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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

3. Comércios diabólicos

3.4. Aproximações fáusticas

O Físico Prodigioso narra o percurso de autoconhecimento de um homem-deus. A

progressiva consciencialização de ser uma divindade leva o protagonista à desistência: só a morte se afigura como alternativa a uma vida tornada tédio. A decisão do físico conduz à quebra do pacto com o diabo, mas também dos laços com as restantes personagens humanas. A renúncia é assim o ato de grandeza desta personagem, único momento em que assume uma vontade individual. O mito de Fausto aparece invertido: não é ele, o físico, quem convoca o Diabo para com ele estabelecer um pacto por um tempo limitado, como acontece em Fausto (1808), de Johann Wolfgang von Goethe. Nem pretende a beleza eterna conforme retratada por Oscar Wilde, em The Picture of

Dorian Gray (1890), muito menos assegurar a genialidade pretendida por Leverkühn,

protagonista de Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann. Acabado o interesse pela vida terrena, a vida celeste ou a vida de prodígios parece também desinteressante ao físico de Sena. Por isso rompe o pacto – ou pactos – e morre, liberto de homens e deuses.

Para Orlando Nunes de Amorim, O Físico Prodigioso é “uma paródia do mito de Fausto” (1999: 269): o tema assemelha-se, o tratamento é diverso. Jorge de Sena tece uma narrativa que, não negando a convivência com os deuses, coloca em dúvida a possibilidade de uma coabitação. Como refere Eduardo Lourenço, os textos deste autor manifestam “fausticamente, numa só página, numa só linha, um concentrado de cultura

humana” (1999: 46). Há, em O Físico Prodigioso, traços do mito de Fausto, na mesma

medida que se notam referências à literatura popular, como conhecimentos teológicos cristãos e pagãos. A grande diferença, porém, reside no desfecho: nesta obra de Sena, a desistência é uma decisão consciente, não o término esperado de um pacto, como na obra de Thomas Mann, nem a redenção moral, como na de Goethe.

Segundo João Barrento, a partir do século XX “o diabo ficou desempregado porque o próprio Homem é mais diabólico do que ele” (1984: 133). Por isso começam a escassear obras de cariz fáustico ou, quando surgem, assumem um tom parodístico. Escrito já na segunda metade do século XX, O Físico Prodigioso só poderia retomar este tema por superação. Como o próprio autor refere, “não há valores transcendentes que mereçam mais respeito que qualquer vida humana” (1971: 17). Logo a seguir, porém, refere que esses valores estão “impregnados de falsidade baixamente humana” (ibidem), num reforço da incompatibilidade entre os homens e o ideal de humanidade, se este assentar na transcendência. Para Sena, só o afastamento dela permite a aprendizagem de uma verdadeira dignidade, feita de

muito singelos e modestos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre, e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se.

(1971: 17) A existência do físico e o seu percurso de autoconhecimento refletem os ideais expostos, na medida em que, para esta personagem, prover ao bem-estar dos outros não decorre do cumprimento de uma vontade imposta por entidades transcendentes, mas de uma obrigação inquestionável: o físico cura os outros porque é esse o seu ofício. Ele age de acordo com valores imanentes. Quando adquire a consciência de ser um homem- deus, o “esplendor de existir-se” apontado por Sena desaparece.

De objeto para desfrute de um Diabo e de todos quantos salva, o físico passa pela paixão e pela aprendizagem do amor carnal, até à definitiva renúncia a um estatuto divino e a um corpo humano. Inversamente ao mito de Fausto, o pacto com o Diabo, mais do que involuntário, não é desejado pelo físico. Nem a alma está em causa: o Diabo escolhe-o pela sua beleza. Esta caraterística catalisa toda a ação da obra, pois é condição imprescindível para a cura de Dona Urraca e motivo de inveja por parte de outros homens, incluindo os padres da Inquisição.

Em The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde, a beleza determina também a ascensão e queda do protagonista, ou seja, do seu pacto com o diabo:

I shall grow old, and horrible, and dreadful. But this picture will remain always young. It will never grow older than this particular day of June… If it were only the other way! If it were I who was to be always young, and the picture that was to grow old! For that – for that – I would give everything! Yes, there is nothing in the whole world I would not give! I would give my soul for that!

O retrato de Dorian é a evidência do efeito que a beleza desta personagem produz no artista que o observa e do deslumbramento causado naqueles que contemplam a obra produzida. A beleza assume assim um estatuto próximo do divino: torna-se num ícone para devoção dos outros, como Sybil Vane, apaixonada que se sacrifica, suicidando-se. O próprio Dorian dá a alma em troca de uma beleza eterna. Nesta obra, o desejo determina o pacto, percetível apenas pela progressiva desfiguração do retrato, escondido em local inacessível. Quanto ao modelo, permanece num estado de juventude sem fim, fruindo de uma vivência de dandy. O mito de Fausto assume nova configuração: a beleza perpetuada substitui a vontade de conhecimento, pelo que a tentação existente prende-se à esteticização da vida.

