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Acerca da expressão e da significação na teoria da imanência fenomenológica

Ao tratar da expressão e da significação na fenomenologia, nos reportamos incondicionalmente aos atos psíquicos que são, idealmente, o canal de sua manifestação. O desmembramento destas vivências é importante para compreendermos o real teor do ato psíquico e sua relação com o conhecimento. Embora a significação e a expressão estejam, num sentido amplo, relacionadas com a própria dinâmica da vida psíquica, em seus modos de lidar e de se comunicar consigo mesma e com o mundo externo, o que nos interessa realmente nestas descrições analíticas, é o teor fenomenológico que o próprio psíquico acaba expressando, como elemento de acesso à descrição pura.

De modo geral, expressão e significação tratam da própria vida do psíquico. Regressivamente, elas nos reportam ao signo e a indicação de que qualquer coisa é referida. Nesse âmbito, a expressão serve de signo para o pensamento, tanto para o que ouve, como para o que fala61. É necessário, portanto, alcançar sua essência fenomenológica, que na análise de “fatos” é ofuscada pelo método empírico, inviabilizando assim à análise pura.

Para essa ordem de problemas, algumas distinções se fazem necessárias. A expressão, mesmo na descrição pura, pode estar referida a duas coisas distintas: primeiro, elas podem estar relacionadas aos fenômenos físicos, que constituem sua expressão; segundo, nos “atos” que lhe possibilitam a significação e sua plenitude intuitiva.

Assim, as expressões nos apontam para os atos que conferem a significação, e mais, para os atos de “intenções de significação”. Esses atos são propriamente de teor fenomenológico, sendo “[...] atos que preenchem a significação” (HUSSERL, 2012b, p. 32). Tais atos, na análise fenomenológica, formam a própria unidade da consciência. Eles representam uma vivência que assume sua plenitude na consumação do seu sentido, de sua significação, e não simplesmente na expressão da palavra, que internamente, tem outra finalidade.

A função da palavra (ou melhor, da representação intuitiva da palavra) é suscitar diretamente em nós o ato que confere a significação e apontar para o que é ‘nele’ intencionado, talvez mesmo dado, por meio da intuição preenchedora, impelindo ao mesmo tempo o nosso interesse exclusivamente nessa direção. (p. 34)

      

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Husserl ilustra muitíssimo bem estas vivências psíquicas, como sentido e significação da expressão, quando estas, por exemplo, estão relacionadas a um nome, “Distingue-se para cada nome, entre o que ele ‘manifesta’ (isto é, tais vivências psíquicas) e aquilo que ele significa. E, de novo, entre o que ele significa (o sentido, o ‘conteúdo’ da representação nominal) e o que ele nomeia (o objeto da representação)” (2012b, p. 28).

Nesta leitura descritiva, para cada ato em que a palavra confere uma significação, apontando ao objeto intencionado, ocorre uma mutação fundamental, “[...] a representação intuitiva, em que se constitui a aparição física da palavra, sofre uma modificação fenomenal essencial quando o seu objeto toma o valor de uma expressão” (p. 34).

É a primeira vez que Husserl trata de modo mais enfático e claro dos fenômenos relacionados à vida psíquica pelo puro ato de significar, se referindo diretamente à palavra como movimento primeiro da significação. Neste “ato primeiro”, estão vinculados todos os atos preenchedores, que tem a função, na reflexão, de vincular o significado do objeto à sua expressão. Os objetos se definem como tais, somente por meio do “ato” em que algo é visado por nós, o que será analisado posteriormente através dos atos intencionais.

Uma passagem importante que devemos fazer ao analisarmos a expressão é quanto a seu sentido e sua objetividade, ou seja, a idealidade própria da relação entre expressão e significação, sua idealidade in specie, ou mesmo, sua unidade ideal. É essa idealidade que a análise fenomenológica deseja alcançar e descrever.

Embora a expressão sempre diga algo acerca de alguma coisa, estando relacionado a qualquer objeto, é importante fazer aqui a distinção entre significação de uma expressão e seu objeto. A distinção entre conteúdo e seu objeto está relacionada acerca “do que” e “de que” a expressão diz algo.

