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3.1 O surgimento da epoché fenomenológica pela dúvida cartesiana

3.1.1 Ordem de validade dos objetos imanentes

Começa-se, a partir da dúvida cartesiana, a se fazer uma série de distinções de conceitos importantes, que assumem significados diferentes, ora para as ciências empíricas, ora para a fenomenologia. Para os conceitos que serão utilizados, visaremos já seu significado tendo em vista o projeto de “suspensão do mundo natural”, da epoché fenomenológica, e das questões a que elas estão envolvidas.

Um dos conceitos que evoluiu e se transformou em conformidade com a evolução do pensamento husserliano é o da própria imanência. Conceitos diferentes de transcendência exigem conceitos respectivamente opostos de imanência, como vimos acima (Huss. II, 1950b, p. 35). O sentido estrito de imanência está relacionado à redução fenomenológica, ou, ao que permite que esta chegue a seu pleno cumprimento como suspensão da tese do mundo.

A imanência, como lugar de manifestação possível do transcendental, está assim relacionado com o que permite captar, em seu sentido absoluto, o objeto de forma clara e distinta, com a “presença-em-pessoa” deste mesmo objeto, o que nas ciências empíricas, diferentemente, é dado de forma enigmática e obscura. No ato de conhecer, na cogitatio mais exatamente, o fenômeno cognitivo está livre do enigma da transcendência.

Também é claro que as ‘cogitationes’ representam uma esfera de dados imanentes absolutos, em qualquer sentido que nós interpretamos a imanência. Em uma visada (Im Schauen), portanto, sobre os fenômenos puros (reinen Phänomens), o objeto não se encontra fora do conhecimento, fora da consciência (Bewuβtsein), e ao mesmo tempo ele se encontra dado em sentido absoluto presença-em-pessoa que caracteriza o que é o objeto de uma pura visada. (p. 43, tradução nossa)

A partir disso, a questão que era colocada pelas ciências naturais e pelo psicologismo, de como alcançamos os objetos transcendentes pelo conhecimento, não possui na fenomenologia qualquer sentido, pois estamos na esfera onde os objetos nos são dados como fenômenos de significação, circunscritos ao ambiente de domínio das cogitationes. Essa esfera e este ambiente exigem que seja dado um outro tratamento aos objetos, que essencialmente não possuem qualquer resquício do mundo empírico.

A redução fenomenológica, ou teoria cognoscitiva, como trata por vezes Husserl, não é propriamente o resultado final das cogitationes, mas é o ato pelo qual as torna realizável, assegurando sua fundamentação na imanência, pelos atos psíquicos puros. Entendendo a

natureza metodológica desta redução, é possível compreender de modo mais satisfatório seu alcance epistemológico e as diferenças que se colocam entre fenomenologia e psicologismo.

O primeiro passo na constituição deste método é afastar de modo crítico todas as terminologias, conceitos e objetos que tenham relação direta na definição das ciências psicológicas e que, pela redução, passam a assumir outro significado para a fenomenologia. É necessário dar atenção à diferença de significação de termos como “ser”, “percepção”, “fenômeno”, “objeto”, “imanência”, “transcendência”, pois são termos que duplicam seu significado, ao que pertence à esfera da transcendência, do que pertence à esfera de objetos ideais. A epoché, assim, nos possibilita alcançar e estruturar metodologicamente, a partir de uma terminologia específica, o que denominamos de fenômenos puros, e a tudo o que ele está envolvido pela crítica do conhecimento.

O fenômeno puro se manifesta a partir da suspensão de toda ordem natural. Husserl apresenta, dois acessos para alcançar a redução. O primeiro seria pôr entre “parênteses” tudo o que é transcendente, no que estaria envolvido o “eu” e o “mundo”, e a segunda via, que tomaria diretamente a percepção visada.

Neste caso, para obter o fenômeno puro, me é necessário novamente por em questão o eu (Ich), igualmente o tempo (ebenso Zeit), o mundo (Welt), e fazer assim sair o fenômeno puro, a cogitatio pura. Mas eu posso também, ao passo que percebo, levar sobre a percepção o olhar de uma pura visada: sobre a percepção em si mesma tal que ela é, e deixar a relação ao eu de lado, ou fazendo abstração: então a percepção tomada e delimitada em uma tal visada é uma percepção absoluta, desprovida de toda transcendência, dada como fenômeno puro no sentido da fenomenologia (im

Sinne der Phënomenologie). (p. 44, tradução nossa)

Deste modo, o que Husserl deseja salientar, e o próprio método deseja evidenciar, é que para cada ato perceptivo, seja ele de qualquer ordem, que segue a vivência psíquica, há de modo correspondente, pela via da redução, um fenômeno puro e uma vivência desta ordem. Obviamente, como já mencionado, a ordem de validade dos objetos puros não está na confirmação e adequação de sua existência transcendente, mas tão somente, em sua validade significativa e ideal96.

