendente à instituição de uma sociedade do mal. Os poderes miraculosos do físico curam, à semelhança dos milagres de Cristo. Assim, o pacto que confere os poderes ao protagonista desta novela tem como consequência a concretização de desejos e ambições individuais alheios ao seu próprio bem-estar, mas a que ele se submete enquanto cumprimento de um dever.

Adotando o que denomina de “ponto de vista diabólico”, Herberto Helder sugere que “talvez o homem seja um pensamento do Diabo” (2006: 160). O Físico Prodigioso corrobora tal ideia. É incerto que o físico possa existir somente enquanto homem: todas as suas ações resultam do pacto demoníaco. Ele torna-se divino por um pensamento do Diabo. No entanto, as restantes personagens agem de modo mais diabólico do que o próprio físico. Acusam-no de bruxo, mas ele recusa, dizendo que a sua alma “é de Deus” (Sena, 1966a: 33). Salva uma mulher por quem se apaixona, mas afinal tanto ela como as donzelas que a acompanham “eram tudo bruxas de um castelo infernal” (52). Frei Antão é acusado por um seu correligionário, Frei Demétrios, como próximo de espíritos satânicos: “Vossa Reverência não só entende deles, mas, ao que parece, entende-se também com eles” (100). O pacto de Frei Antão com o Diabo confirma-o. Todas estas circunstâncias problematizam os limiares do humano, pois nenhuma das personagens subsiste sem que estabeleça uma relação com uma entidade sobrenatural.

Explica o físico: “eu não tenho pacto com Satanás. Ele me persegue como a todos vós” (44). Através deste esclarecimento, defende-se das acusações de bruxo. Mas não se trata apenas de uma mentira salvífica e justificativa: o pacto com o Diabo não é de sua responsabilidade, mas da madrinha. Ela “(que lhe dera o gorro) convocara o demo, que logo se abraçara a ele apaixonado” (18). Ora, o gorro confere o dom da invisibilidade. A madrinha tinha poderes para convocar o Diabo, o gorro era dela; logo só a sua ação permite que os “poderes imensos” (18) conferidos ao físico pelo Diabo se concretizem. O homem-deus resulta assim da ação conjunta da madrinha e do Diabo, cuja consequência é sentir-se mera moeda de troca. As relações sexuais com este último parecem-lhe “um vexame” (17), o banho imediato uma necessidade, como forma de suprir a sensação de ter “ficado sujo de um amor a que se houvesse vendido” (ibidem). A reflexão do físico amesquinha-o por sentir-se objeto-homem tornado semideus.

A condição divina do físico não se manifesta apenas no relacionamento com o Diabo ou na ação de assistência a doentes e necessitados. Estende-se à sua vivência enquanto ser individual, o que acontece a partir do momento em que salva e se apaixona por Dona Urraca. Segundo Frederick G. Williams, “o Físico é, ao mesmo tempo, divino/mortal, e é transformado em, ou aparece sob diferentes aspectos: homem, deus, bruxo, diabo, besta (cavalo), matéria (cadáver) e planta (roseira)” (1990: 71). Como este ensaísta aponta, também Dona Urraca assume tal duplicidade, havendo inclusivamente a sugestão de um pacto com o divino, através do ritual de salvamento, que inclui um banho com sangue do físico.

Começa por ser a senhora de um castelo, padecendo de doença indeterminada, mais parecida com encantamento, na medida em que a cura exige um filho de rei que seja formoso, físico e virgem. Estas salvaguardas implicam o afastamento de causas corpóreas ou dramas psicológicos para a maleita de Dona Urraca: Sena não pretende abordagens freudianas, mas convocar o sobrenatural, usando referências do património tradicional português. Mesmo o anúncio destas condições indicia um pacto demoníaco, porquanto as mulheres que o revelam “casquinaram risinhos com as caras juntas” (Sena, 1966a: 25), verbo permanentemente associado ao aparecimento do Diabo. A primeira vez que este surge, o físico “ouviu de leve um riso casquinado” (17); depois, numa orgia com as donzelas, “um riso casquinou” (51) junto ao físico, desvendando-se logo a seguir que era “o riso casquinado” (52) do Diabo; finalmente, o físico ouve “de leve o riso casquinado” (72), na última vez em que se entrega ao Diabo. A mudança do artigo indefinido do primeiro encontro sexual descrito para o artigo definido deste último

encontro assinala também o crescimento do físico: sem desejo de purificar-se, ele sente “a volúpia de estar sujo assim” (73), rejeitando o banho que sempre tomava.

Portanto, Dona Urraca passa de um sofrimento de morte para um estado de paixão intensa, tornando-se numa mulher voluptuosa e tentadora, mas também numa mulher dominadora a ponto de parecer ter poderes sobrenaturais, como de vidente ou bruxa:

Fitou Dona Urraca. Estava muito direita na sela, com os lábios apertados, e um olhar duríssimo e penetrante que parecia comandar a vontade dele e mesmo a sua capacidade de fazer milagres. […]

Num pânico, porque nunca, nunca, tentara coisas daquelas, ele viu que não podia escapar-se de tentar o que lhe pediam

(50) Dona Urraca e as donzelas coagem o físico a reverdecer a floresta, calcinada por um fogo. O olhar delas comanda as capacidades do físico, deixando-o em pânico: está a entrar num novo território, em que os seus poderes se submetem à vontade de outrem que ele associa ao mal. Tal como o Diabo percebe que a paixão pelo físico o leva à submissão, também este se submete ao olhar penetrante de Dona Urraca. Por isso, quando obedece, fá-lo convencido de que foi enfeitiçado por uma bruxa, mas conforma- se perante a evidência pronunciada pelo Diabo: “bruxo é o que tu és” (53). Assim se estreitam os laços, à medida que a clarividência invade o físico: “era um bruxo, um bruxo, e por isso as bruxas o amavam” (ibidem).

