• Nenhum resultado encontrado

A referência da consciência e suas modalidades

2.2 Sobre certas propriedades das vivências intencionais

2.2.1 A referência da consciência e suas modalidades

A psicologia, no intuito de descrever seus objetos de investigação, faz uso de certa concepção de consciência em que pretende alcançar e tomar o ato psíquico como dado empírico. A descrição fenomenológica, diferentemente, pretende alcançar este mesmo ato, mas com vistas à sua essência fenomênica. A diferenciação toma a sua forma, entre outros motivos, pela própria definição que ambas dão à consciência.

Para caracterizar essa diferença, partiremos de certa concepção de consciência tomada pelo psicologismo, da qual a fenomenologia procurará se desvincular e superar. Isso decorre, motivado em grande medida, pelas limitações na definição de ato psíquico dadas pelas ciências psicológicas. A concepção da psicologia define, de modo geral, a vivência da consciência como unidade real66, o que a fenomenologia se oporá de modo veemente.

A psicologia como ciência dos conteúdos da consciência define a vivência e seu conteúdo, como ocorrência de fatos reais, sendo esta unidade das vivências em suas múltiplas formas, modos e propriedades que compõe a própria unidade do indivíduo psíquico:

Neste sentido, são vivências ou conteúdos de consciência as percepções, as representações da fantasia e as representações de imagem, os atos do pensamento conceitual, as suposições e dúvidas, as alegrias e as dores, as esperanças e temores, os desejos e as volições, e coisas semelhantes, tal como tem lugar na nossa consciência. (HUSSERL, 2012b, p. 296)

A fenomenologia, embora voltada às mesmas questões, fará outra abordagem do psíquico, em que, desconsiderada a análise de conteúdos concretos e sua referência empírica, tomará estes mesmos conteúdos e estas mesmas referências em sua pura idealidade, referendada pela consciência, em sua caracterização própria como intencional67. Há, nesta altura, uma mudança radical realizada por Husserl na análise da vivência, da leitura empírico- fenomenológica feita pela psicologia descritiva, passa-se a uma leitura fenomenológica pura       

66

Na língua alemã, muito utilizada por Husserl em “Investigações Lógicas”, há distinções importantes no significado da palavra ‘Real’, que ora aparece como ‘Real’, como designação objetiva da vivência, ora como ‘Reell’, designando a vivência descritiva pura, o que em linhas gerais caracteriza a própria passagem da psicologia descritiva à fenomenologia descritiva (HUSSERL, 2012b, p.5). Em “Idées I” ambas as definições serão superadas por uma definição transcendental da vivência fenomenológica.

67

Esta interpretação psicologista está na base da análise de Wundt (1886, XXVIII, tradução nossa), especialmente em “Éléments Psychologie Phisiologique”, quando ele trata, “[...] pois, a escola psicologista alemã empresta geralmente à psicologia os recursos da experimentação, e os problemas que ela submete à experimentação, são essencialmente psicologistas. Sem dúvida, a primeira sessão de meu livro parece contradizer esta linguagem, já que esta parte trata somente de fatos mecânico-fisiológicos, que se referem a sistemas nervosos. Mas, uma exposição de bases fundamentalmente físicas da vida psíquica pertence certamente, para mim, à psicologia; e de outra parte, nenhuma descrição fisiológica do sujeito, que corresponderia ao fim psicologista, de modo que ela possa ali se destacar, me era conhecida”.

dos objetos ideais, que se consolidará posteriormente, com maior soma de detalhes da consciência intencional, em “Idées I”.

A diferença entre a descrição do objeto a partir do psíquico e a partir do fenômeno puro pode ser feita ao se analisar uma percepção externa, por exemplo, o momento da sensação cor, exemplo recorrente de Husserl. Essa percepção nos oferece o elemento real de um ato de visão e seu conteúdo vivenciado. Distinto deste está o próprio objeto e sua coloração, que não é vivenciado e nem está na consciência, constituindo uma realidade a parte da vivência psíquica, podendo, por sua variação posicional ser mais ou menos completa, mas nunca uma vivência plena.

Há uma diferença fundamental entre a captação da “sensação de cor”, de âmbito fenomenológico, e a coloração objetiva do objeto, de ordem empírica. A sensação cor é sempre o momento fenomenológico qualitativo, que se refere a sua idealidade essencial, diferente da análise psicológica, voltada não à essência, mais ao fato em si.

