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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

2. Pluralidades religiosas

2.2. Entre o catolicismo e o paganismo

O posicionamento religioso de Jorge de Sena carateriza-se pela ambiguidade, senão mesmo contradição. Já em final da sua vida, num texto escrito em 1976 para agradecimento de um prémio literário que lhe foi atribuído em Grado, Itália, afirma-se ateu, mas confessa a sua adesão a uma forma não cristã de catolicismo, cujos rituais o atraem apenas por estarem mais próximos de práticas populares. Isso significa que, na opinião de Sena, o catolicismo camufla o paganismo subjacente. No referido discurso de agradecimento, escreve:

Religiosamente falando, posso dizer que sou católico mas não um cristão – o que significa que respeito na Igreja Católica todo o velho paganismo que ela conservou nos rituais, nos dogmas, etc., sob vários disfarces, tal como a Reforma protestante não soube fazer. Acredito que os deuses existem abaixo do Uno. Mas neste Uno não acredito, porque sou ateu. Contudo, um ateu que, de uma maneira de certo modo hegeliana, pôs a vida e o seu destino nas mãos desse Deus cuja existência ou não existência são a mesma coisa sem sentido. Filosoficamente, sou

um marxista para quem a ciência moderna apagou qualquer antinomia entre os antiquados conceitos de matéria e espírito.

(Sena, 1976a: 256) A afirmação do ateísmo serve aqui para sustentar a defesa de práticas religiosas múltiplas que o catolicismo sobretudo popular acolhe. De acordo com Vittorio Cattaneo, a formulação Deus / deuses / homens retrata a evolução da obra de Sena (1992: 53). Em Perseguição, primeiro livro publicado pelo autor, em 1942, logo o primeiro poema da parte I, “Arrecadação”, aponta para o distanciamento entre os astros no céu e os homens. Os astros observam o espanto dos homens, que querem “em nós ler o segredo…” (Sena, 1942a: 37), ao passo que no poema “Unidade”, o confronto do eu poético consigo próprio e com Deus se baseia na dúvida: “eu nem quero falar-Te, / nem quero acreditar em Ti… / …não é seguro acreditar!... / quero duvidar, duvidar sempre” (1942d: 73). Fé sentida e negada, comunicação difícil implicam uma atitude de afirmação pessoal cuja consequência é a rutura com o Deus único. Negar deste modo uma interação espiritual revela o ateísmo tal como perspetivado por Sena.

Assim, quando, em 1946, este poeta edita Coroa da Terra, os temas desenvolvidos incidem sobre as dores dos homens: a perspetiva é terrena. A própria morte não implica o desprendimento da alma, porque nem sequer é certo que esta exista. Conforme salienta em “«Tenção» do amor nocturno”, “Hei-de vir, meu amor, depois de morto, / sem alma nem presença, feito nada, / mortos comigo a força de chamar-te / e o acaso universal de que vivi” (1946: 96). Uma alma que é nada, um acaso que gera a vida: o ateísmo permanece. A fragmentação de Deus em divindades diversas que as obras posteriores evidenciam é diretamente proporcional à valorização do homem. O respeito pela fé e por práticas religiosas decorre desse sentimento, sem que a existência do Deus Uno, conforme referido no excerto acima, seja necessária.

O apreço de Sena pelos rituais católicos enquadra-se numa perspetiva de religião que, conforme defende Moisés Espírito Santo a propósito da religião popular portuguesa, consiste “em representações colectivas, em rituais e em condicionamentos sociológicos” (1984: 225). Em O Físico Prodigioso, este último ponto é substituído pelas múltiplas referências culturais do autor: não havendo tempo nem espaço definido, o povo e as suas práticas religiosas mitificam-se. Ainda segundo Moisés Espírito Santo, “por detrás de uma grande parte da religião dos camponeses [mas das cidades também] não se encontra qualquer divindade bem definida ou com funções precisas” (14). Essa constatação conduz a uma liberdade de fé e de práticas religiosas que Sena explora em

O Físico Prodigioso. A ortodoxia cristã, obedecendo a normas das instituições

eclesiásticas, é superada nesta novela pela religião popular, adversa a constrangimentos regulamentares. Por isso Sena se aproxima das práticas populares católicas, mas rejeita o cristianismo: santos e rituais remetem para uma pluralidade de entidades a venerar que suprimem a necessidade do Deus Uno.