Não há dandismo em O Físico Prodigioso, mas a beleza determina o destino da personagem principal. Ainda que em The Picture of Dorian Gray o Diabo nunca apareça, nem sequer seja mencionado, o pacto acontece devido à beleza do protagonista. São duas as consequências principais: tanto Dorian Gray como o físico se transformam em polos atrativos de admiradores e de inimigos; por outro lado, tal facto condu-los a uma saturação irreversível. Assim, o perdurar da beleza implica o avolumar de incompatibilidades com a vida exterior e consigo próprios, pelo que a derrocada se torna inevitável. A transformação final dos dois em corpos grotescos simboliza a renúncia à excecionalidade de uma beleza que os corroeu. Só a morte resolverá o sofrimento.

Apesar de todas as torturas ao físico, nada “o envelhecera ou retirara uma parcela sequer da juventude irradiante e da temível beleza, que eram as suas” (Sena, 1966a: 79). Para os padres inquisidores que o julgavam, essa era a “prova da sua natureza demoníaca” (ibidem), ou seja, uma evidência material que o liga ao Diabo e o culpabiliza. Até ao século XVII, nos julgamentos de pactos com o diabo, a busca de uma marca demoníaca era importante não só como prova de culpa, mas para materializar a presença dessa figura. Às vezes, o próprio réu se autoconvencia da existência do pacto. Os inquisidores que observam o físico inserem-se neste tipo de apreciação. Eles interpretam o desprendimento e a indiferença do réu perante a tortura como admissão de culpa, considerando que o físico manifestava “todos os sinais exteriores do mais profundo arrependimento” (ibidem), quando se tratava afinal da manifestação de um profundo e irreversível tédio.

O físico de Sena não é Fausto: não se arrepende nem pretende a salvação eterna. Também Dorian Gray se afasta de uma conceção fáustica: parece arrepender-se, mas

não pede a absolvição, nem se rende a um deus magnânimo. Dorian Gray morre por saturação de uma juventude eterna, mais do que por consciência das más ações cometidas. Não há sombra de bem; só o mal prevalece, seja quando tenta uma forma de regeneração, afastando-se da jovem e inocente Hetty Merton, mas provocando a sua melancolia, seja nos momentos que antecedem a própria morte, altura em que reflete negativamente sobre a conduta de toda uma vida – a sua. Nesse momento, pensando no retrato, toma uma resolução: “yes, he would be good, and the hideous thing that he had hidden away would no longer be a terror to him” (Wilde, 1891: 253). No entanto, quando confrontado com o retrato, “this mirror of his soul” (254), conclui que nada muda, pois vê “in the mouth the curved wrinkle of the hypocrite. The thing was still loathsome” (ibidem). O golpe de faca no retrato – que significa o seu próprio aniquilamento – é o último ato de orgulho. Parecia arrepender-se, antes de ver o retrato pela última vez; esse sentimento desvanece-se quando confrontado com a irreversibilidade do pacto: não há para ele remissão possível, nem ele já a deseja.

Diz Lord Henry (a personagem que influencia Dorian a viver para a beleza): “nothing can cure the soul but the senses, just as nothing can cure the senses but the soul” (28). Sentidos e alma, corpo e espírito entrelaçam-se de tal forma que a perdição de uns implica a perdição de outros. O percurso, porém, é tentador, dados os prazeres usufruídos. Essa é também a descoberta do físico, na passagem da dádiva indiferente ao Diabo para o prazer erótico com Dona Urraca e as donzelas. A máxima de Lord Henry é retomada no final do romance de Oscar Wilde, mas o efeito de deslumbramento que Dorian sentira no início desvanece-se em angústia: “how the words rang in his ears! His soul, certainly, was sick to death” (212). Quando a saciedade chega, Dorian sente que a alma lhe morre; o físico sente a mesma saciedade, só que, sugere o Diabo, tal resulta do aparecimento da alma:

Só Dona Urraca, que vinha pôr-se a seu lado silenciosa, esperando que ele despertasse da melancolia, o retirava da sua contemplação. Abraçava-se então a ela e possuía-a em desejos súbitos e dolorosos, de que emergia mais triste. E às noites, quer fossem escuras, quer de estrelas cintilando no céu negro, lá estava ele outra vez e sempre, olhando o espaço numa tristeza sem nome.

(Sena, 1966a: 70) O físico entrega o seu corpo, num desejo de imanência, mas o prazer traz apenas melancolia, ao ponto de desejar a morte. Parece anunciar-se um outro apelo, o da noite escura, que o físico contempla talvez como um místico. No poema “Noite Escura”, S. João da Cruz assinala a união perfeita da alma a Deus, o Amado que tudo apazigua.

