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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

2. Pluralidades religiosas

2.4. O erotismo dos eleitos

Os dons do físico refletem a sua condição de deus, enquanto o corpo de homem assume-se como instrumento para o exercício de atos sobrenaturais. Por isso, os imensos poderes do protagonista de O Físico Prodigioso posicionam-no num limiar: o hibridismo transforma-se em condição natural e determinante do homem-deus, distinguindo-o das restantes personagens da obra. Ele é um mago que promove a cura das mais diversas doenças; ele interfere no curso do tempo. Mas ele é também um corpo tornado objeto de desejo e veneração das donzelas-deusas e do Diabo. Portanto, tem em si um poder tentador, que, no decurso da novela, se manifesta numa aprendizagem erótica, cuja consequência é o desprezo pela condição divina e a incursão num malogrado processo de devir-homem.

Georges Bataille aponta erotismo e violência como dois elementos essenciais para a superação do sentimento de descontinuidade do ser humano – como se este estivesse numa permanente busca de uma completude anterior ao seu corpo: “ce qui est toujours

en question est de substituer à l’isolement de l’être, à sa discontinuité, un sentiment de continuité profonde” (1957: 17). Em O Físico Prodigioso, a continuidade manifesta-se sob a forma de imortalidade: um novo físico se anuncia no final da novela. Porém, tal como Bataille defende, só o erotismo permite a concretização do sentimento de continuidade: mal o gorro encontra novo dono, mal este descobre os poderes da invisibilidade, sobrevém o desejo erótico.

Mas nesta novela de Sena a violência assume um valor negativo que não se deteta naquele filósofo, para quem, associada sempre ao sofrimento, “la passion peut avoir un sens plus violent que le désir des corps” (22). No final de O Físico Prodigioso, o novo detentor do gorro, invisível como o primeiro, acaricia e beija uma jovem que acabara de ser violada: “ela sentiu uns braços que a abraçavam e nos lábios a pressão de outros lábios; e havia um corpo que ternamente se encostava ao seu” (Sena, 1966a: 117). Nesta frase, o erotismo traduz-se em apaziguamento, face ao horror anteriormente vivido. Na violência só existe destruição, donde o pânico e a repulsa do físico quando vê o órgão sexual do seu cavalo ser tragado por Dona Urraca (52). Por oposição, o terno contacto com um homem-deus adquire um valor salvífico. O erotismo instiga a sacralização, não a profanação.

Bataille defende que “la continuité nous est donnée dans l’expérience du sacré. Le divin est l’essence de la continuité” (1957: 126). A interligação entre erotismo e sagrado é clara na ligação intensamente erótica do casal amoroso desta novela de Sena, como se nota no momento em que o físico perde a virgindade:

Respirou profundamente, num grande e fundo alívio, e voltou à câmara de Dona Urraca. Quando entrou, sentiu no ar uma agitação. E era ela, com os braços estendidos, como cega, andava às corridinhas de um lado para o outro, numa nudez que brilhava, agarrando o vazio com os dedos longos. Retendo a respiração, encostou-se à parede e esperou. Agora, ela vinha vindo, como se esperasse que ele estivesse pendurado qual tapeçaria. A mão dela encontrou-lhe o ombro, que apalpou cravando-lhe as unhas. E logo outro braço lhe rodeou a cabeça, puxando- lha para os lábios entreabertos que gorgolejavam saliva. E, sentindo-se sorvido por beijos calcados e intermitentes, ouviu que ela lhe dizia rouca: − Assim, assim, quero-te assim invisível. Vem.

(Sena, 1966a: 40) Volúpia e desejo erótico de Dona Urraca, expectativa e vontade do físico não implicam apenas um prazer terreno, pois ela quer um corpo invisível, e a invisibilidade é um traço divino. Assim, a busca da continuidade impele à junção com o divino. Neste momento da narrativa, Dona Urraca deseja o deus que há no físico, visto terem sido os dotes sobrenaturais que a salvaram. Por isso tateia às cegas a parede, em busca de um

ícone ou de uma imagem, mais do que em busca de um corpo humano. Em O Físico

Prodigioso, porém, a condição divina supera imagens meramente decorativas: o físico

não é uma tapeçaria encostada a uma parede para devoção dos crentes, mas um homem- deus palpável, portanto, aberto à experiência erótica.