Aparentemente, até mesmo por uma questão metodológica, é importante salientar, Husserl cria uma espécie de oposição terminológica, conceitual, e mesmo estrutural, para distinguir os campos que envolvem a natureza e o psíquico, do fenomenológico. Esse oposicionismo acompanhará praticamente toda “Die Idee der Phänomenologie”, o que       

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Como nos diz Benoist (1994, p. 13, tradução nossa), “A consciência é perpétua apropriação. Ou seja, que ela é perpétuo reencontro da vida consigo mesma. A vida se arranca de si mesma apenas para voltar a si. É desta centralização da consciência que provem a necessidade de falar do eu transcendental”.

deverá, evidentemente, ser tomado como recurso metodológico, pela própria natureza da obra, e ser superado por uma visão mais abrangente e totalizante do método fenomenológico, de modo que a reflexão decorra, exclusivamente, a partir e dentro desta esfera de problemas.

Com essas considerações, o campo de oposições fica assim estabelecido: de um lado, temos o campo do transcendente e seu referente, os fenômenos psíquico, que possuem o caráter duvidoso e obscuro do conhecimento, a que pertencente à ciência da natureza e o psicologismo; do outro lado, temos o campo da imanência e seu referente, os fenômenos puros, que possuem o caráter de evidência pura, a presença-em-pessoa do objeto intuído, pertencente à fenomenologia. A redução visa constituir, fenomenologicamente, a passagem obrigatória dos dados do primeiro campo ao segundo. Do ponto de vista epistemológico, o primeiro campo não diz nada ao segundo, já este, por suas intuições puras, pode servir de fundamento à psicologia e às ciências da natureza.

A metafísica cartesiana e kantiana ousou fundamentar conhecimentos puros, mas não conseguiu superar as fronteiras do psicologismo (Huss. II, 1950b, p. 48). Já a fenomenologia, como teoria do conhecimento, como doutrina estabelecida, deseja alcançar a essência dos fenômenos cognitivos puros. Para que isso aconteça, é necessário, além de estabelecer suas leis e normas internas, pôr em suspensão tudo o que não diz respeito a esta idealidade signitiva dos objetos97.

O campo, ou este fluxo de consciência, ao qual se refere à imanência fenomenológica, lança-nos, ao mesmo tempo, na esteira da percepção reflexiva, através das suas cogitationes. O estatuto da imanência que baliza nosso objeto de pesquisa é ele próprio o fundamento que possibilita uma análise fenomenológica da percepção reflexiva, em sua idealidade e forma própria, atingindo o que há de mais puro e genuíno em um fenômeno. Assim, a fenomenologia tem como pressuposto, como dado a priori, as ideias mais gerais acerca dos objetos, visando alcançar e analisar sua essencialidade. Neste item específico, sem levar em conta desdobramentos posteriores, a fenomenologia se define como ciência e método do conhecimento, que se especifica no quadro da imanência pura.

Como ciência do conhecimento, a fenomenologia se define como crítica da razão. Ela procura estabelecer o “como” que os objetos podem ser dados em si mesmos, seus princípios e as formas de doação na consciência, distinguindo, analiticamente, os múltiplos tipos de       

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Como afirma Husserl, acerca do duvidoso e do evidente numa percepção, “Nós não compreendemos como a percepção pode atingir isto que é transcendente; mas nós compreendemos como a percepção pode atingir isto que é imanente, sob a forma de percepção reflexiva e puramente imanente, sob a forma de percepção reduzida” (Huss. II, 1950b, p. 49, tradução nossa).

fenômenos no que se refere a sua estrutura perceptiva. Não se trata de qualquer imanência, mas distintamente, do sentido intencional a que ela está referida.

Husserl visa, assim, estruturar tanto quanto o “como conhecemos”, pela crítica da razão, quanto o “que conhecemos’, pela análise das vivências intencionais. Trata-se, do que já nos referimos anteriormente, de estabelecer o a priori da correlação, pela via da análise da essência do conhecimento, especificamente no que se refere aos fenômenos. O objeto reduzido, ou a cogitatio reduzida, se apresenta como dado absoluto, não como ser singular, mas como fenômeno de qualquer coisa que se doa em sua essencialidade. Pode-se utilizar, para ilustrar esta passagem do individual ao fenomenal, do concreto à essência, percepções simples.

