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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

4. O corpo e o rito

4.3. Corpo em oferenda

O amor que une físico e Dona Urraca funde inexperiência e volúpia, numa celebração do corpo. Este, após anos de oferenda aos outros, dado ser o meio através do qual o físico executa os seus rituais de cura, atinge o apogeu a meio da novela e prepara- se para o declínio, quando a divindade o abandona. O corpo é sagrado enquanto o físico vive. Por isso, os efeitos de missas, orações ou bênçãos segundo os cânones católicos ficam sempre aquém dos seus prodígios, numa manifestação da inferioridade das regras eclesiásticas. Conclui-se assim que, em O Físico Prodigioso, qualquer tentativa de regular as religiões será infrutífera: devoção mística não se reduz a preceitos instituídos.

Assim, as práticas católicas descritas estão votadas ao fracasso, ou conotadas como abuso. Antes do aparecimento do físico, o capelão reza missas para curar Dona Urraca, “mas raro as dizia até ao fim” (Sena, 1966a: 28); o frade claudica enquanto grita “vade retro, Satanás” (33), face ao físico, antes de este iniciar as suas próprias práticas curativas; o oratório surge fechado após a cura de Dona Urraca, estando o gorro, símbolo dos poderes do físico, “pousado ao pé das imagens” (41). Por outro lado, as interpretações regimentadas do Santo Ofício quanto aos dogmas cristãos levam à mais absoluta crueldade, pois mantêm o réu “acorrentado com sólidas correntes chumbadas na parede […] além do cinto de castidade, em ferro” (79). Levam ainda, paradoxalmente, à negação do dogma defendido, uma vez que os padres da Inquisição acabam por seguir as instruções do Diabo de modo a resolverem em definitivo o destino do físico. Dogma e ética mostram-se deste modo incompatíveis.

Não sendo negados, os ritos católicos manifestam-se em O Físico Prodigioso ligados a práticas religiosas pré-cristãs. Estão ausentes o Deus cristão – apesar das semelhanças do protagonista com Cristo –, como os deuses da mitologia greco-latina. Nem sequer existe um mito satânico de veneração do Diabo. E se Jorge de Sena afirma, num prefácio à reedição de Novas Andanças do Diabo, que “o demónio destas andanças em forma de conto não está em mim, está no mundo” (1977b: 12), não atribui a esta novela uma conotação satânica. Os rituais descritos distanciam-se dos míticos sabbats, que, a partir do século XV, foram pretexto para perseguições da Inquisição. Conforme relata Carlo Ginzburg, cria-se que “bruxas e feiticeiros antropófagos promoviam desenfreadas orgias sexuais, devoravam crianças e reverenciavam o Demónio em forma de animal” (1989: 82). A existência destes rituais é duvidosa; o mito, porém, atravessa os séculos.

A reminiscência dos sabbats em O Físico Prodigioso manifesta-se numa saturnal, que termina aludindo ao antropofagismo: a festa da clareira reverdecida pelo físico. Esta celebração não decorre de noite, mas em plena claridade de um dia primaveril. Afinal, as donzelas (que seguem numa procissão até ao local onde primeiramente o físico aparece) “ressum[am] juventude” (Sena, 1966a: 48) e, perante a clareira calcinada, o pedido feito ao físico é de rejuvenescimento: “manda que tudo reverdeça” (49), exige Dona Urraca. Conforme afirma Ana Sofia Laranjinha, o turbilhão que se segue “assume conotações sexuais e anuncia o sacrifício posterior” (1993: 239). Assim, “o vento rasgava com dentadas” (Sena, 1966a: 50) as roupas das donzelas, ao passo que “os cabelos iam soltos e os seios saltavam no espadanar das águas” (ibidem), do que resulta

“um jardim de ervas altas e floridas de todas as cores” (ibidem), onde “Dona Urraca, nua, precedia uma vasta massa branca, rosada e negra, que eram, nuas também, todas as outras” (51). Apenas o físico fica incólume a este turbilhão:

Só ele não estava nu. Tornou a olhar em volta. A clareira não era o que tinha sido, quando ele descera do monte para dessedentar-se e banhar-se no rio. Era uma Primavera deslumbrante, tão intensa de viço e de colorido que doía nos olhos, nos braços e nas pernas, com um quebanto de antegozo. E fora ele quem fizera aquilo.