Conforme Piñero e Montserrat explicam, os gnósticos creem haver dois caminhos antitéticos para a salvação da alma: já que o homem se divide em corpo e espírito, terá de optar ou pela renúncia carnal em função de um modo de vida “estritamente ascético” (1999: 85), como fazem, por exemplo, os eremitas, ou por uma “vida mundana completamente libertina” (ibidem), que libertará o corpo da matéria. O processo de aprendizagem do físico, pelo menos nos primeiros seis capítulos, tende a incluir-se na segunda alternativa, sem que, no entanto, se manifeste o desejo de ascensão da alma. A sexualidade mais libertina retratada em O Físico Prodigioso pode, mesmo assim, ser interpretada como resultante de um apelo do sagrado:

Pela manhã, um bando de donzelas invadiu o quarto em lágrimas, exigindo que ele, com o seu poder, as salvasse.

[…] Mas que podia ele fazer? E não conseguia pensar em nada, com aqueles seios diante dos olhos. Ouvia vagamente a vozearia, quando estendeu a mão para um deles, o puxou para fora do vestido e o apertou.

Foi como um sinal esperado. A donzela saltou sobre ele, que só teve tempo de pôr o gorro para fazer-se invisível. Mas, cercado como estava, de nada lhe valeu, porque umas o agarravam, assim invisível, enquanto outras se sucediam sobre ele. E teria por certo morrido ou sido despedaçado, se não tivesse conseguido levar a mão ao gorro e determinar-se a chegar para contento de todas.

(Sena, 1966a: 63) Tal como o Diabo é invisível e assim possui o físico, também este está invisível quando possui as donzelas, o que mais uma vez permite associar o físico a um homem- deus. Por isso atrai estas mulheres, que buscam nele salvação e proteção: a avidez delas confunde-se com veneração e manifesta-se através da sexualidade. Adivinha-se ainda o canibalismo, que aterroriza o físico e que alude aos rituais de sacrifício de religiões primitivas. Eduardo Prado Coelho comenta: “a sexualidade, como Sena múltiplas vezes explicará, não é natural, embora tenha um fundamento inequivocamente biológico: é algo que se aprende, que exige experiência e arte, que se impõe como cultura” (1999: 52). A sexualidade torna-se assim um percurso de aprendizagem, como se atesta no percurso do físico: aprende os prazeres eróticos com Dona Urraca, morre quando a paixão atinge o clímax. Por oposição, o seu autorreconhecimento como deus leva-o à saturação: a morte anunciada assume o valor de cura para os excessos experienciados.

Em “Resposta a um inquérito sobre pornografia”, texto publicado em 1976 no livro Dialécticas Teóricas da Literatura, Jorge de Sena afirma: “a liberdade sexual é o que diz respeito à libertação da sexualidade, na vida social, ao nível do indivíduo, e em face da lei e dos costumes dominantes (ou da hipocrisia dominante)” (Sena, 1976b: 274). Por oposição, a pornografia, percetível sobretudo na ostentação da nudez, não passa de uma “descrição pormenorizada e excitante de actos sexuais” (ibidem). Esta distinção é, segundo Eduardo Prado Coelho, determinante para compreender a rejeição que Sena faria da promiscuidade, pois a esta falta “o sentido da relação com o sagrado que sempre lhe foi inerente e essencial” (1999: 57). Assim, os atos mais promíscuos que o físico protagoniza têm como significado intrínseco a associação ao divino: o corpo é deus, contrariamente à convicção gnóstica da completa separação dos dois.

Bataille defende que “la connaissance de l’érotisme, ou de la religion, demande une expérience personnelle, égale et contradictoire, de l’interdit et de la transgression” (1957: 39). O erotismo desperta o físico para a supremacia do seu lado humano, ao passo que a rutura com a solidão (prevalecente desde que, em jovem, fora consagrado à divindade), tem como consequência um processo de autoconhecimento, fruto da descoberta do erotismo. A transgressão do homem-deus é assim a vontade de optar pela humanidade.

Em Sena, o homem desafia a divindade, porque invasiva, impotente, indiferente. No poema “Como de vós…”, inserto em Fidelidade, as preces quedam-se num vazio sem resposta: a Deus não interessa a fé que nele os homens depositam, pelo que “importa pouco ou nada que em Vós creia” (1958b: 50). Já no poema “A Morte, o Espaço, a Eternidade”, de Metamorfoses, o Deus referido observa a luta dos homens enquanto espera as almas “como um juiz na meta da corrida, / torcendo as mãos de desespero e angústia, / porque não pode fazer nada” (1963: 137). Neste desafio do homem a Deus, ressalta a excecionalidade de uma espécie que se extrai à natureza, porque tem a capacidade de optar, de questionar, de fruir, de ir além do instinto, daí se compreendendo o verso “de morte natural nunca ninguém morreu” (135). Na perspetiva de Sena, tal morte está reservada aos animais, por oposição aos homens, únicos detentores da “ternura e [do] fogo, / e [da] pintura, [da] escrita, [da] doce música” (ibidem). O contraste com Maria Gabriela Llansol torna-se neste aspeto evidente: para esta autora, os animais são apenas “outra forma de vida, como «ela», como «eu», como a paisagem” (Llansol, 1983b: 114). Nesta autora, a diferença reside sobretudo na maneira como a existência é vivida pelas diferentes espécies.

