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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

4. O corpo e o rito

4.4. Do milagre ao martírio

Dádiva aos deuses e sofrimento em nome dos deuses ou de uma convicção representam, respetivamente, dois ritos religiosos que põem à prova a relação do homem com o divino. A preparação do corpo precede o rito. Em The Man Who Died, a mulher de Ísis aplica um unguento nas feridas de Cristo antes de consumarem a união frente ao altar da deusa. Já em O Físico Prodigioso, o protagonista toma um banho purificador antes do encontro com as donzelas-deusas, altura em que ocorre o primeiro prodígio: “mandou que elas, se eram gente, o não tivessem visto ainda. O que logo aconteceu” (Sena, 1966a: 21). É também o banho que antecede a sua união com Dona Urraca, cuja cura resulta da imersão numa mistura de água morna com o seu sangue casto. A ligação da terra com o divino depende assim do corpo em dádiva, numa confusão de prazer e dor:

Deitado na cama, estendido ao comprido, depois de retirado que fora o sangue para o banho, sentiu, como sempre sentia naquelas ocasiões, enquanto o banho durasse, um frio terrível. Tão terrível, que todo ele se arrepiava e batia os dentes. E as mãos, ao longo do corpo, crispavam-se nas coxas. Mas, desta vez, entre o frio terrível que sentia, e o fundo dele mesmo, era como se um véu ardente estivesse atravessado.

(34) O “véu ardente” impede o frio de chegar ao “fundo dele mesmo”. O físico sacrifica o seu corpo, mas desta vez há um desejo que se insinua “de estender as mãos para as donzelas” (ibidem), tentadoras testemunhas do prodígio da cura. De resto, a comparação sugere a virgindade do físico, ainda que através da subtil alusão a um elemento feminino, o hímen. Este é mais um indício numa obra que segue num jogo de duplicidades, inclusivamente, como afirma Orlanda de Azevedo, “questionando as fronteiras entre homem e mulher” (2001: 2). O divino exige o corpo para aceder aos pedidos do homem. O físico aceita esta situação não por tributo aos deuses, nem para receber algum favor divino, nem sequer por compaixão. Ele limita-se a respeitar um pacto que o diviniza mas que também condiciona o seu livre arbítrio. Ao encontrar-se com as donzelas e Dona Urraca, porém, mudam as circunstâncias: a tentação física supera o cumprimento do pacto. O corpo serve então para dar e receber, estatuto duplo de sacrifício e beneficiário de devoção.

Incorporando simultaneamente a condição divina e a humana, a oferenda do corpo resulta na cura pedida por aqueles que estão doentes, ou pelos seus próximos. Se o físico é visto pelas habitantes do castelo como taumaturgo, as solicitações suceder-se-ão sem tréguas: ele é coagido a agir. Isso acontece nos primeiros seis capítulos da novela, donde a melancolia e posterior desistência do protagonista. No livro A Vida de Jesus, Ernest Renan considera que os milagres eram tomados, na época de Cristo, como “a marca indispensável do divino e das vocações proféticas” (1863: 164). A idolatria dos taumaturgos decorria desta circunstância, ideia que se verifica também em O Físico

Prodigioso. Para Renan, Jesus raramente acedia a fazer milagres e, quando tal

acontecia, recusava a sua divulgação: a prática da cura (e nela consistiam os milagres) e o peso que a reputação de taumaturgo acarretava levavam-no à impaciência, resultante da “fadiga que causava a Jesus essa perpétua exigência das mentes fracas” (169). O mesmo acontece com o físico da novela de Sena.

Para Bataille, o sacrifício é “l’acte religieux par excellence” (1957: 86), mesmo enquanto ritual sangrento, dado ser uma oferenda aos deuses, pelo que “la victime collectivement mise à mort assuma le sens de la divinité. Le sacrifice la consacrait, il la

divinisait” (ibidem). Nesse sentido, tanto a crucificação de Cristo quanto o corpo em oferenda do físico representam ritos sacrificiais cujas vítimas se revelam divinas. O físico sacrifica-se de cada vez que procede a uma cura miraculosa: é o seu sangue que permite o prodígio. Por outro lado, a regeneração do seu corpo acontece sempre: ele distancia-se da vítima descrita por Bataille, para tornar-se apenas agente de milagres. O físico não se pode confundir com um santo que intercede junto de um Deus distante: ele próprio é a divindade.