A necessidade da distinção entre significação (conteúdo) e objeto torna-se clara quando nos convencemos, pela comparação de exemplos, de que várias expressões podem ter a mesma significação, mas diferentes objetos, e, por sua vez, que elas podem ter significações diferentes , mas o mesmo objeto. (p. 39)

Essa distinção é importante, pois ela expressa o próprio movimento e complexidade de um ato psíquico62. A expressão e sua significação na análise fenomenológica, diferentemente do que ocorre no psicologismo, preenche o caráter distintivo, especificando um campo de objetos puros a que se pretende dedicar uma filosofia de ideias puras.

Seguindo este caminho descritivo, estão relacionadas à expressão três coisas: a manifestação de algo, uma significação e um objeto. Ao que se refere este último, duas distinções importantes podem ainda ser feitas na análise fenomenológica. De um lado, o próprio objeto visado por suas interfaces, e de outro, seu correlato ideal, com sua capacidade de preenchimento.

      

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A este respeito, os exemplos de Husserl referentes a nomes na distinção entre significação e objeto: “O vencedor de Iena – e o vencido de Waterloo; o triângulo equilátero – o triângulo retângulo” (2012b, p. 39).

Embora Husserl não trate o suficiente sobre este preenchimento de significação, tem- se na base desta intenção de significação uma intuição63. A identificação do conteúdo é dada por meio dos atos preenchedores, atos pelos quais o sentido do objeto e sua significação estão diante de nós tal como é visado, em sua totalidade. Somente por meio desses atos se pode ter a totalidade ideal de uma percepção. Assim, numa expressão, em sua decodificação idealizante, nos é oferecido o correlato ideal de um objeto. Correlato este que é a própria essência do ato intencional. Essas distinções são fundamentais ao que a fenomenologia virá a tratar acerca das representações.

2.1.1 Caracterização dos atos de significação

Uma caracterização ideal da expressão e sua significação exige que nós façamos uma aproximação do próprio ato pelo qual a expressão torna-se, pelo seu caráter de “intuição de significação”, um signo de comunicação. Novamente faz-se necessário combater certos prejuízos psicologistas, acerca dos quais se convencionou dizer que a expressão significativa tem a função elementar de despertar as imagens de fantasia na consciência. Uma expressão, nesse sentido, somente seria possível se encontrasse sua imagem correspondente da fantasia.

Essa concepção anula totalmente o caráter fenomênico da expressão, tornando-se dependente de um agente externo para se manifestar. Para o que nos interessa, é fundamental identificarmos a significação como o caráter do ato doador de sentido, de modo que o objeto se torne representável para nós e em nós. Nesse caso, é possível uma consciência de significação que não esteja vinculado necessariamente a uma intuição, e esta característica representa o próprio teor fenomênico do ato psíquico.

O significar não pode consumar-se somente por meio da intuição; senão, deveríamos dizer que o que vivemos numa parte incomparavelmente maior dos nossos discursos e leituras seria um simples perceber externo ou um imaginar de complexos acústicos e óticos. Não precisamos repetir novamente que isso contradiz o ‘conteúdo dos dados fenomenológicos, a saber, que, com os signos acústicos e grafados, visamos a isto e aquilo, e que esse visar é um caráter descritivo do compreender [...]. (HUSSERL, 2012b, pp. 58-59)

As análises feitas devem nos conduzir à evidenciação das relações a priori entre significação e conhecimento, relações estas, que são os fundamentos das descrições analíticas       

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Isso será retomado mais a contento em, “Investigações Lógicas VI” (2007a), “Elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento” e mesmo em “Lições sobre a teoria da significação” (2007b). 

da consciência, essenciais para a fenomenologia, no que diz respeito a esse período dos trabalhos de Husserl.

A caracterização do ato de significação se fundamenta ainda por sua “expressão objetiva”. Isso acontece, quando a simples pronunciação sonora identifica uma significação, independente das condições em que é anunciada. Elas possuem clareza no fato de serem enunciadas como ato de significação. As expressões objetivas são características também, por exemplo, em nível mais complexo, das expressões teóricas, ou mesmo das expressões em que se constroem princípios e teoremas. Elas estão relacionadas diretamente às constituições ideais do pensamento.