Também Nietzsche, em A Gaia Ciência, exprime ideias semelhantes na sua crítica à Reforma. Para este filósofo, a estrutura de uma Igreja deve assentar sobretudo na experiência e no conhecimento do homem, fatores que o protestantismo rejeitou:

A reforma de Lutero foi em toda a sua extensão a indignação da simplicidade contra a «multiplicidade», para falar prudentemente, um mal-entendido ingénuo e tosco, ao qual há que desculpar muita coisa – não se entendeu a expressão de uma Igreja vitoriosa e só se viu corrupção, entendeu-se mal o nobre cepticismo, aquele

luxo de cepticismo e tolerância, que toda a potência vitoriosa e segura se permite…

(1882: 282) Deste modo, a reivindicação de um Deus próximo da realidade humana, a aceitação implícita de um Uno, inexistente, porém, e a junção da matéria ao espírito são elementos de uma religiosidade percecionada enquanto componente humana, talvez um seu limite. Como refere José Augusto Seabra a propósito de As Evidências, livro de poesia de Sena editado em 1955, a cosmovisão deste autor oscila “entre um politeísmo e um catolicismo igualmente pagãos, ou pseudopagãos, de que as ambiguidades místico- eróticas dão sinal” (1980: 88). Como se politeísmo, catolicismo e paganismo confluíssem num mesmo ponto, reterritorializando-se.

A duplicidade é permanente em O Físico Prodigioso. Por exemplo, logo no primeiro capítulo, duas colunas em paralelo narram o mesmo acontecimento de maneiras distintas. Na primeira ocorrência, à esquerda, as três donzelas apresentam-se de acordo com os estereótipos medievais de virtudes cristãs, fascinadas pela beleza do físico mas, ao mesmo tempo, desviando “de pudor os olhos ante tal maravilha” (Sena, 1966a: 20), indício da sua castidade. Já a coluna da direita apresenta um relato muito mais próximo do paganismo greco-latino, com três deusas voluptuosas que medem o físico “da cabeça aos pés” (ibidem), enquanto “cupidinhos [esvoaçam] tocando flautas” (ibidem). Estes relatos somente na aparência se opõem; em comum permanecem os estados de êxtase e desejo. Em O Físico Prodigioso a beleza do protagonista alia-se aos dotes mágicos, pelo que a veneração de que é alvo é tão mística quanto erótica.

Ao afirmar que a “existência ou não existência [de Deus] são uma e a mesma coisa” (Sena, 1976a: 256), o autor despreza Deus para valorizar os atos e cultura humanos. Já em 1941, escreve no poema “Procissão”, incluído em Perseguição:

Oh a fé límpida!

como a união dos raios da roda a grande velocidade! Mas todos os homens vão,

aprendem os sintomas da minha raça, voltam e julgam. E é como se eu não fosse transparente

ao clarão da altura

e nulo ante o adensar da imagem.

(Sena, 1942b: 70) As exclamações iniciais revelam o espanto pelo fervor religioso e a vertigem que se desencadeia no interior do sujeito poético, ou em quem passa pela experiência da fé. O poema junta profano e do religioso: os que assistem à procissão fazem-no devido a uma assimilação cultural, que os molda e torna judiciosos. Esta situação inquieta o sujeito poético, que interpreta a fé como uma predisposição íntima de contacto com a transcendência. Por isso sente-se visado pela imagem, que ele sente olhá-lo, julgá-lo, amesquinhá-lo. Neste poema, o ritual da procissão supera a comunicação direta com Deus, tornando desnecessárias as revelações místicas.

