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4.5 A sobreposição na imanência entre psicologia eidética e a fenomenológica

4.5.5 A intencionalidade fenomenológica

A tematização da intencionalidade como questão propriamente fenomenológica apareceu pela primeira vez em Husserl, como já tivemos oportunidade de ver, em “Investigações Lógicas”, ao caracterizar a consciência, por meio dos atos psíquicos, de vivências intencionais. Isso se pôs após algumas distinções fundamentais estabelecidas em relação à concepção brentaniana, que carregava em si certa herança psicologista da qual Husserl tentava se desvencilhar.

A mudança em relação a “Idées I” ocorre, fundamentalmente, por uma mudança de perspectiva em relação à função que a intencionalidade assume, num primeiro momento, pela psicologia fenomenológica; e posteriormente, pela filosofia transcendental. O que vimos anteriormente, em relação à “reflexão” e ao “eu puro”, se põe do mesmo modo à intencionalidade, e sua função determinante à constituição de uma filosofia transcendental e superação de toda espécie de psicologismo.

A intencionalidade caracteriza a consciência em sua estrutura fundamental. Todo ato de consciência, toda vivência pura só se determina como tal, pela propriedade que possuem as vivências de serem “consciência de qualquer coisa”. Nesse sentido, há uma mudança significativa em relação à sua definição em “Investigações Lógicas”. O que se caracterizava anteriormente por ato psíquico, em vista da descrição reell das vivências, passa-se agora à vivência intencional, não no sentido descritivo (reell) da consciência, mas no seu sentido constituinte (puro). A consciência, que possuía outrora um sentido mais passivo em relação às suas vivências, é elevada, pela redução, a seu nível mais alto de elaboração, como operadora de toda constituição, assumindo um sentido mais ativo sobre as vivências da consciência.

A intencionalidade evidencia esse sentido constituinte que se abre à consciência, que tem seu pleno significado no Capítulo III de “Idées I” ao se tratar ali das noeses e dos noemas e da sua relação com a imanência, como explicitação de uma região pura de objetos constituídos. Do mesmo modo que em “Investigações Lógicas”, toda consciência continua a se definir, identitariamente, por sua intencionalidade. Porém, diferentemente da concepção anterior, em decorrência da correlação com o objeto, alcançava-se uma imanência reell; aqui, pela nova eidética, a intencionalidade constitui tudo o que em sua relação torna-se vivência pura da consciência.

Não é sem motivo, que diante de sua nova identidade, a intencionalidade é elevada, por Husserl, a um caráter de universalidade.

“[...] caracterizando o fluxo de vivência como unidade de uma consciência, que a intencionalidade, feita a abstração de suas formas e de seus graus enigmáticos, se assemelha a um meio universal, que finalmente carrega consigo todas as vivências”. (1950a, pp. 287-288, tradução nossa)

A intencionalidade assume uma identidade mais forte, em que a análise do papel da consciência é vista a partir do seu próprio núcleo, em sua manifestação mais íntima e pura. Se anteriormente a intencionalidade surgia como uma roupagem na qual a consciência desvelava a unidade reell de todo objeto na imanência, agora, ela habita o próprio núcleo da consciência, em que seu ser é ser intencional, em que essa característica passa a ser sua própria identidade. A intencionalidade nessa definição não só anima, mas é a própria vida da consciência.

A análise intencional que parte do mais íntimo da consciência exige uma redefinição de termos e conceitos que sejam condizentes com a nova realidade que emerge do núcleo puro da consciência. A psique concebida no sentido intencional é, assim, distinta, como não poderia ser diferente, da psique psicologista; a grosso modo, a primeira é representante do

idealismo, a segundo, de todo realismo fenomenológico.

