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4.1 Da fenomenologia pura aos dados absolutos

4.1.4 Pressupostos da análise eidética

A segunda sessão de “Idées I” apresenta como “considerações fundamentais” os elementos da análise eidética, que especifica com maior propriedade num viés propriamente fenomenológico as características transcendentais da imanência, chegando-se, assim, nas fronteiras da redução fenomenológica129. Esses componentes que introduzem a análise eidética se fazem por sua oposição à atitude natural, que necessita, para se chegar a seus elementos puros, da suspensão de sua referência empírica.

Husserl elabora suas considerações negativas acerca dos objetos espaço-temporais, nos dados imediatos do mundo natural, como passo metodológico de liberação da redução eidética. Começa-se assim, a se esboçar a versão transcendental da consciência.

A essa altura da descrição da consciência como região eidética dos objetos puros, Husserl inicia um processo de distinção do “outro” que constitui tudo o que não se refere aos componentes da redução eidética, ou seja, o que deve ser posto “fora de circuito”. Esta expressão “fora de circuito” tem um peso capital na análise husserliana. Ela está referida não propriamente a objetos, mas a atos de consciência dados na intuição imediata, ou seja, revelados a partir da experiência, e que são postos em suspensão.

Estes dados imediatos da percepção estão sempre referidos ao ambiente em que está imerso o eu empírico. Eles possuem, assim, dois horizontes fáticos, o espaço e o tempo. O primeiro pela extensão que o mundo apresenta na sua doação à consciência, e o segundo pelo seu prolongamento temporal. Ambos os princípios se referem à tese do mundo natural, em que a redução eidética procurará ultrapassar.

A condição de se chegar à essência das vivências é que este mundo imediato dado em       

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A redução fenomenológica, se podemos estabelecer essa diferença, do ponto de vista do seu fim, é o “resultado” que se chega pela aplicação de um método à análise da consciência e suas vivências intencionais; do ponto de vista teórico, é a “aplicação” de um conjunto de análises resultantes deste mesmo método, levando-se em conta a correlação entre o “agente do conhecimento” e “objeto conhecido”. Averiguação nada simples de se conquistar. O que leva Ricoeur, com muita propriedade a afirmar na Introdução de “Idées I”, “O que desconcerta muito leitores de Ideen, é o mal-estar de dizer em qual momento se exerce efetivamente a famosa redução fenomenológica”. (p. XV, tradução nossa)

nossa experiência seja posto “fora de circuito”. O mundo revelado pela percepção está sempre “aí”, à disposição do eu empírico, como horizonte sempre presente, com suas características marcantes de indeterminação e obscuridade.

O que vem a ser dito mundo, considerado como a ordem dos seres em sua presença espacial, se aplica ao mundo considerado como a ordem dos seres na sucessão temporal. Este mundo está presente para mim agora – e igualmente está presente para todos no estado de vigilância – tem seu horizonte temporal infinito nos dois sentidos, seu passado e seu futuro, conhecido e desconhecido, imediatamente vividos ou privados de vida. Na atividade livre posta pela experiência e que faz emergir na intuição o que me é presente, eu posso acompanhar estas relações no seio da realidade que me rodeia imediatamente. Eu posso mudar de ponto de vista no espaço e no tempo, conduzir o olhar aqui ou ali, para trás e para frente no tempo; eu posso fazer nascerem em mim as percepções e presentificações sempre novas e mais ou menos claras e ricas de conteúdo, ou ainda, imagens mais ou menos claras, pelas quais eu dou a riqueza de intuição a tudo isso que é possível e pode ser conjecturado nas formas estáveis do mundo espacial e temporal. (HUSSERL, 1950a, p. 90, tradução nossa)

O mundo captado à nossa volta é o mundo da consciência vigilante, que está imersa e compõe o conjunto de coisas dados no espaço e no tempo. A característica desse mundo é sua utilidade e presteza imediata; ele está “aí” significa, antes de tudo, que ele está a nossa disposição como realidade (Wirklichkeit) dada. Trata-se de superar esse mundo descoberto pela experiência, que nos chega através dos atos imediatos da consciência, vivenciados de modo espontâneo, antes da descrição eidética130.

Ao constatar essa disposição da consciência de se engajar na vida natural, em sua modalidade espontânea e imediata, Husserl faz menção ao cogito pré-reflexivo, como disposição primeira da consciência em sua espontaneidade natural na vivência do mundo ao seu redor. É quando se volta sobre si mesma, que a consciência realiza a autorreflexão de suas vivências e as toma como seu objeto. Esse gesto de voltar-se sobre si é o primeiro passo dado em direção à redução. Até então, por impulso espontâneo de necessidade, se está imerso no mundo natural.

A posição da atitude natural se desenvolve sob uma concepção da realidade em que se formula tal atitude como “tese” de existência. Nessa, a realidade se apresenta faticamente, como algo dado de modo objetivo. “A realidade (Wirklichkeit), esta palavra já diz muito, eu a descubro como existindo e eu a acolho, como ela se doa a mim, igualmente como existindo” (p. 95).

      

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A atividade espontânea da consciência, segundo Husserl (1950a), se dá de diferentes modos, seja a “[...] observação dos objetivos científicos, a explicação e a elaboração dos conceitos aplicados na descrição, a comparação e a distinção, a coligação e a numeração, as hipótese e as conclusões, ou seja, a consciência no estado teórico, sob suas formas e graus mais variados” (p. 91, tradução nossa).

A “tese” da atitude natural, da qual se diferencia a posição da atitude fenomenológica, parte do pressuposto de que estamos face a face ao mundo dos objetos. Essa imposição de existência do mundo implica ser portador de resistências que nos impedem o acesso indubitável e absoluto à sua essência, que como tal, permanece impenetrável. Nesta realidade obscura a que se refere sempre à crença da posição naïf, o mundo é compreendido, de modo simples, pelo que nos é dado pela percepção imediata. A fenomenologia, pela redução, procurará superar esta posição, através da especificação do poder constituinte da consciência transcendental, em que o mundo vale pela constituição de seu sentido para nós.