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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

4. O corpo e o rito

4.2. Fé e instinto

A fé expressa em O Físico Prodigioso desafia os limiares da ortodoxia católica. Há missas e orações cristãs, porém, as diversas personagens predispõem-se a cumprir ritos sem deus determinado. Aproximando-o de Nietzsche, Eduardo Lourenço considera Jorge de Sena como um escritor “complexo, contraditório, demolidor dos deuses, mesmo sem crepúsculo” (1999: 43). A desconstrução evidente da prática religiosa a que Sena procede insere-se na intenção de agitar consciências, mas não existe nele a vontade de rejeitar liminarmente os rituais populares. A reprovação de Sena incide menos nas manifestações de fé do que nas práticas eclesiásticas.

Em Para Além do Bem e do Mal, Nietzsche defende que “nos assuntos da moral, venceu o «instinto», ou, como os cristãos lhe chamam, a «fé», ou, como eu lhe chamo, «a multidão»” (1886: 119). Fé como sinónimo de instinto e de multidão: este filósofo fundamenta assim a distinção que estabelece entre razão e moral, considerando que as ações se regem pelo instinto. Por isso, este “merece mais autoridade do que a razão, que quer saber dos fundamentos, de um «porquê», como se avaliasse e agisse em função da finalidade e da utilidade” (118).

Teleologia e utilitarismo são também questionados em O Físico Prodigioso, designadamente através da ação dos padres inquisidores: as acusações que fazem ao físico, bem como a sustentação das medidas punitivas, baseiam-se nos regulamentos eclesiásticos. Porém, desde o início, a relação do físico com os membros da igreja católica foi conturbada, revelando estes uma racionalidade de fundamentos instintivos, porque facilmente contraditada. Assim, um padre esconjura o físico (Sena, 1966a: 33), mas, depois da cura de Dona Urraca, aparece “tomando semicúpio” (38) nas águas do banho com o seu sangue. Por outro lado, a acusação do físico aponta como crimes “curar doenças, ressuscitar defuntos, e retogradar no tempo decorrido” (78): a ironia desta inversão dos valores salienta de novo uma racionalidade legitimadora de instintos punitivos: a moral assenta no instinto.

Jorge de Sena acredita que as manifestações de fé são sobretudo forma de expressão de uma religiosidade independente de credos. Elas adaptam-se a épocas diversas, a contextos diferenciados. Em O Físico Prodigioso os ritos mais vibrantes acontecem num coletivo que facilmente cai no descontrolo, como se vê nas orgias ou na

procissão que segue o martírio do físico até à sepultura. Nessas alturas, o irracional solta-se, sendo o corpo do físico denominador comum de todos os espantos. Os devotos procuram assistência divina onde o físico estiver, como num tributo ao seu corpo. Mesmo os seus detratores (a sucessão de padres e frades pertencentes ou não às hierarquias inquisitoriais) se vergam perante os prodígios, por mais que essa capitulação infrinja os dogmas católicos. Nesta novela, a racionalidade não pode explicar os mistérios da fé.

Entre a busca frustrada de explicações teológicas por parte da Inquisição e a aceitação sem reservas por parte das donzelas do castelo, O Físico Prodigioso revela como o mistério se impõe na mente coletiva. Assim, os excessos das donzelas na sua adoração tanto física quanto mística pelo físico encontram como antítese a severidade com que as hierarquias da Igreja o tratam. Estas duas atitudes, no entanto, destacam apenas uma religiosidade supersticiosa e obscura. O físico supera a ciência e as práticas religiosas. Diz Dona Urraca:

Não têm conta os físicos que vieram e desistiram, os capelães que me ouviram de confissão e não me acreditaram. Nada disto é crível, eu sei. Mas tu, cujos poderes são ilimitados, agora que me conheceste, agora que sabes de ti o homem que és, estou certa que me acreditas.

(Sena, 1966a: 34) Nem a ciência nem as práticas católicas foram capazes de vencer a doença que a acometia. Só o físico consegue tal feito, advindo a cura apenas da fé nos seus poderes. Como um messias, o físico resgata Dona Urraca de uma doença mortal: “eu sou aquele que a Senhora espera” (27), afirma. O pronome demonstrativo revela o messianismo da mensagem, que não tem necessariamente contornos éticos: nem o físico, nem Dona Urraca veem a justiça como o fim do messianismo. Para o primeiro, os seus prodígios são fruto de um “comércio” (37), ao passo que, para a segunda, se trata de um ritual de regeneração. Conforme Dona Urraca diz, “eu queria apagar o que me lembrasse do passado” (61), dado entregar-se a diversos viandantes, mas esperar sempre “por um que fosse virgem de corpo e de alma” (ibidem). Assim, o messianismo nesta obra de Sena nega uma teleologia universal, na medida em que se restringe a anseios particulares e circunstanciais. A religião é substituída pela fé individual num ser divino.

