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2.2 Sobre certas propriedades das vivências intencionais

2.2.3 Consciência e intencionalidade

O que vimos acima serve como introdução a esta concepção fundamental da fenomenologia, a “intencionalidade”. Uma introdução importante, pois lança as bases para a compreensão da própria ideia de consciência em que se assenta a fenomenologia. O que vimos foi um conjunto de problemas em que a fenomenologia procurará situar e sistematizar, de modo a evitar os equívocos cometidos pelo psicologismo e pelo empirismo, em suas respectivas análises do psíquico e do conhecimento. Os temas abordados serão praticamente os mesmos, porém, pelo caráter intencional da consciência, eles assumirão outra tonalidade representativa.

A análise que Husserl desenvolve na quinta investigação lógica é um referencial importante para nossa pesquisa, principalmente, no que se refere às delimitações da tarefa e do objeto da fenomenologia. Concebe-se, na análise da consciência, pelo ato intencional, uma dimensão e significação totalmente novas. Não somente pelo método, mas, principalmente, pelo conjunto de questões que abre, tanto de ordem epistemológica como ontológica70. Por razões de ordem circunstancial, por estarem ainda em desenvolvimento suas pesquisas, Husserl deixa muitas questões em aberto, principalmente, conceituais, dando margem a múltiplas interpretações.

Husserl sempre deixou claro que se sentia seguidor do pensamento psicologista brentaniano. Isso não significa que a teoria da psicologia descritiva de Brentano será totalmente absorvida por ele. Sua importância para Husserl, como salientado no primeiro capítulo, está em delimitar as fronteiras da investigação correspondente à psicologia e à ciência da natureza, circunscrevendo, respectivamente, uma como ciência dos fenômenos psíquicos e outra como ciência dos fenômenos físicos.

Não há dúvidas de que uma das maiores contribuições das descrições de Brentano à fenomenologia está em classificar os atos enquanto vivências intencionais, ou mesmo,       

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Como descreve Richir (1995, p. 132, tradução nossa), em “Intentionalité et être-au-monde”, “Enquanto que na atitude natural, o mundo é constantemente pré-dado, e que permanece velada o todo da vida constituinte por esta pressuposição (tudo quanto pertence também o todo da vida implicado no sentido de horizonte do presente momentâneo, anterior, antecipado como futuro, etc.,) esta vida universal entra agora no campo do olhar. Mas isto não se produz como na tematização de minha vida consciente na atitude natural, como se, sob o solo do mundo continuamente pré-dado, junto a uma corporeidade-de-carne (Leiblichkeit) e naturaza constantemente pré-dada, tematizando e desvelado progressivamente a vida da alma objetiva no corpo-carne (in Leib) como consciência do mundo humana e como conhecimento do mundo. Mas é imediatamente, em uma plena universalidade, que a vida da consciência torna-se tematizada e que tomamos o mundo em geral, em última análise, como simples ser desta vida. Eu não tenho antecipadamente como ser o corpo-carne (Leib), o mundo em torno (Umwelt), minha vida de consciência corporal (leiblich) localizada, mas o mundo como fenômeno, a vida universal de consciência como nisto que ela é o sentido de ser”.

descrevendo a consciência através de seus atos psíquicos. Tal distinção e definição da consciência, pela essência dos atos psíquicos, são perceptíveis quando se toma uma vivência qualquer. Para Husserl, “Na percepção, qualquer coisa é percebida; na consciência figurativa, qualquer coisa é figurada; na asserção, qualquer coisa é asserida, no amor, qualquer coisa é amada; no ódio, qualquer coisa é odiada; no desejo, qualquer é desejada” (2012b, p. 315).

O pressuposto brentaniano é bem claro, no que diz respeito à referência imanente a que aponta o fenômeno psíquico. Neste, algo se apresenta como “objeto intencional”, o que acaba definindo toda a consciência, como “consciência de”. A referencialidade da consciência a qualquer coisa abre várias questões à fenomenologia, marcadas por dois momentos: primeiramente, de ordem eidética, e posteriormente, a partir da redução, de ordem transcendental. O fato de ter possibilitado a emergência deste caráter intencional da consciência, se torna, por si só, um mérito à psicologia brentaniana, reconhecido por Husserl como uma das suas maiores contribuições à fenomenologia.

O caráter intencional dos fenômenos psíquicos revela a própria idealidade do objeto que é apreendido em qualquer ato da consciência, seja na percepção, na lembrança, na figuração, na asserção, etc. A intencionalidade, expressa, assim, não apenas a correlação entre sujeito e objeto, mas o próprio ser, a essência daquilo que se doa à consciência, como bem sintetiza Levinas.

O fato que o ser é revelação – que a essência do ser é sua verdade – se exprime pela noção de intencionalidade. A intencionalidade não consiste apenas em afirmar a correlação entre sujeito e objeto. Afirmar a intencionalidade, como tema central da fenomenologia, não consiste mesmo em conceber a correlação entre sujeito e objeto como intencionalidade. A representação do objeto por um espectador voltado sobre o objeto é o preço do abandono de múltiplos esquecimentos. Ele é abstrato ao senso hegueliano. Porque o ser consiste em se revelar, ele se apresenta como intencionalidade. O objeto, ao contrário, é o modo onde, por excelência, o ser que se revela deixa esquecer a história de suas evidências. (1959, pp. 101-102, tradução nossa)

O caráter de idealidade e essencialidade do objeto intencional é a marca contínua do processo de ruptura que Husserl deseja realizar com a psicologia e sua concepção factual da consciência, que ora o coloca em linha de continuidade, ora em descontinuidade com a psicologia descritiva de Brentano. Embora a definição de intencionalidade, como qualidade de ato da consciência, apareça, de modo geral, circunscrito à essência do objeto, há especificações que precisam ainda ser feitas, de modo a ter-se uma maior compreensão do quadro descritivo intencional em que se define a consciência a partir de então.