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4.1 Da fenomenologia pura aos dados absolutos

4.1.1 Variações acerca da essência

O que se vê no plano geral da relação e distinção entre ciência empírica e ciência fenomenológica, constituído pela conversão do olhar e da mudança de atitude, se estabelece, no plano específico, pelo domínio de objetos distintos, uma por meio da análise empírica do fato, e a outra pela sua correspondente análise de essência (Eidos). Sendo esta essência o que há de mais íntimo e singular em uma percepção, o “seu o quê” (sein Was) da coisa percebida.

Na percepção nós temos, pela qualidade do objeto dado, uma intuição individual, que pode ser convertida idealmente em uma visão de essência que, em relação ao seu correlato empírico, devido a sua constituição, se apresenta fenomenologicamente com estatus superior. Essa visão de essência pode ser adequada, se ela de fato alcança o sein Was imutável do correlato natural; ou inadequado, se ela necessita das variações laterais pelas quais o objeto é tomado em sua doação parcial, ou por seus esboços infinitos de apreensão possíveis.

No processo de apreensão pura, independente da adequação ou inadequação de uma percepção, a essência, o Eidos, pode ser alcançado a partir de uma intuição individual, pelo simples fato do caráter doador de seu objeto. Havendo, inegavelmente, entre intuição e objeto, uma correlação e correspondência à análise eidética.

A essência (Eidos) é um objeto (Gegenstand) de um novo tipo. Igualmente na intuição individual ou intuição empírica o dado é um objeto individual, igualmente o dado na intuição eidética é uma essência pura. Não há ali uma simples analogia exterior, mas uma comunhão radical. A intuição de essência é também uma intuição e o objeto eidético é também um objeto (HUSSERL, 1950a, p. 21, tradução nossa)

Há correspondências no modo de apreensão entre intuição empírica e intuição de essência, pois ambas, embora o objeto seja tomado e apreendido em níveis diferenciados e com estatutos ontológicos distintos, se referem à consciência de um objeto doado em sua individualidade e singularidade. A intuição de essência acaba fornecendo a própria visão de essência do objeto em sua ipseidade, em que uma intuição se sobrepõe à outra, passando do nível perceptivo ao nível eidético.

As distinções eidéticas entre a existência (Existenz) e a essência (Essenz) de um objeto dado, entre Fato e Eidos, estabelecem a própria distinção dos conceitos que operam em suas relativas análises descritivas e intuitivas123. Uma permanecendo na operação descritiva de um       

123

Fixando essa distinção, Breda (1959b, p. 312) relaciona em sua leitura de Husserl, o Sein e a Existenz ao dado material de um objeto: “Para Husserl, Sein e Existenz são noções que se relacionam diretamente ao estatuto ontológico do mundo material da natureza em sentido amplo. Crer no ser e na existência de um objeto, é lhe

objeto individual, enquanto a outra avança na apreensão invariante do objeto percebido. Embora Husserl desenvolva a possibilidade de ilustrar o Eidos ou a pura essência pela correlação com os dados da experiência, seja da percepção, seja da lembrança, etc., estas, embora importantes, não constituem a forma mais original e pura da apreensão eidética, que só seria alcançada pela ficção ou pela fantasia (Phantasie), as únicas capazes revelar diretamente a verdadeira essência de um ato. A fantasia permite, assim, por seu caráter próprio, alcançar seu núcleo invariante eidético, independentemente de sua experiência anterior. “É, portanto, indiferente que uma essência desse gênero seja efetivamente dada ou não em uma experiência” (1950a, p. 25, tradução nossa).

Assim, os dados que alimentam a fantasia jamais terão como ponto de referência e sustentabilidade os dados reais (Wirkliche), ou mesmo da existência ou não do objeto referido eideticamente. A verdade pura de essência não tem, desse modo, a menor referência para sua composição eidética nos dados oriundos dos fatos. O acesso à essência pura depende única e exclusivamente da visão de essência de uma percepção, sendo o eidos seu único fundamento.

Para alcançar a visão de essência, Husserl faz uma distinção sutil, mas importante, nas especificações das análises acerca da essência. As diferenças estão relacionadas a juízos sobre essências, que os transformam em objetos, e juízos dotados de validade universal, transformados em conhecimento de validade eidética. As essências se referem a conhecimento constituído não a partir de objetos específicos, individualizados, mas a essencialidades universais indeterminadas.

Os juízos dotados de validade universal têm primazia na análise eidética, por não partir de nenhum caso particular ou individual para ascender a seu Eidos. As intuições de essência, por mais válidas que sejam, estarão sempre, por sua referência a um objeto, vinculadas a uma experiência. Já os juízos de validade universal estão sempre referidos ao “geral”. “Assim, em geometria pura, nós não julgamos geralmente sobre o Eidos da reta, do ângulo, do triangulo, da seção cônica, etc., mas sobre a reta e o ângulo em geral [...]” (p. 26, tradução nossa). Estes exemplos tirados da geometria, ilustram a essência de modo mais geral e pura, ou no dizer de Husserl, a essência mais “rigorosa” e “absolutamente incondicional” (p. 26). Valor eidético semelhante reporta-se sobre a Phantasie, como vimos acima, por nunca se referir a um objeto contingente.

       atribuir um modo de ser semelhante e análogo aquele da coisa material. É isso que faz o homem na atitude natural; é ali que, como tese universal, vicia radicalmente esta atitude. [...] A existência nessa visão é antes de tudo o fato de estar aí, de ser disponível (vorhanden-Sein) a cada momento na sua totalidade material, de poder ser abordado à vontade; em uma palavra, de possuir todas as qualidades que Husserl atribui ao ser material, uma vez constituída”. 

Essas situações são suficientes para termos um ponto de referência acerca do Eidos e do conhecimento de essências a que se refere à fenomenologia ao tratar de uma característica específica da imanência.