Fitando o físico incisivamente, Dona Urraca condiciona-lhe os atos, não só neste momento, como quando o manda voltar ao momento em que ainda era virgem (72): também ela mantém estreitas ligações ao sobrenatural, talvez ao Diabo. Afinal, ela afirma saber que este os observa. As perguntas do físico são enigmáticas: “como sabes e como pensas tudo isso? Só porque me amas? Ou porque tu és ele mesmo?” (75). A inexistência de resposta presta-se especulações.

O físico dá o sangue que cura Dona Urraca. Durante a cena orgíaca da clareira, Dona Urraca surge “com um pedaço a escorrer sangue, que ela trincava” (52). Os rituais de sangue que acompanham o percurso desta personagem com o físico confirmam a proximidade às práticas demoníacas. A demonologia, estudo das “manifestações físicas do Diabo” desde o século XVI, sancionava o que Robert Muchembled carateriza como “mito da instrumentalização do corpo humano pelo Diabo” (2000: 135). A carne, através dos atos sexuais, e o sangue eram as manifestações mais claras dessa ligação.

Ora, o físico cura através do seu sangue. Em consonância com a aproximação desta personagem a Cristo, poder-se-ia estabelecer um paralelismo entre o ritual e o

sacrifício de Cristo, que dá o sangue para remir os pecados dos homens. Contudo, em O

Físico Prodigioso, é ao Diabo, não a Deus, que o ritual do sangue se associa. O frade

que assiste ao sangramento do físico e ao banho de Dona Urraca, sete vezes mergulhada no sangue do homem-deus, alude a tal possibilidade, gritando para ele, enquanto empunha a cruz: “vade retro, vade retro, vade retro, Satanás” (Sena, 1966a: 33).

O físico rompe a pele, perde sangue, espera que o banho termine. É ele quem perde a virgindade, quem, para Pedro Eiras, “devém andrógino”, havendo assim um “tornar-se mulher do físico: uma perda de sangue que é «água da sua castidade», rompimento do hímen. Parà: o físico deita-se na cama dela, o físico é ela mesma” (2008: 48). Não há metamorfose, há identificação, fusão de um casal perfeito. Dona Urraca e o físico estão unidos através de práticas suspeitosas, estabelecendo um pacto que, como sugerido no final da novela, será eterno. No entanto, há ainda um terceiro termo: o Diabo. Dona Urraca conhece os hábitos do físico, mesmo os que ele nunca revelou, como a contemplação de si próprio nas águas do rio: “quando te contemplavas, não era a ti que contemplavas, mas o que tu serias para quem te contemplasse” (43). Só o Diabo conhece este ritual, porque só ele vê o físico. Conclusão: só ele pode contar este detalhe a Dona Urraca. Como sustenta Fátima Marinho a propósito desta novela, “o

Mesmo é sempre também os Outros” (1981: 148), salientando a prevalência nesta obra

de uma “coincidência de opostos” (142), que dá origem a um “princípio de não- disjunção” (ibidem). Assim poder-se-ia chegar à conclusão de que o físico é Dona Urraca, que é o Diabo.

Jorge de Sena afirma pretender inquietar as almas de quem o lê; fazê-las perderem-se. Por isso rejeita parábolas, que têm sempre a intenção de moralizar. No prefácio à primeira edição de Novas Andanças do Demónio, esclarece o efeito que pretende causar nos outros:

fazer com que sintam o chão fugir-lhes debaixo dos pés. Que, sobretudo, quando estão tão seguras de salvar-se (por si ou pelo grupo a que pertencem), desconfiem de que podem, afinal e, pura e simplesmente, ter vendido uma coisa que não eram nem tinham: a alma.

(Sena, 1966c: 258) Frei Antão poderia encarnar o perfil humano aqui esboçado e que O Físico

Prodigioso pretende desmascarar. Esta personagem está num estado de perplexidade

porque o físico não morre, apesar de todas as torturas e dos anos que passam. Achando- se um representante de Deus na terra, sancionado pela posição de padre inquisidor, ele

julga-se legitimado a convocar o Diabo, acabando por fazer um pacto com ele: a libertação do físico em troca pela restituição dos rostos dos padres cuja fisionomia, por artes diabólicas, se transformara na do réu. Enunciando “é pacto selado” (95), Frei Antão despede-se do Diabo, reza e regressa ao pátio, “encapuçando-se” (96). Este gesto reitera a proximidade de todas as personagens ao Diabo, bem como a transgressão dos cânones eclesiásticos e a recetividade a pactos, dado concretizarem a aliança do terreno com o divino.