Encontramo-nos assim, nos limites da análise transcendental, e perguntamo-nos, o que resta após a redução? As novas definições visam, explicitamente, reconfigurar a realidade que segue a epoché fenomenológica, pois tudo o que tratamos até aqui, era em vista de evidenciar as condições de sua realização. A hylé, a noese e os noemas são as consequências da exposição das condições de possibilidades ideais à que toda consciência está vinculada. O transcendental, como consequência da redução, tem nessas novas expressões da linguagem fenomenológica, seu nível mais alto de elaboração conceitual pura. Ao que interessa às novas configurações da imanência, nos basta chegar até essas condições de possibilidade do transcendental, caminho feito neste quarto capítulo. Já a partir dessas, onde se trata das constituições próprias dos objetos, como bem ressalta Ricoeur (1950a, p. 300), avança-se para um outro patamar de reflexão que, no momento, por mais importante que sejam, não configuram diretamente interesse de nossa pesquisa. Tratamos de ver somente em que nível se configura o sujeito transcendental que, na correlação, envolve a consciência intencional e não propriamente os objetos constituídos.

Vimos que o fluxo de consciência em que se assentava a intencionalidade estava subordinado à ideia de tempo na fenomenologia. Voltar-nos-emos à temática do tempo como último elemento estatutário da imanência fenomenológica, o que de modo bastante breve, ou implicitamente, já fora mencionado por Husserl em “Idées I” O que faremos é tão somente fazer algumas precisões de modo a esclarecer sua função no interior da consciência constituinte.                    

5 TEMPO FENOMENOLÓGICO E IMANÊNCIA

A análise da temporalidade na fenomenologia requer uma compreensão preliminar de como se esboça o pensamento fenomenológico, em suas linhas gerais, como teoria do conhecimento que se opõe às ciências da natureza e sua autoafirmação de conhecimentos puros. Não é sem motivo que as reflexões de Husserl sobre o tempo, ao menos, as mais elaboradas, advêm com seus escritos fenomenológicos tardios, consequência da virada transcendental, em que se exigiu um posicionamento acerca de como se constitui o tempo nas vivências puras da consciência e de como a própria consciência se constitui temporalmente.

Dado que a dimensão temporal envolve toda estrutura intencional da consciência, ela acaba incidindo diretamente na temática da imanência. A ideia de imanência, como campo operatório da reflexão transcendental que ultrapassa todo dado objetivo, envolve uma concepção de tempo para além do dado factual, fundamentando a própria intencionalidade da consciência fenomenológica. Assim, para o que nos interessa, adotaremos a perspectiva em que a intencionalidade da consciência do tempo, como teremos oportunidade de confirmar, compõe e interage em todos os atos de conhecimento, fundamentando a reflexão fenomenológica pura.

Embora “Idées I” faça apenas breves menções sem maiores aprofundamentos ao tempo fenomenológico, esta obra é fundamental no estabelecimento do papel que a dimensão temporal assume na definição constituinte de toda consciência. Há, nesse sentido, uma estreita interdependência conceitual entre consciência, o transcendental e o tempo, como operadores da análise constituinte fenomenológica.

A primeira menção em “Idées I” à temática do tempo ocorre na terceira sessão, “Métodos e Problemas da Fenomenologia Pura”, na qual Husserl faz um aceno à problemática do tempo na especificação da consciência pura, como elemento de unidade das vivências, ao fazer uma contraposição ao tempo objetivo.

“É necessário cuidadosamente respeitar a diferença que separa o tempo fenomenológico, esta forma unitária de todas as vivências em um único fluxo de vivências (um único eu puro) e o tempo ‘objetivo’ (objektiven), ou seja, cósmico” (HUSSERL, 1950a, p. 272, tradução nossa).

A definição de consciência como fluxo é somente mencionada, sem maiores detalhamentos, mas sua especificação é fundamental para se compreender o papel que a

intencionalidade assume na virada transcendental, e sua relação com uma certa ordem de tempo que lhe é própria.

O recurso utilizado por Husserl para distinguir as diferentes situações temporais, ideais ou empíricas, se assemelha às distinções estabelecidas em “Philosophie als strege

Wissenschaft”, entre o método utilizado pela ciência da natureza e pela ciência

fenomenológica, na definição de seus respectivos objetos de estudo. Como tivemos oportunidade ver no terceiro capítulo, esse método se elabora a partir de uma percepção em que se contrapõem um dado natural e outro fenomenológico da vivência da consciência, exigindo uma “mudança de olhar” à análise transcendental, implicando, concomitantemente, uma mudança de método.