A crença nos “poderes ilimitados” deste homem-deus consuma-se na relação sexual. O “homem que és” (34) proferido por Dona Urraca destaca o físico de qualquer outro homem que ela conhecera, o que não significa apenas a declaração de um amor

absoluto, mas o reconhecimento da divindade deste homem-deus. Por isso, o relato pormenorizado da sua vida anterior é para ela uma “longa confissão” (63), ao passo que o primeiro ato sexual se assemelha a um êxtase místico, pois decorre estando o físico invisível.

A atração por este físico e pelos seus poderes curativos manifesta-se ainda naqueles que deveriam ser céticos quanto aos seus prodígios, por se afastarem do cânone cristão. Tal, porém, não acontece:

atravessou a câmara e empurrou a porta da sala contígua, onde fora o banho. Ao clarão dos brandões, três cabeças emergiam da celha a meio da quadra. Aproximou-se mais para distingui-las. E viu que eram dos dois físicos e do capelão, tomando semicúpio.

(Sena, 1966a: 38) O ritual de cura da Dona Urraca estava consumado, mas a água casta do físico permanecia disponível. Ciência e religião cedem ao impulso tentador de “retemperarem a velhice”, como a própria Dona Urraca sugere (62). A fé nega a sua pertença exclusiva a um credo. Afinal, nesta obra de Sena, a heterodoxia supera a cristalização religiosa: não há cristãos e não-cristãos, mas uma predisposição para a fé. Dela, os ritos sucedem- se como suas formas de expressão. Afinal, como defende Jacques Derrida, “a fé nem sempre foi nem será sempre identificável com a religião, nem com, o que é outra coisa ainda, a teologia” (1996: 18).

No que diz respeito aos inquisidores, a mera existência do físico leva-os à perplexidade, impotência e exposição de desejos inconfessáveis, como se percebe no diálogo seguinte, perante o mistério da beleza eterna que, do réu, passou para os seus próprios rostos. Frei Bernardo dá o tom:

– Ao menos, quando Nossa Senhora me fizesse a graça de visitar-me, tão bela senhora como é, eu sempre teria um rosto mais digno…

– Cruzes! – exclamaram os outros. E Frei Atanagildo gritou:

– Avaliais bem o que dizeis? Um rosto demoníaco seria mais digno da Virgem? (Sena, 1966a: 101) No caso de Frei Bernardo, a religiosidade dogmática é substituída por uma paixão física por Nossa Senhora, fé mais próxima de rituais pagãos ancestrais do que de uma veneração mística de índole católica. Nas diligências que os padres inquisitoriais empreendem para culpabilizar o físico, é a “falsificação” (ibidem) moral deles próprios que encontram: são os padres que, em nome de uma fé, torturam, convocam o Diabo, revelam desejos inconscientes, comprovando o fracasso da razão face ao instinto. A fé

permanece, pois não está em causa a crença em entidades divinas. No entanto, os ritos católicos sancionados pela ortodoxia revelam-se frágeis, tornando-se necessário recorrer ao interdito para paradoxalmente se cumprirem os regulamentos da religião por eles professada.

Segundo Carlo Vittorio Cattaneo, a perspetiva de Sena a partir dos anos de 1950 é a de que “só se pode crer por fé, cega e irracionalmente” (1992: 46). Apenas desse modo o homem pode expressar a religiosidade sem qualquer entrave da razão, ou sem inquietação espiritual. Antecedendo tal crença, o poema “Declaração”, de Perseguição, primeiro livro publicado por Sena, descreve o momento (então visto como inevitável) em que o poeta irá render-se:

mais tarde ou mais cedo, cairei rendido. Contudo, sei que vou acreditar

e esquecer o resto porque é lógico, tão lógico!, tão claro que enraivece e cansa e desconsola… Ah eu bem conheço que não somos racionais, mas sempre somos nós e sermo-nos

é o haver mistérios na alma e no mundo e não haver necessidade de mistérios em Ti.

(Sena, 1942c: 71) A reconversão à fé canónica surge como uma inevitabilidade lógica, ou seja, racional. No entanto, essa mesma fé pertence ao domínio do irracional, próximo da instintiva multidão nietzschiana, como o “nós” aqui presente sugere. O polissíndeto do quarto verso demonstra a revolta e a desilusão que o regresso às práticas religiosas convencionais produz no sujeito poético: não há a serenidade de um reencontro espiritual, mas a consciência de um malogrado empreendimento individual. O paradoxo reside no facto de admitir o futuro cumprimento de todos os dogmas religiosos e até acreditar que “nessa crença encontrar[á] a alegria” (ibidem), para depois se lamentar pela irrisão que os outros lhe reservam.

