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Considerações metodológicas fundamentais

4.5 A sobreposição na imanência entre psicologia eidética e a fenomenológica

4.5.1 Considerações metodológicas fundamentais

A consolidação da passagem de uma psicologia eidética a uma filosofia transcendental requer que o exercício metodológico em que essa passagem se consolida, pela análise intuitiva dos objetos puros, seja apropriada como caracteres da intencionalidade constituinte do conhecimento. Vimos, no segundo e terceiro capítulos, que o recurso metodológico a que se utilizava a fenomenologia, pelo viés negativo, se consolidava por sua diferenciação e crítica às ciências da natureza, em que o domínio de objetos se estabelecia em campos diferentes, um pelo empirismo e dedução, o outro pela intencionalidade e intuição.

preliminar não é mais suficiente, sendo necessário estabelecer a consciência constituinte como fundamentação da própria ascensão do transcendental142. Essa ascensão não é, de todo, evidente, e sua consolidação começa pelo estabelecimento da consciência como um campo a

priori de investigação de objetos puros (HUSSERL, 1950a, p. 211). Não se trata mais, porém,

da ‘suspensão’ de objetos e de sua redução à vivência da consciência, mas de investigar a própria consciência e sua condição de possibilidade de que tais objetos puros tenham nela a condição e a garantia de sua manifestação.

“Se ela (a fenomenologia) quer ser uma ciência no quadro da pura intuição imediata, uma ciência eidética puramente ‘descritiva’, seus procedimentos mais gerais são dados como emergindo plenamente de si” (p. 241, tradução nossa).

A diferença metodológica da fenomenologia em relação às ciências da natureza revela- se já na sua prática e execução de seu procedimento investigativo, no exercício meticuloso em que, colocando fora de circuito a si mesma, faz emergir os dados da consciência pura. Essas vivências são objetos da análise fenomenológica que, por sua retroreferência a si, atingem não só a idealidade dos objetos a que se propõem investigar, mas a própria idealidade da consciência e suas condições de possibilidades ideadoras.

Somente a partir dessas condições a priori de manifestação da consciência que se pode falar de objetos puros da vivência como dados indubitáveis e verdadeiros, numa clarividência que se fundamenta pelo exercício metódico em que todo dado só pode ser garantido em sua manifestação pura, se as condições a priori da consciência estiverem contidas na execução desse exercício e da inflexão do olhar à sua manifestação pura. No entanto, a redução, que garante o acesso às vivências puras da consciência, como observa Fink (1966), não se reduz simplesmente à aplicação de uma técnica.

“A redução não é a instalação técnica de uma atitude de conhecimento, que estabelecida, o é uma vez por todas, e que é suficiente adotar para percorrer em seguida um domínio que se estende a um único e mesmo nível. A redução é ao contrário, tema permanente, incessante da filosofia fenomenológica”. (p. 155,  tradução nossa)

      

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Em relação à parte metodológica, para Husserl, pelo próprio caráter do objeto da fenomenologia, ela não pode contar em nada com o método das ciências da natureza, “[...] uma experiência ininterrupta, o exercício milenar do pensamento nos deixou familiar, segundo suas múltiplas propriedades, seus elementos e sus leis. Tudo o que é desconhecido constitui horizonte de conhecimento. Todo esforço de método se aplica a seus dados, todo aperfeiçoamento de método em seu método já praticado; em geral trata-se simplesmente de desenvolver métodos especiais que se seguem às exigências preliminares e imperiosas de um método científico já aprovado e encontrar um fio condutor para seu trabalho de descoberta” (HUSSERL, 1950a, p. 210, tradução nossa).

A essencialidade de toda vivência, como “proximidade absoluta” do objeto no ser de sua manifestação, não é garantida, assim, pelo simples exercício progressivo do método, mas pelas condições que se antecipam de toda experiência empírica e objetiva da consciência.

Pela disposição gradual e metodológica do exercício da redução, é possível alcançar uma apreensão perfeitamente clara, em que a essência seja dada com uma certeza absoluta. Estamos nos referindo, principalmente, a atos da percepção, em que a intuição, mesmo se referida a um objeto individual, pelo correto percurso metodológico, pode atingir sua eidética pura. Husserl faz, porém, uma distinção importante entre as percepções, aquelas que estão referidas a objetos externos que, embora sejam um modo de presentificação, são inadequadas pelo caráter de obscuridade que ainda persiste em sua manifestação, e aquelas produzidas pela “imaginação livre” que, embora sendo uma percepção, possuem o mérito de ultrapassar toda posição presentificadora do mundo dos objetos (HUSSERL, 1950a, p. 225).