(51) O físico toma consciência da sua divindade, que se assemelha a Pã, deus da fertilidade, distanciando-se, portanto, de um cristianismo dogmático. O apelo sensorial nesta citação nota-se na predominância de vocábulos que remetem para os sentidos: tudo neste episódio se erotiza, enquanto se assiste à criação do que parece ser um novo jardim edénico. Mas este homem-deus conhece já o pecado original; distancia-se, pois, daquele Deus ingénuo que o autor descreve no conto “Paraíso Perdido”, incluído em

Génesis, livro de contos escrito em 1937. Anos depois da expulsão do Éden, Jeová

decide descer ao Mundo. Porém estava impreparado: “o Mundo era mais sabido – tinha comido a árvore do Bem e do Mal – e Deus, que a guardara sem lhe tocar e a quem não restara nem uma folhinha seca tinha ficado bondoso para sempre – era de esperar que fosse enganado” (1983: 24). Ainda que desprovido de ingenuidade semelhante, o físico não antevê por completo as consequências do seu ato miraculoso: as donzelas transfiguram-se em bruxas dispostas a converter o corpo dele em relíquia a venerar.

Nem catolicismo, nem paganismo greco-latino: os ritos de O Físico Prodigioso sugerem antes um panteísmo revelador da “universalidade humana”, conforme refere Sena (1961b: 147), dado que, para este autor, as confissões religiosas resultam de situações históricas e “a religiosidade profunda é algo que a estas transcende e supera” (146). Em O Físico Prodigioso, os ritos expressam simultaneamente misticismo e erotismo. Como também descreve o poema “Pan-Eros”, em que “entreabertas deusas, deuses penetrantes, […] Na treva pressentis e à clara luz mostrais / vossa razão de ser” (1978: 38), estes dois conceitos são fundamentais na forma como Sena interpreta a religiosidade. Segundo Luís Adriano Carlos, para Sena “o amor é concebido numa vasta gama de aspectos e metamorfoses, do pandemiano ao uraniano, do sensual ao espiritual” (1999: 165). A erotização das práticas religiosas de O Físico Prodigioso reflete a impossibilidade de adoração do divino sem que o corpo participe.

The Man Who Died é o nome por que ficou conhecida uma novela de D. H.

Lawrence editada pela primeira vez em 1929, na altura intitulada The Escaped Cock. A sugestão erótica do título inicial (“cock” significa galo ou, em calão, pénis) levou a que o editor insistisse na mudança de título. Isso acontece na segunda edição, datada de 1931, com a anuência do autor. O galo (alter ego do protagonista) quer libertar-se dos donos para assumir a sua masculinidade; o homem que morreu empreende também uma busca de si próprio. A polémica resulta do tema abordado: The Man Who Died ficciona a vida de Cristo após a ressurreição, fase em que renuncia à divindade e segue os apelos da natureza. A iconoclastia assim sugerida coaduna-se com a posição de Jorge de Sena.

Nesta obra de D.H. Lawrence, Sena destaca a celebração das “núpcias do paganismo e do cristianismo” (1986: 118). A mulher que casa com Cristo num ritual pagão é uma sacerdotiza de Ísis. O deus que os protege, Pã, é o único que morre na mitologia greco-latina, mas que permanece nas religiões pré-cristãs, como símbolo de fertilidade. “The all-tolerant Pan watched over them. All-tolerant Pan should be their god forever” (Lawrence, 1931: 115), comenta o narrador heterodiegético, mas que mantém sempre a focalização interna no protagonista. Nem o Deus bíblico, nem os deuses consagrados do Olimpo ou da antiguidade egípcia: as forças extraterrenas em ação libertam-se das religiões convencionais. Apesar de o casamento se efetuar no templo a Ísis, apesar de ela dizer as orações em grego – língua que ele desconhece –, o homem que morreu liberta-se do seu Deus para vencer a deusa que ela venera:

Now all his consciousness was there in the crouching, hidden woman. He stooped beside her and caressed her softly, blindly, murmuring inarticulate things. And his death and his passion of sacrifice were all as nothing to him now […]. The woman, hiding her face. Himself bending over, powerful and new like dawn.

He crouched to her, and he felt the blaze of his manhood and his power rise up in his loins, magnificent.

“I am risen!”