Talvez a abdicação seja um reconhecimento de que há mistérios insolúveis. Em Deus, pelo contrário, residiria a ausência de mistérios. Não há neste poema a defesa do ateísmo, mas a evidência da aporia que caracteriza a fé dogmática kantiana, que “pretende saber e ignora […] a diferença entre fé e saber” (Derrida, 1996: 20). Em O

Físico Prodigioso, os melhores representantes deste tipo de fé são os inquisidores:

estudam os cânones, seguem o Regimento, interrogam e argumentam acerca dos pecados e heresias do réu, mas todo o saber é ineficaz perante os prodígios que rodeiam

a prisão do físico. Por esse motivo, os clérigos abdicam rapidamente das convicções professadas para seguirem os ditames do Diabo.

Em O Físico Prodigioso, não há pavor de Deus: a expressão da religiosidade tende à obtenção de favores, frequentemente pedidos sem rebuço e festivamente, como no momento em que as donzelas solicitam a ressurreição dos cavaleiros sepultados no castelo. Uma das “ironias” do que Jorge de Sena denomina de “virtudes teologais” (1961: 15) reside no facto de tal pavor estar reservado a quem segue fielmente os regulamentos eclesiásticos. No prólogo de O Reino da Estupidez, o autor defende que “só a fé é céptica, só a esperança é dúbia, só a caridade é displicente” (ibidem), numa defesa do caráter interior da religião, que não deve submeter-se a uma normalização clerical, de modo a preservar os “direitos sagrados da dignidade humana” (14). Reivindicar uma fé cética implica a aceitação de uma crença em permanente questionamento. Esta ideia contrapõe-se à crença incondicional manifestada no soneto de 1958, “Como de vós…”, inserido em Fidelidade:

Como de Vós, meu Deus, me fio em tudo, mesmo no mal que consentis que eu faça, por ser-Vos indiferente, ou não ser mal, ou ser convosco um bem que eu não conheço.

(Sena, 1958b: 50) Um Deus distante, como o referido neste soneto, não significa descrença. Longe de uma “fé cética”, o sujeito poético remete Deus para o impensável, o irrepresentável, forma de sublime que O afasta da humanidade, para além mesmo de uma conceção moral humanamente apreensível. Por essa razão o sujeito poético (possível sinédoque de homens), ciente do mal que ele próprio causa, aceita a indiferença com que Deus o consente: talvez do mal se possa extarir algum bem, conforme o último verso, de tom agostiniano, indicia. Portanto, dignidade e definição do bem e do mal serão da inteira responsabilidade do homem, o que aproxima estes versos de uma perspetiva gnóstica. Em O Físico Prodigioso, divindades cruzam-se com os homens, facto que melhor se divisa no estatuto de homem-deus do protagonista. Porém, os atos das diversas personagens excluem uma preocupação genuína com castigos divinos: mais importante do que uma ponderação sobre o bem e o mal, é a obtenção de favores (donzelas do castelo) ou a manutenção dos dogmas instituídos (padres da Inquisição).

“Como de Vós…” exemplifica o que Carlo Vittorio Cattaneo denomina da “fé oximorónica” (1992: 52) presente na obra de Jorge de Sena: afirmando a crença em

Deus, como na estrofe acima transcrita, o sujeito poético admite pouco importar “que Vos invente ou não a fé que eu tenha” (Sena, 1977c: 50), diluindo-se gradualmente qualquer possibilidade de uma verdadeira comunicação entre o homem e Deus. Resta, então, a fé, manifestação possível para a superação dos limiares terrenos.

Em Temor e Tremor, Søren Kierkegaard reflete sobre os paradoxos da fé através da história bíblica de Abraão, disposto a dar o filho em sacrifício para corresponder ao pedido de Deus. A perplexidade do filósofo reside no facto de Abraão ter de provar a fé em Deus a partir de um crime. Contudo, o que é moralmente condenável – o assassínio – torna-se ato santo, pois Deus, perante a obediência cega de Abraão, impede a concretização desta morte no último momento. Para Kierkegaard, tal paradoxo “não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão” (1843: 71).

Na novela de Sena, o paradoxo reside na existência de fé sem que se vislumbre um Deus omnipotente, que se torna desnecessário. O físico, homem-deus, é o âmago de todas as venerações: donzelas, físicos que tentam curar Dona Urraca, cavaleiros ressuscitados creem nos seus dons sem precisarem de racionalizações. Ao contrário de Abraão, que manifesta a fé através da dádiva em sacrifício, as personagens de O Físico

Prodigioso creem sem questionamentos, mas não estão dispostas ao sacrifício. A atitude

inverte-se, na medida em que querem a satisfação dos seus desejos. Cura, ressuscitação dos amantes, prazeres eróticos são as provas que estas personagens exigem para se disporem à adoração do homem-deus, numa indistinção permanente entre instinto e fé.