Jacques Derrida chama a atenção para “la fragilité et la porosité de cette limite entre nature et culture” (2008: 36), considerando haver motivos para questionar oposições e dicotomias. Como bem assinala e está comprovado por estudos etológicos, “il y a du politique et surtout de la souveraineté dans des communautés de vivants non humains” (37). A suspeita de Derrida quanto a uma suposta excecionalidade humana estende-se à relação do ser humano com o divino, questão que Bataille não coloca, desde logo por considerar o homem em oposição ao animal e às coisas:

En dépit de croyances opposées, le sentiment qui place l’esprit dans l’homme et le corps dans la bête n’est jamais contesté qu’en vain. Le corps est une chose, il est vil, asservi, il est servile, au même titre qu’une pierre ou qu’une pièce de bois. L’esprit seul, dont la verité est intime, subjective, ne peut être réduit à la chose. Il est sacré, demeurant dans le corps profane, qui ne devient lui-même à son tour sacré qu’au moment où la mort révèle la valeur incomparable de l’esprit.

(1957: 162) O homem surge enquanto duplo, misto de corpo e espírito, como as religiões monoteístas ocidentais defendem. Para Bataille, o corpo morto torna-se símbolo da libertação do espírito, encontrando-se aí a justificação para os rituais fúnebres que acontecem desde os tempos primitivos e que, conforme aquele pensador realça, foram um dos aspetos principais a traçar a separação do homem em relação aos restantes animais. Nota-se ainda, tal como em Heidegger, uma hierarquização de coisas, animais, homens. Contrariamente ao exposto por Derrida, somente nestes últimos se encontra a divindade: em Bataille, porque neles está o espírito; em Heidegger, porque eles são os intermediários para o desvelamento do Ser.

A existência de um homem-deus, de que o físico é exemplo na novela de Sena, proporciona ainda outra esfera hierárquica, semelhante à do demiurgo descrito pelos gnósticos, intermediária entre os homens e o Uno. A capacidade de usar o corpo para produzir feitos milagrosos (e, nessa condição, sobrenaturais) confere ao físico o estatuto de homem-deus. Afinal, as curas prodigiosas resultam do contacto com o corpo: o seu sangue é o instrumento de salvação. Por isso, não é precisa a morte para que o valor do espírito se manifeste; por isso é venerado a partir do momento em que quem o vê reconhece os seus dotes extraordinários.

O físico não é a superação do homem: ele não é um super-homem nietzschiano; está longe ainda de ser um Deus. Os seus poderes são afinal limitados, como ele próprio sabe: “lembrou-se de que não fizera as recomendações devidas acerca da água do banho. Estremeceu. Já de uma vez aquela água lhe ia custando a vida” (1966a: 37). O

esquecimento remete para a sua condição humana, que a partir da cura de Dona Urraca se vai acentuando. Mas este devir-homem não pode ser inconsequente. A vida de paixão e libertinagem, por um lado, e a veneração de que é alvo, por outro, resultam apenas em melancolia. Assim se compreende o desejo de morte: não podendo ser apenas homem, não quer, por outro lado, continuar a ser deus.

O conto “O grande segredo”, escrito em 1961 e publicado cinco anos depois, incluído na coletânea Novas Andanças do Demónio, narra o sofrimento de uma freira eleita de Deus. É possível a associação da protagonista do conto a Teresa de Ávila por passar-se num convento, onde a protagonista vive o êxtase, a dor, a veneração, e pela própria epígrafe retirada de “Cântico espiritual”, de João da Cruz, correligionário daquela santa. Em analepse, a alusão ao corpo de Cristo e à curiosidade que este lhe despertara quando menina, percebe-se a tentação; no momento presente da ação, ela sente-se apenas vítima sacrificial:

Sentira nitidamente, ao levantar-se da ceia, e depois, na igreja, durante as orações, que mais uma vez ia sofrer a visita… Como o corpo se recusava a despegar-se da porta, para ficar desamparado na cela, assim também, mentalmente, as palavras se recusavam a nomear o horror que a esperava. Tremia: a pele, como a memória, retraía-se num palpitar ansioso, de que as mãos já se levantavam num gesto de repulsa. Era superior às suas forças tudo aquilo; não suportava mais. […] Mas, ali dentro, e dentro da ressurreição, esperava-a o horror inominável de ser eleita, de ser visitada, de ser amada mais do que o possível.