Nesse encontro, o sujeito poético – a alma –, confessa: “cessou tudo, e deixei-me, / deixando o meu cuidado” (1627: 41). Ora, de cada vez que o físico se deixa envolver pela noite escura, não é o êxtase que o aguarda, mas o confronto com ele próprio, como acontecera já aquando da cura de Dona Urraca. Nessa altura, “ele encostou-se a uma fresta, olhando a noite escura. Tinham-se esquecido dele” (Sena, 1966a: 37). Aos seus olhos, o prodígio resulta em ostracismo por parte dos homens, e, por mais que contemple a noite escura, esta nunca se tornará “amável mais que a alvorada”, como a descrita por João da Cruz (1627: 41).

Esfaqueando o retrato, Dorian inverte os efeitos do pacto: a normalidade regressa, pois o retrato retoma o esplendor do momento em que foi criado, ao passo que o seu corpo morto assume a imagem grotesca de uma vida dissoluta. Já o físico seniano deseja a morte. É até somente no desfazer do pacto que o físico expressa uma vontade. O

Físico Prodigioso não esclarece cabalmente o significado de tal ato, mas o poema “A

noite profunda”, escrito em 1962 e publicado em Peregrinatio ad Loca Infecta, expõe uma versão bastante negativa da alma:

Apenas, e é isso a alma, uma sensação

de nódoa, como de dedos, dentes, que apertassem, mordessem algures no âmago da carne, lá onde o âmago não existe senão como o que fica de sentir-se a nódoa negra dessa uma outra noite.

(Sena, 1969b: 57) A alma desfaz a carne. Traga-a. A angústia, a dor de alma, portanto, sente-se no corpo, transforma-se em nódoa negra, ferida sem cura. Ao contrário da máxima que rege a vida de Dorian Gray, segundo a qual alma e sentidos concorrem para uma cura, neste poema de Sena a alma corrói o corpo, tornando-se doença mortal. O mesmo é sugerido pelo Diabo de O Físico Prodigioso, quando revela a Frei Antão que o físico começara a ganhar alma, assim se perdendo.

Em El Mágico Prodigioso, comédia escrita por Calderón de la Barca em 1663 e que Jorge de Sena assume como referência, acontece o inverso. O protagonista, também ele com um pacto demoníaco, é Cipriano. Porém, a sua alma acaba resgatada por Deus:

aunque es verdad que yo agora esclavo soy del infierno, y que con mi sangre misma hecha una cédula tengo, con mi sangre he de borrarla en el martirio que espero.

Cipriano arrepende-se e salva a alma através do martírio. A morte do seu corpo assinala a renúncia ao demónio, às glórias terrenas, já que “sin el gran Dios que busco, / que adoro y que reverencio, / las humanas glorias son polvo, / humo, ceniza y viento” (ibidem). Nesta peça, a recompensa é certa se a opção final for a busca do Deus cristão, sendo a salvação garantida apenas após a morte. Por isso Cipriano, como a sua amada Justina, são decapitados, estando a recompensa reservada para a vida extraterrena, em união com Deus. Na terra, o nome deste mágico será venerado, reconhecidos que são os seus prodígios.

O físico criado por Jorge de Sena não será venerado, como Cipriano, mas manifesta igual desprezo pelas glórias terrenas: “eu posso ter, se quiser, todo o poder do Mundo. Mas tudo isto tem um fim, pode ter um fim qualquer. Só este abismo não tem” (Sena, 1966a: 71). O abismo é ser homem-deus. Se a peça de Calderón de la Barca pode ser enquadrada numa conceção soteriológica do homem, à qual se associa a convicção agostiniana de que o mal existe para glorificação do bem, o mesmo não acontece em O

Físico Prodigioso. Nesta obra, a salvação não estará nem em Deus, nem no Diabo, nem

nos homens. Não é sequer certo que ela exista, nem se vislumbra no físico desejo desse facto. A terra, somente, porá fim ao peso da condição divina do físico. Quanto à divindade, encontra nesta obra novo físico através do qual se expressar.

Assim, a diablerie que Jorge de Sena aponta como caraterística de O Físico

Prodigioso consiste numa perspetiva heterodoxa da relação do homem com o diabo.

Usando os estereótipos da cultura ocidental, subverte-os sem os negar, manipula-os de modo a expor a dificuldade sentida pelo homem em definir os seus limiares, numa negação de maniqueísmos que separem o bem e o mal, a tolerância e a tirania, o abuso e a paixão. O relacionamento do físico com Dona Urraca, as donzelas, o Diabo, os inquisidores e outros físicos desvanece qualquer possibilidade de se estabelecerem fronteiras definitivas. Mesmo o pacto com o Diabo – próximo da literatura tradicional ou do mito de Fausto – destaca mais um confronto de ambíguas entidades sobrenaturais do que uma evidente luta entre o bem e o mal. Jorge de Sena explica que «demónio» significa “na acepção exacta, um «espírito», um «ente sobrenatural», uma «divindade», um «génio tutelar», um «guia espiritual» (actividade que os anjos da guarda usurparam, deixando aos ditos cujos só o papel maligno)” (1982: 399). É no sentido etimológico que este escritor analisa a presença do demónio em Camões. É neste sentido que o Diabo percorre O Físico Prodigioso, diabo da guarda de um homem-deus.