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Retenção e protensão na constituição do tempo fenomenológico

5.3 Estrutura fundamental da consciência originária

5.3.1 Retenção e protensão na constituição do tempo fenomenológico

O ponto de partida da análise do tempo fenomenológico se constitui sempre a partir da percepção originária, ou simplesmente, de um “agora” perceptivo, propiciado por uma estrutura organizativa intrínseca à vida da consciência. Por outro lado, temos a materialidade do ato, ou os “data” (dados) hyléticos, objeto resultante da intencionalidade da consciência, que anima e compõe sua vivência sensível, constituindo toda consciência como consciência de qualquer coisa. O próprio fluxo se constitui, do mesmo modo, por um dado hylético não retido ainda pela atenção.

O tempo fenomenológico se mede assim pelo entrecruzamento prévio inerente à consciência de um dado e a consciência propriamente dita, que se configura como resultante da percepção originária. O que permite constituir o tempo íntimo à consciência é justamente sua dupla conformação intencional, protensão e retenção, que se configura instantaneamente ao fluxo da consciência.

Num evento perceptivo qualquer, em que, pelo dado hylético, se constitui a percepção originária, pode-se estabelecer, no percurso do fluxo de consciência, vários momentos em que esse fluxo sofre uma fragmentação a partir dos novos ‘data’ que se apresentam no campo perceptivo. Na linha vertical, eles seriam compostos pela sequência de momentos dentro do próprio fluxo, m0...m1...m2. Para cada um desses momentos, entrecruzam-se retenção e

originária. Temos, desta forma, uma dupla intencionalidade, uma que se realiza na doação intuitiva do fluxo atemporal da consciência absoluta, na passagem da impressão original do m0 a m1, e assim sucessivamente; e a outra intencionalidade, na sucessão temporal dos objetos

imanentes, no fluxo permanente da consciência retencional. Como isso ocorre e quais as características essenciais desses componentes intencionais da consciência?

Na consciência íntima do tempo, a vivência é uma experiência da consciência absoluta, que se designa, assim, por sua força constituinte. Vivência e experiência compõem a própria vida da consciência em sua manifestação de fenômenos puros. Tais fenômenos puros se constituem através da modalidade intencional da consciência, no horizonte de mundo possíveis de uma percepção originária.

Os “data” hyléticos tornam-se, assim, o centro de toda experiência vivenciada pela consciência absoluta, ao mesmo tempo em que centraliza toda atenção da retenção no fluxo da consciência. A própria possibilidade da manifestação do dado hylético configura-se, em última instância, como propriedade de retenção que possui todo ato intencional no interior da consciência absoluta. Assim, vivenciar e experienciar compõe a intencionalidade retencional da consciência, que é transversal a todo ato, ou seja, voltada aos objetos constituídos na imanência. O ato retencional permite à consciência uma abertura de mundo em que toda experiência é possível a uma consciência em sua apreensão originária153. Ela permite, pela descrição fenomenológica, circunscrever, não somente o objeto que se doa à consciência em suas mais variadas manifestações, mas também, o de circunscrever o eu que possibilita essa experiência.

Se a retenção permite a captação instantânea de qualquer dado perceptivo e garante sua fluidez como consciência absoluta, o ato horizontal desse entrecruzamento é sustentado por outro ato intencional da consciência, a protensão. O dado intencional longitudinal é uma estrutura prévia da consciência que permite que todo “agora” perceptivo se estenda na consciência íntima do tempo. Nesse entrecruzamento intencional, a consciência é ainda motivada internamente pela espera, em sua permanente vigília, fenômeno intrínseco de toda consciência, que a caracteriza, no seu movimento interno, como consciência “de” qualquer coisa, ou seja, mais do que o presente, o que constitui a consciência é seu “devir”, como fluxo permanente de experiências perceptivas. A espera impulsiona a consciência a lançar-se ao       

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Bernet (2003, pp. 42-43, tradução nossa) faz uma distinção de essência entre retenção e recordação, embora ambas estejam referidas de alguma maneira ao passado, “Na recordação, o passado não permanece, contudo, unicamente consciente e apreensível, apenas na retenção, ele é ao contrário, expressamente presente ‘de novo’, ‘mais uma vez’. Certamente, não presente enquanto que presente (como na apreensão original) mas presente enquanto presente passado. Está ali também o sentido da definição de recordação como ato de ‘presentificação’”.

futuro, num preenchimento constante, em busca de um novo “datum” original presente. “Dir- se-á, em seguida, que uma espera que se preenche permanentemente, procede continuamente em cadeia, ou seja, de fase em fase” (HUSSERL, 1910b, p. 35, tradução nossa).

Segundo Husserl, a definição de protensão se caracteriza por sua mutação constante em relação ao ato perceptivo anterior, o que a faz vincular-se sempre ao futuro, e a retenção, ao contrário, se conectando sempre ao passado.

Toda protensão que precede se comporta em direção a cada uma das seguintes no

continuum protencional, do mesmo modo que toda retenção segue o fato em direção

a precedente da mesma série. A protensão que precede contém intencionalmente em si todas (aquelas) ulteriores (as implica), a retenção que segue implica intencionalmente todas (aquelas) anteriores. (p. 36, tradução nossa )

A protensão alimenta e constitui uma cadeia, interligando o fluxo das vivências em seus vários “agora” originários, o que permite a intencionalidade protensional estruturar o fluxo numa extensão longitudinal, se conectando tanto com o ato perceptivo anterior como com o posterior. A característica tanto da retenção quanto da protensão é sua presença contínua no fluxo da consciência, como garantia de sua atualidade e continuidade154. Um agora perceptivo só pode permanecer como vivência que flui no íntimo da consciência, se se apresentar na modalidade em que se entrecruza o ato intencional da retenção e da protensão, fundando-se como consciência absoluta de si e dos objetos imanentes. Sua condição de aparecimento e de existência depende de sua permanente mutação e passagem de uma vivência pura à outra.