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1.1. Na escola da matemática

1.1.2 Delimitação do campo subjetivo

Após termos mencionado brevemente a influência do estudo da aritmética e da matemática, na abertura do campo de investigação sobre a imanência, convêm voltarmo-nos para especificações que Husserl faz sobre esse tema, evidenciando qual é seu interesse e suas preocupações filosóficas neste período e, principalmente, que perspectivas elas abrem em relação à fenomenologia. Há alguns textos que antecedem “Logische Untersuchungen”,       

22 Sobre a importância deste tema para a pesquisa fenomenológica, afirma Biemel (1959, p. 39, tradução nossa):

“O que é realmente fundamental nesta doutrina é com efeito o conceito de produção, é também o conceito de reflexão, é enfim o método que consiste em iluminar a essência de uma coisa remontando à origem de sua significação na consciência e à descrição desta origem. Ela nos parece, que estamos bem ali nos primeiros germes da constituição, da redução, da clarificação da origem da doação de sentido da descrição fenomenológica e da intuição eidética. O que está em germe também nestes textos, é a atitude permanente de Husserl no que se refere a psicologia considerada como uma ciência importante e decisiva, não provavelmente a psicologia tradicional, experimental e objetiva, mas, na sequência de Brentano, a psicologia introspectiva, da qual não cessará, até Krisis, de definir de modo sempre mais claro a estrutura e a significação”.

principalmente, na década de 1890, que estão ligados aos objetos intencionais e que merecem nossa atenção. Veremos alguns que podem lançar alguma luz sobre nosso objeto de pesquisa e nos auxiliar no aprofundamento do campo de investigação em que se doam os objetos à consciência23.

Husserl já havia, a esta altura, praticamente abandonado suas investigações em torno da aritmética, voltando-se mais para as significações ideais de ordem psicológica24. Sua discussão não é mais propriamente com Frege, mas com Twardowski e Brentano, principalmente. É nesta direção que faz suas primeiras formulações em torno da intuição e da representação. Essa mudança de rota, em relação aos temas anteriores, visa constituir um sistema de referências, até então tratado de modo insuficiente na lógica e na teoria do conhecimento. Ele deseja constituir um estatuto de referência à consciência, de modo que o fundamento do ato intencional assegure o conteúdo ideal dos objetos de investigação, afastando-se de qualquer método empirista.

Um dos primeiros conceitos desta nova abordagem é o da intuição. Embora ainda não a tenha desenvolvido de modo sistemático, o que ocorrerá somente em “Logische

Untersuchungen”, Husserl se utilizará deste conceito como aporte às descrições da unidade da

percepção.

O que garante a unidade de uma percepção na duração? O que configura sua identidade? Para a abordagem destes conceitos, Husserl utiliza o exemplo de uma simples experiência auditiva, para fundamentar um ato mais originário da consciência.

[...] Ainda que possam corresponder, nas sonoridades e nas formações singulares dos atos particulares, deve haver um ato que, sobrevoando para sua tomada, envolve a unidade do conteúdo, enquanto que ela é a cada momento, o conteúdo de um observar. (HUSSERL, 1993c, p. 216, tradução nossa)

      

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Não temos condições de ver aqui com mais detalhes, um estudo importante de Twardowski, datado do ano de 1894, que trata, “Sur la thérie du contenu et de l’objet des représentations”. Dado sua amplitude, é importante ao menos sua menção, de modo a situá-lo no contexto de nossa pesquisa. Twardowski e Husserl foram, por volta do ano de 1886, frequentadores do curso de Brentano em Viena, que fazia reconhecido estudo sobre psicologia, a saber, de sua obra que marcou a ambos, “Psycologie du Point de Vue Empirique”. Influenciado por seu mestre, Twardowski lança a obra oferecendo uma contribuição significativa, para este período, sobre os objetos intencionais, envolvendo descrições sobre atos, conteúdos, objetos de representação, do qual Husserl se limitou apenas a breves comentários críticos. Esse fato nos assinala duas coisas, primeira, é a influência determinante de Brentano e do estudo da psicologia, tanto nas obras de Husserl como de Twardowski; segundo, que os estudos psicológicos relevantes neste período, relativizando os desdobramentos posteriores, no caso da fenomenologia, não se limitam somente aos comentários de Husserl, mas encontra vasta difusão no final do século XIX, dos quais o próprio Husserl se beneficiará.

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Como afirma Dastur (1995, p. 25, tradução nossa), “Husserl irá trabalhar na preparação do segundo volume de ‘Philosophie de l’arithmétique’ até 1894, porém, a investigação que executa no domínio lógico o conduzirá a romper com a concepção de Brentano, do mesmo modo como ele já havia rompido com a concepção que Weierstrass fazia das matemáticas, e defender que a lógica não é uma disciplina essencialmente prática, mas uma ciência a priori que se refere, não ao espírito que julga, mas ao reino das significações ideais”.

Acerca da ordem de questões relacionadas ao ato de perceber, Husserl procurará sustenta-las a partir da intuição. Há, porém, modos de intuição diversos, sempre ligados aos conteúdos imanentes, que se constitui a partir de percepções momentâneas, ou por meio daquelas que duram no tempo25.

Pela percepção, o objeto se oferece na sua totalidade. O intuicionar é assim um ato globalizante que doa o objeto, seja ele instantaneamente ou na duração tempo.

Nós trazemos o objeto à intuição quando nós intuicionamos tudo que está sobre ele a intuicionar, portanto quando nós o consideramos, ‘ele’, de todos os lados. Para cada parte e cada marca distintiva da coisa, há um ponto de vista de onde nós podemos apreende-lo melhor, ou seja, no continuum de movimentos que o fazem tornar-se outro e que suporta cada momento da intuição com a mudança do ponto de vista, há a cada vez uma fase onde o momento satisfaz o melhor de nosso interesse. O ponto de vista correspondente é o ponto de vista ‘normal’, e o momento forma uma parte, ou, enquanto determinação do todo, uma marca distintiva, na síntese ideal da direção objetiva. (HUSSERL, 1993c, p. 221, tradução nossa)

A intuição garante, a partir da sequencia temporal, a doação do objeto em sua totalidade26. Num ato momentâneo de intuição de um objeto percebido, forma-se a base para apreensão de todo objeto. Acerca desses temas, Husserl estabelece um modo psicologista de constituir o conhecimento acerca de um objeto, que mesmo na totalidade da vivência intencional, o objeto é ainda uma entidade de origem psíquica.

Essas descrições imanentes à consciência realçam o estatuto ideal dos objetos apreendidos temporalmente. Mais adiante, como veremos, será necessário fundamentar as razões que permitem à consciência tal ideação descritiva, o que por si só a teoria psicologista não consegue resolver.

      

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“Parece-me inevitável dar ao termo intuição uma significação estreita e uma significação larga. É intuição ao sentido estreito, o conteúdo imanente e primário de um apresentar, ou melhor, de um observar momentâneo; intuição ao sentido largo, o conteúdo de um observar que continua a durar de uma maneira unitária”. (HUSSERL, 1993c, p. 220, tradução nossa).

26 O que igualmente Levinas (2001, p. 106,  tradução nossa) define por atos intuitivos: “Sob o título de atos

intuitivos, Husserl engloba, de uma parte, a percepção (apresentação – Gegenwärtigung), e, de outro, a imaginação e a memória (a representação – Vergegenwärtigung). Essas noções se encontram unidas, porque os objetos visados por esses atos lhe são dados em si mesmos, e não são somente significados”.