Eu tenho uma intuição singular (Einzelanschauung), ou várias intuições singulares, do vermelho, eu mantenho a imanência pura, eu me atenho na redução fenomenológica. Eu subtraio isto que o vermelho significa de outro modo, como o que ele pode ser apreendido aqui de modo transcendente, por exemplo, como o vermelho de um mata-borrão sobre minha mesa, ou outras coisas semelhantes, e agora eu realizo, de modo puramente intuitivo, o sentido do pensamento: vermelho em geral, vermelho em espécie, digamos o universal idêntico que o visado disto e daquilo lá; este não é mais agora o objeto singular enquanto tal que é visado, não mais este ou aquele, mas o vermelho em geral. (Huss. II, 1950b, pp. 56-57, tradução nossa)

Alcançar o essencial e o mais geral dos objetos dados por meio de uma percepção é a grande tarefa que a fenomenologia se põe a realizar. O que se constata é que, de toda coisa singular ou reell, pode-se chegar, pela aplicação correta de um procedimento, a sua essência e a sua característica mais geral.

Ao percorrer esta via do esclarecimento de essências intuitivas gerais, Husserl deseja chegar a um nível de complexão maior na fenomenologia, que é o esclarecimento do próprio encadeamento teleológico do conhecimento. A essência dos fenômenos constitui a base dos objetos individuais, que se revelam pela redução fenomenológica. No ponto último deste método, está à própria esfera de evidência pura que deve envolver toda teoria do conhecimento. Assim, o interesse da pesquisa fenomenológica não se reduz apenas a descrever os momentos pelos quais se submete à ideação os fenômenos e os momentos em que um objeto se doa à consciência, mas de descrever a gênese e os princípios teleológicos em que o fenômeno no conhecimento acontece, como dado mais íntimo do ser.

Isso vale para todo ato de percepção, como vale para todo ato de imaginação, o princípio de suspensão é o mesmo. É possível, por meio de uma imaginação qualquer, alcançar a consciência geral desta imaginação, seu conteúdo intuitivo ou sua essência

singular. O objeto deste modo, tanto na percepção como na imaginação, não são propriamente os atos de pensamento, mas necessariamente, se constitui e depende deles. Por meio deles, o objeto vem à evidência pura.

Esta casa é uma transcendência (Transzendenz) e cai, quanto a sua existência (Existenz), sob a redução fenomenológica (phänomenologischen Reduktion). O que é verdadeiramente doado com evidência é o aparecer da casa, esta cogitatio, emergindo e se escoando no fluxo de consciência. Neste fenômeno da casa, nós encontramos um fenômeno do vermelho, um fenômeno da extensão, etc. Estes são dados da evidência (Das sind evidente Gegebenheiten). (Huss. II, 1950b, p. 72,  tradução nossa)

O que estamos vendo agora é uma passagem importante da descrição fenomenológica, do “como” conhecemos para “o que” conhecemos, o estatuto de constituição do próprio objeto intuído. O caráter de evidência e o caráter de verdade implícito aqui possui o mesmo princípio originário. Assim, o existir que está implicado no objeto transcendente, também está no imanente puro. Porém, o objeto vivenciado existe numa outra condição, de modo ideal, sendo dado na própria teia do fluxo de consciência.

Husserl usa vários exemplos para mostrar esse caráter de doação pura do objeto intencional, pertinente tanto à percepção, à imaginação e mesmo à fantasia. Seja que eu imagine “São Jorge lutando contra um dragão”, seja na fórmula simbólica 2 x 2=4, seja numa expressão “quadrado redondo”, embora por atos diferentes, na descrição fenomênica destes atos, temos uma evidência intuitiva pura de suas diferentes constituições essenciais (Huss. II, 1950b, p. 73, tradução nossa). A fenomenologia visa, de modo intuitivo, deixar inteligível a essência da constituição dos objetos, que é seu próprio caráter intencional.

O que acabamos de ver, mais do que um conjunto final de soluções, são situações fenomenológicas emblemáticas que exigem seu pleno esclarecimento e aprofundamento. Estamos, de modo processual, na esteira das determinações gerais do pensamento fenomenológico, que é marcado por um caráter evolutivo de seus conceitos centrais. A “Ideia de fenomenologia”, como formulação epistemológica, exige outros elementos de crítica para sua fundamentação plena e radical, em oposição às ciências da natureza. O que pretendemos fazer daqui em diante tomando a direção das descrições ideais e puras.