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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

2. Pluralidades religiosas

2.3. Deuses terrenos

A proximidade entre o domínio do divino e o do profano inviabiliza uma religiosidade assente na transcendência de Deus. O universo onde decorre a ação de O

Físico Prodigioso, sugerindo um contacto fácil entre deuses e homens, que o

protagonista simboliza, exclui divindades com as quais não existe qualquer tipo de comunicação. As correntes gnosticistas dos séculos II a IV d.C. creem num Deus Uno inacessível ao homem, dado este pertencer à matéria, patamar inferior da escala do ser, ainda que portador de uma “chispa divina”, conforme explicam António Piñero e José Montserrat Torrents, estudiosos do gnosticismo (1999: 42). Assim se percebe a distância entre Deus e os homens, bem como a angústia destes últimos pela consciência de que o pólo divino e o profano permanecem separados (44). Na novela de Sena, intervêm somente personagens terrenas, ou entidades extraterrenas tentadas pela terra. Numa perspetiva gnóstica, isso significaria uma proximidade ao mal, por este estar sobretudo adstrito à terra. O percurso do físico, porém, rejeita a atribuição de tal carga negativa ao homem.

Para os gnósticos, Deus, enquanto Uno, ou entidade absolutamente superior, será sempre transcendente, incumbindo anjos e demiurgos, entidades divinas intermédias, de estabelecerem a ligação com os homens. António Piñero e José Montserrat Torrents sustentam que a maioria dos sistemas destas correntes religiosas considera haver apenas um princípio original de designações várias, como Uno, Bem, Pai ou Transcendência. Esta entidade está no Pleroma, “lugar das formas” (75), segundo a formulação neoplatónica, e eleva-se acima da divindade. O mal acontece quando ocorre uma falha de comunicação entre as escalas. Então, “um complicado processo engendra indirectamente o princípio do Mal, ou melhor, da Deficiência, ou do Erro, a partir do

qual se gera o universo” (45). Como se o mal fosse uma inevitabilidade: se a Criação resulta de um erro, os homens estão condenados a viver em sobressalto e a falharem. Seguindo uma formulação gnosticista, em O Físico Prodigioso, na ausência desse Deus supremo, nota-se apenas a presença de entidades divinas inferiores, próximas da matéria e, portanto, mais próximas do erro.

O Diabo, por um lado, e o físico, por outro, comprovam a ligação estreita entre o mundo dos homens e o divino. A própria invocação ou preces ao Deus transcendente mostram-se ineficazes: não são as sucessivas missas que salvam Dona Urraca, mas o ritual de cura do físico. Por isso, nesta obra, a imanência supera a transcendência. No prefácio a Os Grão-Capitães, Jorge de Sena escreve:

Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito que qualquer vida humana; e se acaso esses valores alguma vez existiram, estão hoje a tal ponto impregnados de falsidade baixamente humana (ou melhor, a tal ponto eles degradaram a dignidade humana), que são ainda piores do que inexistentes. Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muito singelos e modernos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se.

(1971: 17) O transcendente é responsabilizado pelo mal: a falsidade resulta de uma suposta obediência aos valores que autoridades religiosas, por exemplo, dizem ser absolutos. Já os valores imanentes advêm do próprio homem e são por isso mais dignos. Afinal, a transcendência remete para uma exterioridade do homem que o afasta da própria humanidade, ideia que surge também numa carta de Sena a Sophia de Mello Breyner Andresen, escrita em 1972 e publicada postumamente. Nela, o autor salienta ainda a transversalidade desta atitude, que cruza credos e convicções políticas: “concordo inteiramente que o mal é a «transcendência» – e nisso tanto vão os budismos, bramanismos, maometismo, cristianismo, como os comunismos que são a torpeza ocidental e cristã de cabeça para baixo, com o «homem» do futuro em vez de Deus do princípio e do fim” (2006: 127). Todos estes ideais reivindicam a defesa do bem; contudo, ao estabelecerem as regras para a realização desse bem, coartam ao homem o exercício pleno da liberdade.

Segundo Luís Adriano Carlos, na obra de Jorge de Sena, transcendente e imanente são duas conceções que “coexistem, numa relação tensa […]. No seu pensamento, o transcendente é o outro do imanente, não o seu contrário, mas o seu contraditório”

(1999: 77). Em O Físico Prodigioso, não há êxtase perante o divino, mas desejo erótico, carnal. Do mesmo modo, a fé num Deus transcendente e numa alma que se libertará do corpo após a morte para ascender ao etéreo é suplantada pela vontade de dissolução física na terra. Por isso, nesta novela, a transcendência está apenas latente – adivinha-se nos rituais, como as referidas missas. O que se destaca é, assim, o contraditório. Conforme defende Pedro Eiras, a verticalidade inicial do cavaleiro-físico prodigioso, ou seja, o momento em que ele aparece pela primeira vez na novela, tem o seu contraponto na descida da montada, simbolicamente marcando o processo de queda que o leva à morte e à inumação. Este é um “percurso de imanentização” (Eiras, 2008: 39), coincidente com um frustrado percurso de devir-homem.