(144) Não se trata aqui meramente do início de uma relação sexual, mas de um ritual místico-erótico em que duas expressões religiosas diferentes – uma do Antigo Egito e outra judaica – se unem através da união dos corpos. O facto de estas duas personagens nunca serem designadas por um nome próprio (ele é sempre “the man who died”; ela, sempre “the woman of Isis”) destaca o valor simbólico deste casamento. O homem e a mulher seguem instintos inexplicáveis que os unem: o mistério da fé e o mistério do enamoramento confundem-se. A pulsão sexual que os atrai não tem como consequência

religiosas, de que o filho anunciado será a síntese. O homem que morreu e a mulher de Ísis estão num processo nítido de regeneração, o que simboliza a superação de religiões antigas, num processo histórico que, conforme defende Sena, é universal.

O erotismo da cerimónia descrita contraria Bataille, para quem “le mouvement de l’amour, porté à l’extrême, est un movement de mort. Ce lien ne devrait pas sembler paradoxal: l’excès d’où la reproduction procède et celui qu’est la mort ne peuvent être compris que l’un à l’aide de l’autre” (1957: 48). Nesta obra de Lawrence, a união sexual não consagra a morte, mas a vida. Portanto, a haver interdependência, ela realiza-se através do amor e da vida, o que se aproxima também do que Jorge de Sena exprime através do relacionamento apaixonado do físico com Dona Urraca. A morte advém apenas de uma saturação: o físico interpreta como uma condenação o facto de ser um homem-deus, cujo corpo se torna em vítima sacrificial.

A mesma ideia percorre The Man Who Died. O protagonista vê na ressurreição uma segunda oportunidade de vida. Ele ofereceu o seu corpo; paradoxalmente, a revolta deste dá-lhe o alento para ressuscitar. No momento em que se ergue do túmulo, a consciência é suplantada pelo corpo: “pain like utter bodily disillusion, filled him so full that he stood up” (Lawrence, 1929: 19). Deste modo, sente que a sua missão enquanto messias terminou, já que viveu apenas para dar, sem nada receber. Por isso, conforme comunica a Maria Madalena, “my mission is over, and my teaching is finished, and death has saved me from my own salvation” (43). A morte é o ato público da sua missão de salvador dos homens; a ressurreição é o resgate do corpo individual para que possa enfim viver. Passa então a perseguir as pulsões de uma natureza em incessante processo de regeneração, voltando os seus pensamentos para “the greater life of the body, beyond the little, narrow, personal life” (56).

O físico da novela de Jorge de Sena omite a pertença à natureza: os homens são “quem nega a natureza” (Sena, 1978: 69), conforme se lê no poema I de “For whom the bell tolls, com incidências do «cogito» cartesiano”, escrito em 1965. Assim, ela surge apenas enquanto ambiente ou cenário por onde as diversas personagens circulam, nunca intervindo com uma dinâmica própria, ao contrário do que acontece na obra de Maria Gabriela Llansol. Em Sena, a natureza subordina-se ao físico, passando, conforme Maria Alzira Seixo sustenta, de paisagem terrena a “paisagem humano-divina, de tonalidade feérico-pagã” (1990: 18). Nem o despedaçamento do cavalo representa a sagração de um animal, como as religiões primitivas faziam, já que ele é simbolicamente um alter ego do físico. Daí o horror com que este assiste à sua morte.

Aceitando o resgate do corpo que Dona Urraca lhe faculta através da consumação sexual, o físico encontra a vontade de pertença ao mundo dos homens, numa rejeição do estatuto divino, situação que o aproxima do Cristo descrito por Lawrence:

Shall I give myself to this touch? Men have tortured me to death with their touch. Yet this of Isis is a tender flame of healing. I am a physician, yet I have no healing like the flame of this tender girl!

(Lawrence, 1929: 111) Porém, ao contrário do que acontece em The Man Who Died, o físico de Sena não encontra o apaziguamento. O sacrifício do corpo de Cristo na novela de Lawrence acontece no momento anterior à ressurreição. Esta só é plenamente concretizada com a renúncia – senão mesmo repulsa – ao vulgo, e a aceitação das regras da natureza. Já em

O Físico Prodigioso, não havendo uma natureza salvífica, resta ao protagonista a

renúncia ao corpo. Começa por ser a sua oferenda aos homens, através das curas milagrosas proporcionadas pelo seu sangue; passa pela descoberta do prazer através do corpo de Dona Urraca; culmina numa melancolia saciada. O físico, constituído por um corpo divino, não se sente realizado na opção pela humanidade. Por isso queda-se numa contemplação autodestrutiva, que nem o amor de Dona Urraca salva. A “tristeza sem nome” (Sena, 1966a: 70) torna-se irreversível.