Husserl sustenta que a diferença de percepção entre “sensação de cor” e “coloração objetiva do objeto”, não é simplesmente reduzida ao modo de consideração perceptiva, sendo a mesma aparição, variando somente o sentido que lhe é dado. A diferença é que de um lado está o referente subjetivo e seu vínculo ao eu, e do outro lado o referente objetivo e seu vínculo ao objeto externo. Embora em ambas as vivências possa se fazer referência ao objeto empírico, isso não impede a captação ideal do objeto. Temos aqui duas modalidades vivências ligadas à mesma aparição, que não são propriamente fenomenológicas, a vivência em que consiste o aparecer do objeto à consciência, mas que é concebido enquanto algo reell, e aparição do objeto enquanto tal. A análise fenomenológica procura ir mais longe, se concentrado somente na vivência da aparição.

O engano deste equívoco desvanece-se assim que damos fenomenologicamente conta do que, do objeto que aparece, se pode encontrar realmente na vivência da aparição. A aparição da coisa (a vivência) não é a coisa que aparece (o que presumivelmente se nos ‘depara’ na sua ipseidade em carne e osso). Vivemos as aparições como pertencentes à tessitura da consciência; as coisas aparecem-nos como pertencentes ao mundo fenomênico. As próprias aparições não aparecem, são vivenciadas. (HUSSERL, 2012b, p. 298)

O que se pretende atingir é este “conteúdo” último da vivência. Para tanto, é necessário romper duas concepções que se contrapõem à análise fenomenológica, ligadas tanto ao sujeito como ao objeto. Este sujeito, assim como os objetos que aparecem a ele, são tomados em sua fenomenalidade, mas existem como coisas, como fato empírico. O “eu” e o

“conteúdo” que por ele pode ser vivenciado, não possuem nada de ideal, são restritos a sua existência empírica.

A fenomenologia trata de conteúdos de consciência, mas em outro nível de descrição, no sentido de vivências puras. Sendo a consciência tomada como unidade dos conteúdos de consciência, “Trata-se, ali, da relação entre duas coisas aparecentes; aqui, trata-se antes da relação de uma vivência singular com a complexão das vivências” (p. 299).

A análise fenomenológica toca na singularidade de uma vivência, não na sua individualidade. A primeira é universal e ideal, a segunda, particular e empírica. Assim, a vivência pura não é algo que aparece à consciência, mas a expressão ultima ideal do que é vivenciado pela consciência. De modo geral, ela seria o complexo de sensações vivenciadas na aparição que, na atitude fenomenológica, faz aparecer e concede significado ao próprio objeto.

O sentido de consciência como fenômeno real (Real), criticada por Husserl, se apresenta desse modo, porque a ideia de vivência é do tipo empírico. Essas vivências são tomadas como acontecimentos que, como tais, são compreendidas fazendo parte da consciência, como vivências psíquicas, enquanto elementos reais de sua constituição.

Já a consciência fenomenológica, por sua propriedade singular, encontra em si, “[...] os atos correspondentes do perceber, do julgar etc., juntamente com seu material de sensação sempre mutante, e o seu teor de apreensão, os seus caracteres posicionais” (p. 300). Essa disposição apreendedora da consciência será em breve descrita por Husserl, em “Idées I”, a partir dos conceitos de noese e noema. No momento, a consciência é apresentada somente, como possuindo este caráter distintivo do “não empírico”, não entrando nos detalhes de sua constituição transcendental.

Assim, no nível mais elementar da consciência fenomenológica pura, vivenciar consiste na capacidade da consciência de transformar qualquer experiência perceptiva em vivência ideal de objetos. Essa capacidade, quer dizer, em última instância, que os conteúdos de uma consciência são elementos integrantes de sua unidade.

Para ser pura, uma vivência não se distingue idealmente de seu objeto, como afirma Husserl (2012b, p. 300): “[...] o que é sentido não é nada diferente da própria sensação”. Ao se identificar o “conteúdo sentido” à “sensação”, deseja-se tomar o objeto da vivência a partir de sua idealidade, como elemento unificador da consciência.

Para não confundir a abordagem psicológico-descritiva com a análise fenomenológica pura, Husserl recorre a uma minuciosa separação entre o “eu natural-empírico”, e o ‘eu

fenomenológico. Para ele, este último não é nenhuma realidade peculiar que paira sobre as vivências, mas tão somente, o elemento de unidade de todas as vivências. O eu reduzido fenomenologicamente seria o catalizador de todos os conteúdos vivenciados por uma consciência. Ao se definir a consciência como intencional, o caráter unitário do eu fica, do ponto de vista fenomenológico, mais evidente, por não criar dualidade entre a percepção e o que é percebido. Há ainda alguns detalhes correspondentes à consciência e suas vivências que ajudarão a compreender com mais riqueza de detalhes seu caráter intencional, em sua fundamentação e caracterização ideal.