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II. Jorge de Sena: O Físico Prodigioso

1. Homens e divindade

1.3. Um homem-deus em processo descendente

O protagonista de O Físico Prodigioso não é um Deus encarnado num corpo humano – tal limitação tenderia a um enquadramento exclusivo numa tradição religiosa ocidental. Antes, aos dotes sobre-humanos que o divinizam, acresce um conflito interior que se acentua com o desenrolar da ação, resultando na certeza de que, para além de homem com as funções de físico, é um deus involuntário. Conforme defende Francisco F. Sousa, “é exactamente quando manifesta todos estes poderes que o seu mundo começa a decair” (1990: 33). Nessa altura, destacam-se a nostalgia, o desejo de morte, a vontade de escolher a condição humana. Por isso, na segunda parte da novela, correspondendo aos últimos seis capítulos dos doze que a compõem, o físico transforma-se aparentemente em mero corpo. O próprio narrador deixa até de o nomear enquanto físico.

Por isso, o percurso desta personagem é descendente: do éter ao húmus, o que significa a desistência da condição divina em favor da assunção plena do corpo humano, mesmo que isso culmine tragicamente na inumação. Na segunda parte da novela, as funções redentoras que desde sempre o acompanham são substituídas por um corpo exposto à decadência, cuja presença serve apenas para desmascarar as intenções dos inquisidores e expô-los à sua própria falta de ética. Não se trata, pois, de um super- homem triunfal, superação da humanidade, como Nietzsche propõe. Não é também um demiurgo ou um anjo de tradição judaico-cristã, deus de uma escala inferior, com a função messiânica de transmitir aos homens a mensagem de Deus. Trata-se de um eleito, sim, mas do Diabo, seduzido pela enorme beleza deste efebo desde que o vê pela primeira vez, “ainda impúbere, mas já com corpo de homem” (Sena, 1966a: 17).

Só que mesmo este Diabo aparece menos enquanto símbolo do mal do que como vítima de uma paixão não correspondida. Por outro lado, quando em diálogo com um

dos inquisidores, o tom jocoso das suas frases serve para mostrar o poder que tem sobre as vontades dos homens. A subversão dos cânones parece manter-se: o símbolo do mal transforma-se em voz de consciência. Este exemplo insere-se no propósito explícito de agitador a que Sena se dedica. Conforme escreve em 1961, numa comunicação com o nome de “Amor da literatura”, o autor assume “uma intencionalidade destinada a trair toda e qualquer segurança, em nome de uma segurança mais ampla que é a nossa missão humana refazer constantemente” (1961b: 93).

Contudo, o poder do Diabo tem também tradicionalmente os seus limites, pelo que a subversão é relativa. Afinal, nos contos populares, o Diabo é com frequência enganado pela esperteza humana. Referindo-se à influência das forças demoníacas na consolidação do Cristianismo, Robert Muchembled afirma que “o Diabo é apenas um instrumento de correcção dos erros e desvarios humanos, ou seja, o inimigo de Deus não passa de um meio de conversão” (2000: 22).

A beleza corpórea do protagonista atrai o Diabo e impele a concretização do pacto que o transforma em ser duplo, misto de homem e deus. Quando ganha consciência desta duplicidade, tenta reconquistar a condição humana perdida no momento do pacto. Mais do que uma mera recusa dos avanços sexuais do Diabo, a rejeição do divino deve- se à consciência de se ter tornado um objeto sexual, na mesma medida em que usa o corpo enquanto instrumento de cura: a sua divindade imanentiza-se, confunde-se com a matéria. Porém, prescindir da condição divina significa, para um homem-deus, a mutilação de parte de si. Talvez por isso tenha de passar pela tortura, imposta pelos inquisidores, de enfrentar uma réplica da via sacra, percurso grotesco que antecede a sua morte.

Este episódio final baseia-se num conto do Orto do Esposo, referente a um homem que não conseguiam enforcar, mas assemelha-se também ao percurso de Cristo no Calvário. É impossível, porém, reduzir esta novela a uma aproximação ao destino de Cristo. São claras, em O Físico Prodigioso, as alusões a toda uma religião de tentação, penitência, ritual e sacrifício. Nota-se ainda um erotismo exacerbado, levado ao extremo da orgia, num confronto entre o humano e o religioso, entre o profano e o sagrado. A própria religiosidade é pontuada pelo erotismo, como Sena refere, ao comentar que o sagrado “nas suas grandes manifestações, sempre incluiu a sexualidade” (1976b: 281). Escrita nos anos 1960, a novela não passa ao lado dos ideais de liberdade sexual então amplamente debatidos na civilização ocidental, desde sempre defendidos por Sena.

Segundo Georges Bataille, “dans le christianisme et dans le bouddhisme, l’extase est fondée sur le dépassement de l’horreur” (1957: 78). Em O Físico Prodigioso, a contemplação do divino ou do inexplicável passa também para lá desse horror. Exemplo disso é a multidão que acompanha o corpo dilacerado do físico arrastando-se até ao local da sepultura da amada, para com ela se dissolver em terra. Também o episódio orgíaco em que as donzelas-deusas-bruxas despedaçam e comem o cavalo do físico manifesta a superação do horror pelo êxtase místico-erótico. Divino e profano fundem- se na criação de um ambiente em que o homem entra em confronto com os seus limiares.

Nesta obra, percebe-se a existência de divindades plurais, dada a presença não só do homem-deus como do Diabo, e até de uma divindade sem nome que aparentemente se aloja num gorro e confere o poder da invisibilidade. As próprias donzelas são ambiguamente chamadas de deusas, designação que passa para além da mera referência ao poder tentador dos seus corpos. O Deus transcendente e distante, cujas mensagens divulgadas por profetas são sujeitas a estudos hermenêuticos, sancionados por autoridades em questões espirituais, dilui-se numa religiosidade desenfreada, imanente, tão predisposta à superstição quanto à idolatria e à punição. O homem-deus encontra-se na confluência de todos estes pontos de tensão.