Só os belos serão dignos do sacrifício. A beleza é até uma das três condições impostas para a cura de Dona Urraca. Mas se no caso do físico a oferenda do sangue resulta do pacto com o Diabo, sendo, portanto, um dever seu, nem todos os sacrificados partilharão essa responsabilidade. Na obra Ouolof, Herberto Helder muda para português o “Livro dos cantares de Dbitbalché (Maias)”. O excerto seguinte contrasta o júbilo da cerimónia com a crueldade do ato:

Ao meio da praça um homem

amarrado ao fuste de uma coluna de pedra, esmeradamente pintado, bela

cor anil. Dispuseram muitas

flores de Balsamina para que se perfume; nas palmas das mãos, nos

pés, no corpo, em todo o corpo. Amaina o teu espírito, belo homem; verás

o rosto de teu Pai no alto.

(1997: 12) A cerimónia parece decorrer como se o embelezamento do sacrificado transmitisse a alegria pela oferenda aos deuses. Todo o discurso glorifica o sacrificado, porque terá o privilégio de em breve conhecer o rosto de Deus. Por isso está tão cuidadosamente pintado, perfumado, ornamentado. No entanto, persistem indícios de resistência: o homem está “amarrado ao fuste”, e são claros os apelos para que acalme o espírito. Pressupõe-se assim que o sacrificado não o é voluntariamente, e que este ato religioso, revestindo-se de uma violência extrema, na medida em que implica uma morte, revela a submissão do terreno ao divino. No entanto, o ambiente de celebração deste cântico, parecendo contrariar a crueldade do ato, reafirma a supremacia do divino para esta expressão religiosa.

O momento de reverdecimento da clareira calcinada, em O Físico Prodigioso, é também de celebração, consagração, oferenda. Soberanas, as donzelas pedem e obtêm o prodígio; deus, o físico, tudo faz acontecer. Mais do que alegria no momento de saída em séquito do castelo, nota-se o deslumbramento de quem assiste à passagem do cavaleiro-físico: “respirações suspensas e exclamações boquiabertas” (Sena, 1966a: 47) revelam o assombro. A majestade e a beleza do físico levam a um êxtase que incita a novos prodígios, como a conversão da clareira numa “Primavera deslumbrante, tão intensa de viço e de colorido que doía nos olhos, nos braços e nas pernas, com um quebranto de antegozo” (51). Não chega o milagre: é necessário o sacrifício de modo a presentificar o divino.

Para Luís Adriano Carlos, “Sena vive intensamente a pulsão da morte implicada no fluxo temático da dualidade logos-eros. É seu propósito obsessivo contemplar as revelações da morte” (1999: 172). As donzelas desejam o físico carnalmente, chegando ao cúmulo do diasparagmos, ritual dionisíaco de civilizações arcaicas que consistia na morte da vítima sacrificial (um animal) em cerimónias orgíacas nas quais a vítima era devorada e descarnada ainda em vida. O êxtase leva-as a perseguir o físico e a obrigá-lo a desmontar. Não o conseguindo apanhar, transferem o desejo para o cavalo: despedaçam-no e comem-no. O homem-deus é o objeto venerado, desejado até sexualmente, mas acumula também o papel de corpo em sacrifício. Há uma evidente junção de Eros e Tanatos, concretizada pela ação das donzelas, mas que o físico renega, quedando-se numa atitude de horror e repugnância:

Dona Urraca emergiu do monte de nádegas com um pedaço a escorrer sangue, que ela trincava. Várias outras se afastavam assim. E ele fechou os olhos quando as três donzelas vieram aonde Dona Urraca estava, trazendo-lhe uma parte que o gelou de horror, e que ela trincou raivosa, enquanto o resto do bando se aproximava ensanguentado e lhe fazia uma roda de aclamações.

(Sena, 1966a: 52) María Zambrano refere que “la relación inicial, primaria, del hombre con lo divino no se da en la razón, sino en el delirio” (1953: 22), sendo que “los delirios sagrados se resuelven o aclaran solamente en el sacrificio” (140). A focalização interna deste trecho de O Físico Prodigioso permite um distanciamento do ato sacrificial que o poema de Herberto Helder omite, já que, neste, o sacrificado é apenas um belo objeto de contemplação. No excerto de O Físico Prodigioso, o ponto de vista adotado indicia o afastamento do protagonista em relação ao horror causado pelo delírio, semelhante aos relatos de sabbats medievais. A ligação das donzelas ao divino estabelece-se de um

modo intensamente carnal: desprezada a razão, prevalece a força instintiva que impele à superação de interditos.