(Sena, 1966d: 173) Não é o êxtase místico que a invade, mas o pavor de ser a escolhida, a dor pressentida de um corpo possuído e violentado. Também aqui, física e metafísica se unem: pele e memória anunciam o sofrimento; corpo e palavras recusam a nomeação do que adivinham. Contudo, fica a sugestão de ter sido a freira a solicitar esta Presença, que só acontece após as orações. O horror acontece mais por antecipação do que por consequência: apesar da dilacerante dissolução do corpo durante o ato de posse, apesar da exaustão física, a sensação prevalecente é a de que se tratou de um ato de amor. Segundo Bataille, “le saint n’est pas en quête de l’efficacité. C’est le désir et le désir seul qui l’anime: il est en cela semblable à l’homme de l’érotisme” (1957: 262). Violência e erotismo surgem assim ligados, entre o horror, a expectativa e o prazer.

Como descreve o narrador do conto, a freira “deixou-se ficar estendida, saboreando uma incomodidade que era exaurido repouso” (Sena, 1966d: 175). A escolha do verbo “saborear” remete para prazer, numa sugestão de masoquismo, já que em questão está a incomodidade sentida. A epígrafe de “O grande segredo”, como já

referido, de S. João da Cruz, indicia a vontade da entrega: “Alli me mostrarias aquello / que mi alma pretendia” (173), como se a alma da freira desejasse o que o corpo rejeita. A ascese espiritual manifesta-se, pois, através do corpo, sacralizando-o. Por esse motivo, as outras freiras aguardam ansiosamente a consumação da posse, “ciumentas dos favores que a cumulavam, apiedadas do sofrimento que lhe cabia em sorte, atraídas e atemorizadas, rezando para a ajudarem” (176). A própria abadessa chora e beija-lhe a mão. O corpo invadido pela Presença (nome atribuído ao clarão que se apodera da freira) torna-se manifestação concreta do divino. Esse é o motivo de veneração dos que se encontram no convento.

Há em “O grande segredo”, portanto, um corpo objeto de fascínio e desejo por parte do divino – tal como acontece em O Físico Prodigioso. Os protagonistas das duas narrativas veem os corpos invadidos pelo divino; são os dois eleitos e, portanto, vassalos, já que submissos a vontades externas. Mas há também a sugestão do inverso: o corpo de homens é a tentação de entidades superiores. Em “O grande segredo”, o ato de posse transfigura-se em violência levada ao extremo: “a brutalidade sufocante e dilacerante penetrava-a já, enquanto o desfalecimento lhe triturava as vísceras e os ossos. Tudo nela se abria e despedaçava” (175). Já em O Físico Prodigioso, quando o protagonista é tomado pelo Diabo, nota-se apenas o enfado: “com paciência, num abandono indiferente, com a cabeça pousada nos braços, deixou que o Diabo se desesperasse invisível sobre o seu corpo” (1966a: 17).

A freira, sendo eleita, não é uma deusa, apesar de venerada. Mantém-se apenas enquanto corpo possuído por uma Presença. O Diabo não exerce sobre o físico uma supremacia tão avassaladora. Por isso, ele pode usufruir dos prazeres eróticos com Dona Urraca, numa valorização do corpo, metonímia da sua condição humana. A beleza gera cobiça e perseguição, protagonizadas pelo Diabo, pelas donzelas, até pelos inquisidores (ainda que estes invoquem a condição divina do físico). Por isso, a dualidade marca o percurso desta personagem, tanto em termos ontológicos, quanto empíricos. O seu hibridismo resulta em sofrimento pela impossibilidade de concretizar-se enquanto ser humano e pela saturação dos milagres que lhe pedem. Sendo-lhe vedada a hipótese de um devir-homem, resta-lhe a rejeição da vida, uma vez que a perda da divindade implica a perda do corpo. Por isso o físico só pode morrer: ele subsiste apenas enquanto homem-deus, e só enquanto tal as restantes personagens o veneram religiosamente.