Já Fernando Pessoa, enquanto Alberto Caeiro, imaginara uma situação semelhante do que se pode designar por des-divinização: fazer do Menino Jesus uma criança travessa. Ficcionando um prefácio de Ricardo Reis à obra de Alberto Caeiro, escreve que “o monoteísmo é uma doença das civilizações, um estigma da sua decadência. A nossa civilização monoteísta foi sempre uma civilização doente” (2003: 74). Talvez por isso o sonho de Alberto Caeiro descrito no poema VIII, incluído em O Guardador de

Rebanhos, adquira uma força libertadora. Nele, o Menino Jesus, é, por opção, uma

eterna criança:

Um dia que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar,

Ele [o Menino Jesus] foi à caixa dos milagres e roubou três. Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras. Depois fugiu para o Sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou. Hoje vive na aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

(Pessoa / Caeiro, 1931: 34)

O repúdio aqui manifestado pela religião católica encontra paralelo em O Físico

Prodigioso. O Menino Jesus deste poema apresenta-se como uma criança que pretende

ser igual a qualquer outra: brincar livremente, fazer travessuras, deixar a uma imagem abstrata e ausente a incumbência de figurar como símbolo religioso. Ele opta por uma condição humana, tal como faz o físico da novela de Sena, se bem que, nesta, as consequências de tal escolha não sejam tão inócuas quanto as do Menino Jesus de

Caeiro. Se no heterónimo pessoano ele permanecerá “a Eterna Criança, o deus que faltava” (36), “o divino que sorri e que brinca” (ibidem), o físico de Sena transforma-se num corpo “horrível de ver-se” (Sena, 1966a: 104).

Portanto, o paganismo do poema de Caeiro manifesta-se pelo fracionamento da divindade: há Deus, há o Espírito Santo, há o Menino Jesus. Manifesta-se ainda pela proximidade entre o divino e os homens, não só pela existência de um Menino Jesus- homem, mas também porque este interage com o sujeito poético. É ainda invocado o folclore tradicional, pela alusão aos três milagres roubados. O físico de Sena, sendo homem-deus, não surge de modo tão inocente. Pelo menos, a inocência vai desaparecendo consoante a ação se desenvolve. Contudo, como o Menino Jesus de Caeiro, rejeita a ortodoxia cristã e valoriza a humanidade, em detrimento de uma divindade forçada.

Também no conto “Razão de o Pai Natal ter barbas brancas”, inserido no livro

Andanças do Diabo, o Menino Jesus é o protagonista de uma história de enganos: o

diabo tenta-o e o deus-menino, apercebendo-se das artimanhas, escapa-se airosamente das situações, passando ele próprio a efetuar travessuras e a enganar o diabo, saindo-se vitorioso desse combate. A epígrafe ao conto esclarece: “para os filósofos, como meditação demonológica acerca do poema VIII de «O guardador de rebanhos» de Alberto Caeiro” (Sena, 1960a: 17). Deste modo, a iconoclastia presente em Sena e em Caeiro tem como referência a figura máxima do cristianismo, no que resulta a valorização do domínio terreno.

A fé nos dotes do protagonista de O Físico Prodigioso insere-se numa tradição católica, mas as raízes remontam a práticas religiosas pré-cristãs. Conforme afirma Moisés Espírito Santo, o culto católico a santos e a Nossa Senhora adapta “ritos vindos dos fundos dos tempos” (1984: 13), ou seja, de um paganismo espontâneo, primitivo, politeísta. A adoração popular pelo corpo do físico, a fé inabalável na capacidade curativa do seu sangue e até nos dotes transformadores desta personagem apontam para o culto de entidades divinas que só na terra, junto aos homens, ganham sentido, tornando-se irrelevante uma plena harmonização com as práticas católicas.

As donzelas que idolatram o físico, incluindo Dona Urraca, remetem para um paganismo helénico. Estas personagens tanto se apresentam como mulheres, quanto são designadas por deusas. Não se trata apenas de uma metáfora resultante do seu poder sedutor: elas têm dotes de adivinhação. Isso nota-se quando descrevem os primórdios da vida do físico, apesar de o conhecerem apenas em adulto. Ouvindo-as falar sobre a sua

origem, o físico conclui: “tanto quanto sabia, elas estavam recordando a sua [do físico] própria vida” (Sena, 1966a: 35). As referências pagãs prevalecem até pelas imagens sugeridas, mais próximas de um erotismo cuja referência cultural é o universo greco- latino, do que de contos tradicionais portugueses. No que diz respeito a estas deusas, o dionisíaco supera o apolíneo:

As deusas sucediam-se num turbilhão sobre ele, num turbilhão em que os seios saltavam, e era uma noite ardente que humidamente o cobria e em que se enterrava. Uma dolorida e prazeirosa cócega o percorreu num arranco. As donzelas recuaram aterradas para as árvores próximas, como se tivesse de repente chovido uma água em que as deusas se embebiam.

(20) A alternância entre o sonho e a realidade apresenta um paralelo entre o erotismo vincado e a sensualidade temida. Assinalando o despertar sexual do físico, expõe ainda as interpretações múltiplas e estatutos diversos atribuíveis às figuras femininas de O

Físico Prodigioso. Donzelas ou deusas, estas personagens permanecem erotizadas ao

longo da obra. Se são deusas, os dotes a venerar nelas dizem respeito ao corpo e à sexualidade. Através do erotismo, o divino nesta novela prende-se à matéria, desce à terra.