Mas, a “imaginação livre” como recurso perceptivo de acesso a objetos puros, não é somente mérito da fenomenologia; outras ciências se valem de seu uso para se apropriarem do objeto de seus domínios. O primeiro exemplo dado é do geômetra, “[...] no percurso de suas investigações, recorre incomparavelmente mais a imaginação que a percepção quando considera um a figura ou um modelo”143 (p. 225, tradução nossa). Valem-se do mesmo recurso da “imaginação livre” a arte e a poesia, o que se determina pela ficção no exercício da imaginação artística como poética. Husserl chega a afirmar mesmo que a ficção constitui elemento vital da fenomenologia.

Podemos tirar uma parte extraordinária de exemplos fornecidos pela história e, em uma medida mais ampla, pela arte e em particular pela poesia; sem dúvida são ficções; mas a originalidade na invenção das formas, a riqueza dos detalhes o desenvolvimento sem lacuna da motivação, as leva muito acima das criações de nossa própria imaginação; a potência sugestiva dos meios de representação do qual dispõe o artista lhe permite de se transpor com um particular deleite nas imagens perfeitamente claras a partir de que as toma e as compreende. [...] a ‘ficção’ constitui elemento vital da fenomenologia como todas as outras ciências eidéticas; a ficção é a fonte onde se alimenta o conhecimento das verdades eternas”. (p. 227, tradução nossa)

Mais que uma comparação entre essas diferentes ciências e suas similaridades ao recurso ficcional, o que Husserl deseja é estabelecer a possibilidade do acesso à essencialidade de vivências, em que a ficção, como recurso cognitivo da abstração, pode se       

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É importante levar em consideração, que embora as análises de Husserl tenham por pressuposto os resultados obtidos pela matemática e pela lógica, que são objetos das ciências eidéticas formais, a fenomenologia leva em conta as ciências eidéticas materiais, que conduz ao problema da região, como problema primeiro da análise fenomenológica, pelo retorno ao ser que realiza a intuição ideadora (HUSSERL, 1950a, p. 42 e 231).

tornar um dado fenomênico à análise das ciências eidéticas. Em que pesem as diferenças, a ficção é para a literatura e para a arte a condição de sua realização; já para a fenomenologia, é a condição de sua compreensão e de sua constituição.

No que toca ainda a questão do método e do objeto da ciência fenomenológica, fundamental na constituição de sua imanência específica, embora ela mantenha certa familiaridade com outras ciências eidéticas, como as ciências eidéticas formais, sejam a matemática ou outras disciplinas exatas, mesmo regidas pela busca e fundamentação do ‘eidos’, essa eidética é constituída pelas essências materiais, totalmente distintas das essências formais, como ocorre com a anterior. Onde uma pode ser regida pelo sistema definido de axiomas, a outra é regida pelo gênero supremo de objetos de uma região específica de ser que independe de axiomas de verdade para ter sua validade constituída.

Nos quadros da atitude fenomenológica, a ciência eidética material pretende ser uma teoria descritiva de essência das vivências puras da consciência; a matemática, embora possa alcançar, do mesmo modo, certo eidos, é totalmente distinta do eidos material da fenomenologia.

É um prejuízo sem fim acreditar que os métodos aplicados pelas ciências a priori historicamente conhecidas e que são exclusivamente as ciências exatas conduzidas sob objetos ideais, devam servir sem outro exame a todas as novas ciências a priori e sobretudo a fenomenologia transcendental – como se pudesse ter, do ponto de vista do método apenas um tipo de ciências eidéticas, aquelas das ‘exatas’. A fenomenologia transcendental, concebida como ciência descritiva de essências, pertence a uma classe de ciências eidéticas que difere totalmente das ciências matemáticas. (p. 241, tradução nossa)

A palavra “descritiva” aqui, aplicada à fenomenologia, não pode assumir o mesmo significado de “descritiva”, de “Investigações Lógicas”. Nesta, estava referida diretamente às ciências lógicas de objetos apreendidos realmente (reell) na consciência imanente. Aqui, aplicada à redução ou a suspensão de toda a realidade, trata de descrever os objetos puros pelo retorno à intuição ideadora que torna possíveis esses mesmos objetos. Constitui-se, assim, uma diferença fundamental na concepção da imanência, que permite a realização da passagem de uma psicologia fenomenológica a uma filosofia transcendental.