A outra consequência do afastamento do físico reside na sua substituição pelo cavalo enquanto sacrificado. Desde a Idade Média, este animal destaca-se como “alter

ego do cavaleiro, pelo seu aspecto social”, conforme Orlando Nunes de Amorim

sustenta (2006: 99), mas também enquanto adjuvante contínuo de combates e percursos. Por isso, Henrique VIII, em A Restante Vida, de Maria Gabriela Llansol, diz que “gostava de morrer num campo de batalha no dorso de um cavalo” (1983: 72). Este desejo é expresso num diálogo com Tomás Müntzer, antes de ascender ao trono, portanto, antes das atrocidades que o rei cometeu. A ligação ao divino clarifica-se pela alusão seguinte a Pégaso, “cavalo que dormirá sempre” (ibidem). Em Causa Amante, obra da mesma autora, Jorge de Sena é convertido em figura ficcionada, com o apelido mudado para Anés. No momento da morte de um cavalo em plena rua, após ser açoitado, a voz narrativa alude à “morte/exílio de Jorge Anés” (1984b: 103), simbolicamente perseguido pela Inquisição, mas também recupera o momento em que Nietzsche terá enlouquecido.

Na tetralogia O Reino, de Gonçalo M. Tavares, a imagem de um cavalo em decomposição na rua de uma cidade em guerra é repetidamente evocada, como se, após a sua morte, só o absurdo existisse. Perante a descrição feita pelos amigos de jogo, o protagonista de A Máquina de Joseph Walser “nem sequer sentira curiosidade de perguntar onde era essa rua. Esperava apenas não passar por ela, e era tudo” (Tavares, 2004a: 34), ao passo que Hertha, personagem de Um Homem: Klaus Klump, medita: “antes de os tanques entrarem e de o cavalo estar meses a apodrecer no centro da rua […], eu tinha um pequeno jardim” (2003a: 54). Assim, a ligação simbólica homem- cavalo cruza sentidos éticos, metafísicos e sociais. O corte dessa parceria redunda em perda do homem.

A morte do cavalo, em O Físico Prodigioso, simula o sacrifício do físico. Porém, quando retroverte o tempo, ele retoma o seu estatuto de homem-deus, evidente no facto de o cavalo renascer. Afinal, após o horror, “um manso relincho soou” (Sena, 1966a: 53), e toda a paisagem retoma uma aurea mediocritas idílica. Claude Lévi-Strauss afirma que

todo o sacrifício implica uma solidariedade de natureza entre o oficiante, o deus, e a coisa sacrificada, quer esta seja um animal, uma planta ou um objecto tratado como um ser vivo, já que a sua destruição só é significativa sob a forma de

holocausto. Assim, também a ideia de sacrifício tem em si o germe de uma confusão com o animal, que se arrisca mesmo a ultrapassar o homem, estendendo- se até à divindade.

(1962: 14) O cavalo, ser sacrificado, diviniza-se pelo sacrifício. Não há, porém, holocausto neste momento de O Físico Prodigioso, pelo menos no sentido etimológico da palavra (imolação de um animal em oferenda aos deuses). O sentimento de horror advém da união que cavalo e cavaleiro têm nesta obra. Juntos, parecem um centauro. Desfeito o cavalo, a divindade do físico relativiza-se. Quando este é preso, o cavalo desaparece em definitivo: o processo de aceitação do abismo que marca a renúncia irreversível ao estatuto divino coincide com o desaparecimento do centauro.

O físico começa a desfigurar-se no momento em que Dona Urraca, recetora transitória da sua beleza, morre. Nessa altura, transforma-se em mero corpo grotesco, assombro de quem o vê. Segundo José Gil, “os homens precisam de monstros para se tornarem humanos” (1994: 82) e a reação perante eles é simultaneamente de fascínio e horror, acrescentando que “esse monstro precisa de ser afastado, posto à distância” (ibidem), mas também lembrado, porque “anuncia a vontade divina” (80). Os inquisidores querem afastar o físico quando se sabem impotentes para o punirem. No entanto, acabam espezinhados por uma multidão infrene, que segue num cortejo tenebroso atrás do corpo disforme do físico. O fascínio pelo inexplicável prevalece.

O esforço do físico liderando este cortejo contrapõe-se ao grotesco das imagens suscitadas. A oscilação entre o sublime e o grotesco de O Físico Prodigioso reforça a crítica à prepotência das instituições religiosas, como à irracionalidade de uma fé cega e intransigente, apostada na obtenção de benefícios sem qualquer retribuição. Assim, o físico é simultaneamente sacrificado e recetor do sacrifício, divindade e mártir. Horácio Costa refere a ambiguidade ou coincidentia oppositorium como “ideia que preside à concepção do Físico” (1992: 176). A escolha da morte enquadra-se nesta perspetiva, uma vez que o corpo belo que sempre deu vida se transforma num ser em decomposição. O físico converte-se em mártir de si próprio, na medida em que dá o seu corpo não a um deus externo, mas num ato de desprendimento da sua própria divindade. Enquanto taumaturgo, oferece o corpo para salvar vidas; o contraponto trágico é tornar- se vítima da sua condição de deus. Por isso deseja o martírio final, materializado na aniquilação.