A segunda menção do tempo em “Idées I” aparece no fim da mesma sessão, evocando no parágrafo 118, de modo ainda preliminar, a análise sintática da consciência, não sob uma base do tempo fenomenológico, mas tão somente como dado descritivo, visando à consciência como unidade que envolve todas as vivências do fluxo de consciência144. A unidade da consciência se dá no fluxo permanente que une uma consciência à outra, sem, porém, especificar suas modalidades, que unifica passado e futuro a uma mesma experiência perceptiva. “Idées I” não estrutura, assim, o detalhamento de uma análise retencional, componente essencial da nova definição de consciência intencional fundamentada temporalmente.

Em que incide a análise da temporalidade na fenomenologia e quais os elementos marcantes à especificação do campo da imanência? Tem-se uma série de consequências. A mais importante, cremos, está no fato de Husserl, ao integrar o tempo no centro da constituição íntima da consciência, acaba por instalar uma nova ordem de correlação entre consciência e objeto. Internamente, a análise fenomenológica do tempo se fundará no seio estrito da interioridade psíquica, circunscrevendo o campo da imanência em dois dados complementares: temporal e transcendental. É evidente que as contraposições sobre o tempo, ora como fluxo, ora como objeto, na análise fenomenológica, não se limita a um dado metodológico, mas se abrem a uma ordem maior de problemas.

      

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Embora Husserl (1950a, p. 403, tradução nossa), neste parágrafo, esteja mais preocupado com as formas sintáticas da consciência, em sua manifestação noética e noemática, que compõem, do mesmo modo, uma unidade da duração de uma vivência, não deixa de mencionar a base temporal em que se assenta esta mesma análise sintática: “O que é verdade de uma vivência isolada o é de todo fluxo de vivências. As vivências podem ser, assim, distintas no que se refere uma à outra em sua essência, se constituem em seu conjunto em um único fluxo temporal, enquanto que membro de um único tempo fenomenológico”.

A primeira delas é a de que ao interligar tempo e intencionalidade, um dado transcendental que aparece é a não objetivação do fluxo da consciência, e a necessidade de se especificar sua relação com o objeto perceptivo145. A segunda, interligada à primeira, se refere à dimensão constitutiva. A ordem da transcendência que se anuncia na imanência, como se refere Ricoeur em nota de rodapé (HUSSERL, 1950a, p. 272), “a face-objeto da vivência”, assim como da constituição do eu, em sua “face-sujeito” da mesma vivência, requer detalhamento específico da dimensão temporal que envolve estas respectivas distinções na imanência. Tais ordens de questões levam a uma necessária especificação da estrutura intencional em que se constituem as vivências no tempo fenomenológico, e de como se articula o eu nesta nova modalidade transcendental.

Assim, “Idées I” faz apenas o levantamento prévio das questões de ordem constitutiva em que o tempo indiretamente está envolvido, compondo um dado intrínseco à redução fenomenológica, sem, contudo, entrar nos meandros do fluxo da consciência, detendo-se apenas no dado presente original. Com a redução transcendental, a consciência já havia perdido seu vínculo com toda realidade material e cósmica (o mundo), em que se dá a sucessão do objeto perceptivo, mensurável na passagem de um instante e de um objeto a outro. O tempo da vivência, ao contrário, como tempo imanente, em suas diversas modalidades, seja do agora, do passado ou do futuro, é essencialmente imensurável, e por isso não pode ser visto como objeto, nem como independente na análise fenomenológica, mas deve ser visto e interpretado no conjunto da apresentação originária.