O suporte cultural da novela O Físico Prodigioso não se reduz às Escrituras bíblicas. A herança cultural presente nas manifestações de fé nesta novela é tão importante quanto as leituras de textos místicos canónicos, assim como a experiência pessoal de relacionamento com a religiosidade. Atitude semelhante existe em Maria Gabriela Llansol, conforme se percebe em A Restante Vida. Nesta obra, a narradora relembra uma casa da infância em que pairava “uma religiosidade de Igreja” (1983a: 80), mas o que de facto a sensibiliza é o que vê “para lá da janelas [onde percebe] uma religiosidade pagã, o meu amor extraordinário pelos troncos de árvore, e pela penetração de qualquer luz” (ibidem). Os dois escritores parecem concordar na divisão entre religião institucionalizada e religiosidade intuitiva, necessariamente plural, como no paganismo.

O Físico Prodigioso complexifica esta divisão por estabelecer zonas de contágio

que impedem a referida dicotomia. Os mais destacados representantes da Igreja Católica opõem-se frontalmente ao protagonista, reivindicando a autoridade de Deus. Porém, nunca derrotam o físico, nem mesmo quando o condenam à morte, já que nem sequer o

conseguem enforcar. Por outro lado, as práticas que usam podem também ser interpretadas como supersticiosas, chegando aos limiares da heresia. Assim, antes da chegada do físico ao castelo onde Dona Urraca agoniza, os médicos que a tratam com o beneplácito dos frades recorrem a práticas de feitiçaria, defendendo que “a fronteira entre a medicina e a bruxaria é só a da virtude e da fé” (Sena, 1966a: 30). Já na segunda parte da novela, o inquisidor Frei Antão recorre a um ritual satânico para convocar o Diabo. A ortodoxia católica é definitiva e satiricamente posta em causa.

Arthur Schopenhauer divide a atitude religiosa em duas categorias: a primeira depende da reflexão, da cultura, de tempo disponível e de ajuizamento, o que a torna pouco acessível; já a segunda tende a um registo popular, voltando-se para a multidão, que se inclina perante uma autoridade, sem pensar. Esta segunda tipologia expressa a verdade através de prodígios e milagres (1844: 26). O Físico Prodigioso explicita uma religiosidade de tipo popular: os feitos miraculosos do físico desvendam o caráter divino desta personagem. Racionalmente inexplicáveis, os milagres produzidos são alvo da crença e devoção populares. Do ponto de vista cultural, os prodígios seriam considerados bruxaria, resultantes de um pacto com o demónio – assim o dizem os padres inquisidores que julgam o físico (Sena, 1966a: 77). Já de um ponto de vista popular, trata-se apenas de práticas curativas inquestionáveis, dado que somente a fé as explica:

– Não há nada que tu não possas fazer. Manda que tudo reverdeça.

E as donzelas todas ecoaram: – Manda, manda! –, enquanto as três principais o rodeavam, cruzando a que estava ao lado de Dona Urraca pela frente e ficando com o pescoço do cavalo dela enganchado no dele. E ele viu-lhes nos olhos os clarões das deusas. Fitou Dona Urraca. Estava muito direita na sela, com os lábios apertados, e um olhar duríssimo e penetrante que parecia comandar a vontade dele e mesmo a sua capacidade de fazer milagres. As outras haviam feito um cerco cerrado, em que os cavalos, muito encostados, sacudiam as cabeças.

Num pânico, porque nunca, nunca, tentara coisas daquelas, ele viu que não podia escapar-se de tentar o que lhe pediam e, lentamente, pôs-se de pé nos estribos. […]

– Que tudo reverdeça.

(49) Sem poderes milagrosos, estas mulheres – deusas, conforme o texto enuncia – condicionam a ação do físico, coagido a usar os seus dons para satisfazer a vontade delas. A fé destas mulheres determina que o homem-deus mande o reverdecimento da natureza, exercendo um poder que ele ignorava possuir. A forma imperativa com que ordena aproxima-se da frase bíblica “faça-se luz”. Tal como defende Schopenhauer, a

natureza alegórica das religiões dispensa-as “das demonstrações que a filosofia é obrigada fornecer, e da necessidade do exame; substituem-nos pela fé, quer dizer, exigem uma crença voluntária na sua verdade” (1844: 31). Deusas-mulheres, em primeiro lugar, e físico-deus, instigado pela confiança delas, em segundo lugar, creem. O físico vê nos olhos das donzelas uns “clarões das deusas”; estes comandam a sua vontade e o milagre acontece. A fusão de catolicismo e paganismo novamente se concretiza.