Na teoria do conhecimento, a significação, como unidade ideal do próprio conhecimento, nos coloca na direção da possibilidade de determinação do ser em si, do objeto, pelo conteúdo de suas verdades. “Tudo o que é, é ‘em si’ cognoscível, e o seu ser é um ser determinado quanto ao conteúdo, que se atesta nestas e naquelas ‘verdades em si’”.  (HUSSERL, 2012b, p. 75)

O que está referido ao conteúdo objetivo, por suas características próprias, se deixa determinar objetivamente, o que do ponto de vista ideal, se confirma pelas expressões de significação às suas determinações específicas verdadeiras. Esse caráter descritivo essencial, em que uma vivência torna-se unidade objetiva, é a própria expressão do caráter ideal das significações.

De fato, sempre que tratamos de conceitos, juízos, raciocínios, a Lógica pura tem que ver unicamente com estas unidades ideais, que denominamos aqui significações: e na medida que nos esforçamos por extrair a essência ideal das significações dos seus vínculos psicológicos e gramaticais, na medida em que, para além disso, temos em vista clarificar as relações apriorísticas de adequação à objetividade significada fundada nas essências, estamos já no domínio da Lógica pura. (HUSSERL, 2012b, p. 76)

Com essa definição de significação, o que se pretende combater é certa concepção de lógica, em que seu valor está na garantia nomológica, normativa de seus fundamentos. Enquanto que para a fenomenologia, o elemento fundacional de uma ciência está essencialmente no teor significativo de suas afirmações. O estudo realizado por Husserl, em “Prolegomena”, como vimos, procurou confirmar a essência da lógica como unidades essenciais de significação.

Assim, a validade objetiva do pensamento e suas conexões, dos conceitos e suas verdades, não se afirmam enquanto contingências do espírito humano, de nossa natureza psicológica, mas as descobre e as vê intelectualmente, por seu caráter lógico e ideal.

Independente de qualquer fundamento antropológico, a objetividade ideal está além de toda referência empírica. Husserl traça aqui de modo esparso as linhas gerais de sua concepção de ciência, que irá acompanha-lo até suas últimas obras64. Elas tratarão em especial de espécies puras, que a priori, se diferenciam no interior das significações, através de suas objetividades categoriais. Tudo o que é da ordem lógica, acaba se subtraindo em categorias de significação, fundamentando suas próprias leis ideais.

Quanto ao “conteúdo” de uma vivência de significação, ele pode assumir caráter fático ou ideal. Para a descrição fenomenológica, o que importa é tão somente seu caráter ideal. A diferença consiste em que, na primeira, ela apresenta uma composição variada, mudando de indivíduo para indivíduo, de perspectiva para perspectiva. Já o conteúdo, em sua caracterização ideal, é o mesmo, não apresentando qualquer variação interna. “A significação da proposição não se multiplica com o número de pessoas e de atos, o juízo é um, no sentido lógico ideal” (p. 83).

É importante deixar claro a estrita identificação entre a significação e seu conteúdo ideal, pois será sobre eles que se assentarão a compreensão de uma lógica pura. Por características próprias, as significações se dão em diferentes espécies, seja de sujeitos, predicados, de relação, conexão, etc. Elas devem possuir o mesmo caráter não empírico. Sua significação não está relacionada a qualquer “ser” real ou objeto perceptível, mas relacionados a objetos gerais, na validade de seus juízos. Sua idealidade é a sua “unidade na multiplicidade”.

Assim, a significação pela qual o objeto ideal é pensado e seu homônimo real, o próprio objeto, não coincidem necessariamente. O primeiro está referido sempre ao “seu mesmo geral”; o segundo, sempre a “seu mesmo individual”, com suas variações de manifestação espacial. Sua idealidade, totalmente independente, existe para além de qualquer contingência que o psíquico possa vir a se fundamentar.