      

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Na análise fenomenológica, o tempo está sempre referido como fluxo, nunca como objeto ou como um ente independente, como bem nos recorda Bernet (2003, p. 24, tradução nossa), em sua introdução ao volume B extraído de Husserliana X “Sur la Phénoménologie de la conscience intime du temps”, quando faz uma contraposição sobre o tempo na análise de Husserl e Aristóteles: “Não há, aliás, mais grandes dificuldades em pôr a contribuição de Aristóteles em relação com a concepção que Husserl faz do tempo [...]. Para estes dois, as determinações temporais como, ‘mais cedo’ ou ‘mais tarde’ , como ‘o futuro’, ‘presente’, ou ‘passado’, são predicados de um objeto que se põe no seio de um sistema de localização espaço-temporal englobante. A linha de pontos do agora que renasce continuamente tem a função de medida deste movimento. A irreversível sucessão destes pontos do agora é comparável à série dos números que se obtém pela soma constante da unidade. O número, a unidade temporal do agora, conta o movimento, o tempo contado e, como sucessão de agora sempre novos, é em si contado simultaneamente. É neste ponto de vista aristotélico que destaca-se a teoria husserliana do presente fluindo-permanecendo. Certamente, Aristóteles está mais indeciso quanto ao modo de ser do tempo e do agora, do que Husserl, mas todos os dois de qualquer modo se acordam de que o tempo não é um ente independente, não um objeto (presente), ainda que nenhum tempo possa ser dado sem objeto. O tempo se encontra primeiramente na experiência da natureza, no movimento e na mudança das coisas que nos rodeiam. Se então o tempo em si mesmo é concebido como um gênero de movimento, é seguindo espontaneamente o movimento característico dos corpos físicos . Husserl se contrapôs às seduções de uma tal comparação, mas ele não conseguiu no entanto, escapar totalmente à uma naturalização, ou à uma subsequente objetivação da consciência do tempo”.

É ilustrativo o exemplo que Husserl utiliza para distinguir o tempo cósmico do fenomenológico, ao estabelecer a distinção eidética que há entre a vivência perceptiva da cor e sua extensão.

O tempo cósmico é em relação ao tempo fenomenológico de qualquer maneira análoga ao que é a ‘extensão’ (Ausbreitung), pertencente à essência imanente de um conteúdo concreto de sensação (por exemplo um dado visual no campo dos dados visuais de sensação) em relação à ‘extensão’ (Ausdehnung) espacial objetiva, a saber, a extensão física do objeto que aparece e que se ‘esboça’ visualmente neste dado de sensação. Seria absurdo de situar no mesmo gênero eidético um momento de sensação, como a cor ou a extensão, e o momento da coisa que se esboça através dela, como a cor da coisa e a superfície da coisa. Acontece a mesma coisa no tempo fenomenológico e no tempo do mundo. (HUSSERL, 1950a, p. 271, tradução nossa)

As reflexões de “Idées I” sobre a temporalidade são de ordem genérica. Não diluem o problema do tempo e suas modalidades; fazem apontar apenas para um “enigma” (p. 275) que, não obstante, envolve a esfera fenomenológica, e que não está ainda em vias de se resolver nos limites da obra. Esse enigma aponta para algumas questões importantes: ele envolve uma propriedade eidética que precisa ser situada na redução pura, assim como das conexões das vivências entre si e sua duração na imanência da consciência, como dado do ‘fluxo de vivência’, que se escoam indeterminadamente.

A vivência, porém, é essencialmente diferente do fluxo de vivências: uma é transitória; a outra, permanente. Isso mostra a emergência de um “eu”, como instante concêntrico no fluxo temporal da imanência pura.

“Cada vivência, por exemplo, uma vivência de alegria, assim como pode começar, pode terminar, e assim, delimitar sua duração. Mas o fluxo de vivência não pode começar nem terminar. Cada vivência enquanto ser temporal é vivência de seu eu puro” (p. 275, tradução nossa).

O “eu” se apresenta assim como dado originário de unificação das vivências, que pode voltar seu olhar sobre si mesmo, num gesto de autorreflexão, apanhando sua manifestação na duração pura de uma presença originária. Como acontece esta unificação do fluxo em torno de um eu? Ou como se constitui o dado temporal fenomenológico? Husserl não especifica o suficiente em “Idées I”, sendo necessário o aprofundamento do tema em outros trabalhos. As lições sobre o tempo retomadas após “Idées I” lançam algumas luzes sobre as dificuldades que engendra o tempo na reflexão fenomenológica transcendental e que precisam ser devidamente integradas ao dado perceptivo originário. A relação entre ego e tempo como

motivação da experiência intencional da consciência nos ajudará no esclarecimento dessas dificuldades.