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1.1. Na escola da matemática

1.1.1 Aproximação com o psicologismo

O primeiro e único volume que trata das questões essencialmente psicológicas está voltado para a análise de conceitos de “quantidade”, de “unidade” e de “numeração”, enquanto objetos de doação à consciência, que não se reduziriam à simbolização. O estudo do número evidenciou seus pressupostos lógicos, que estão ligados diretamente à ordem do sentido, de natureza psicológico-subjetivista, inseparáveis das considerações feitas, até então, pela psicologia.

Em “Philosophie de l’Arithmétique” (1891), Husserl assume a tradição filosófica relacionada ao estudo da matemática, fazendo uma longa digressão, passando por vários matemáticos e lógicos, para tentar estabelecer seu próprio parâmetro, a partir de uma análise psicológica, acerca do conceito de “número”17. É importante nos atermos neste estudo e percebermos que o intuito de Husserl neste período não é propriamente reformular ou revolucionar o estudo da lógica e da psicologia, mas ao contrário, a partir destas disciplinas e das questões que abordam, encontrar a justificação teórica de sua pesquisa. Nosso interesse não é refazer o caminho de Husserl, nem procurar sistematizar sua análise da aritmética que decorrem de seus estudos sobre o “número”, como a única interpretação correta; pretendemos, tão somente, captar sua contribuição para o desenvolvimento de nossa temática sobre a imanência e sua caracterização como campo fenomenológico de verdades puras, que tem particularmente sua origem nestes temas.

Tal obra possibilitou, à análise husserliana, a abertura de um campo mais amplo de investigações, seja ele ligado aos objetos ideais, seja ao da precisão da relação entre ato e objeto, que acaba incidindo, pela configuração desta correlação, sobre a imanência. Isto colocará automaticamente a consciência, na base de toda investigação que envolve as análises psicológicas e fenomenológicas, constituindo-se como seu elemento originário e primordial.

      

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A relação de Husserl com o Psicologismo é longa e complexa, envolvendo posições controversas, não somente de Husserl, mas também de seus comentadores. Se todo fenômeno é um objeto psíquico, podemos reduzir a fenomenologia num psicologismo de diferentes matizes? A esta questão poderemos nos reportar ao artigo, “Algunas Consideraciones en Torno a la Distinción de Tipos de Psocologismo em Husserl”, de Porta (2010). Embora o artigo não tenha a disposição de diluir o problema, o horizonte que aponta é para esta diversidade de psicologismo que se pode resgatar nos textos de Husserl, assim como de seus limites e controversas.

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Só para citar alguns exemplos de matemáticos e lógicos, mostrando assim a afinidade de Husserl às pesquisas ligadas a este tema, estão: Locke, J. St. Mill, F. Brentano, W. R. Hamilton, F. A. Lange, Baumann, Dedekind, Cantor, Frege, Kerry, Leibniz, Lotze, Mach, Meinung, Stumpf, Schröder, Wundt e outros. Para este período, conferir Farber (1968).

O conceito de número, o vínculo entre psicologia e lógica, colocará seus trabalhos em outro patamar de investigação18. Husserl define a própria competência da lógica (formal) e da psicologia, em relação a alguns temas da aritmética, como se observa em seu comentário a Frege.

O que visa Frege, não é absolutamente uma análise lógica do conceito de número; não é de uma tal análise que ele espera uma explicação das bases da aritmética. ‘A

psicologia não deve imaginar que ela pode conduzir qualquer contribuição que seja a fundação da aritmética’. E mais, ele (Frege) não dispõe das petições categoriais

contra a pretendida usurpação da psicologia sobre nosso domínio. Vemos já onde Frege quer chegar, ‘Quanto mais os matemáticos devem recusar todo recurso da

psicologia, menos eles podem negar sua relação com a lógica’. Uma fundação da

aritmética sobre uma sequência de definições formais, de onde possam resultar todas as teorias desta ciência de uma maneira puramente silogística, eis o ideal de Frege. [...] A igualdade, a analogia, a gradação, o todo e a parte, a quantidade e a unidade, etc., são conceitos que não são absolutamente suscetíveis de uma definição lógico- formal. (HUSSERL, 1972a, pp. 144-145, tradução nossa)

Esta distinção também poderia se dar da seguinte forma: Frege, em relação ao tema, estaria mais preocupado em definir “porque” nós podemos designar as coisas por um número, enquanto Husserl, estaria mais preocupado de definir “como” podemos designar algo numericamente. Assim, Husserl, se apresentaria, enfaticamente, mais psicologista e menos logicista que seu colega.

Neste sentido, no que se refere à vida psicológica, o número é um objeto imaginário, apesar de poder estar sempre referido às coisas, seja na ciência, seja em nossa vida cotidiana. Isso porque o número pertence à chamada realidade absoluta, que paira acima das classificações factuais do mundo. O número, desta forma, nos aponta para uma primeira idealização das descrições psicológicas19. Ele está relacionado, não a conceitos, que seria da parte da lógica, mas ao ato que produz conjuntos de coisas, referido ao que seria a igualdade, a comparação, o todo, a parte, a quantidade, a unidade, descrevendo como estas elaborações numéricas se constituem psicologicamente, como define Biemel, “Para apreender a conexão

      

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Em 1887, Husserl, em sua tese de habilitação à Universidade de Halle, define já qual é sua visão de uma nova psicologia, envolvendo não só a temática do número, mas pondo a investigação psicológica em uma esfera maior de investigação, “A nova psicologia não permanece mais totalmente estrangeira a este domínio (lógica), seria este apenas para fazer um estudo separado de certas questões que ou bem tinham sido tratadas sendo confundidas com as questões metafísicas e lógicas, ou bem não tinham ainda sido destacadas suficientemente – estas são questões que levam sobre o caráter fenomenal e a origem psicológica as representações de espaço, do tempo, do número, do continuo, entre outras coisas” (1972a, p. 357, tradução nossa). 

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Assim como se refere Biemel (1959a, p. 36, tradução nossa), em “Les phases décisives dans le développement

de la philosophie de Husserl”, “O exame da noção de número se situa já numa perspectiva que começa pela

análise de um fenômeno mental originário, capaz de dar em qualquer modo a experiência mesma, disto que se poderia chamar a essência da consciência”.

coletiva em seu caráter de conexão mesma, é necessário uma reflexão sobre o ato psíquico que a produz”. (BIEMEL, 1959a, p. 38, tradução nossa).

Através do estudo da apreensão instantânea da multiplicidade, Husserl faz uma das suas primeiras formulações de ato psíquico, tema fundamental da teoria fenomenológica. Para a definição de número, o conceito de multiplicidade possui relevância, pois ele desvela certo modo específico de doação dos objetos e de sua apreensão na consciência. Por meio da multiplicidade nós realizamos, assim, um juízo.

Nós entramos numa sala plena de gente; uma simples olhada é suficiente, e nós julgamos: uma multiplicidade de gente. Nós elevamos nosso olhar em direção ao céu estrelado, e de uma simples olhada nós julgamos: muitas estrelas. A mesma coisa vale para as multiplicidades de objetos totalmente desconhecidos. (HUSSERL, 1972a, p. 240, tradução nossa)

O juízo de multiplicidade se evidencia ao fazermos primeiramente uma análise dos atos psíquicos. O estudo destes mostrará que é o ato psíquico de primeira ordem que oferece cada membro singular da totalidade oferecida. O ato psíquico de segunda ordem, que acontece quando “lançamos o olhar” sobre algo, unifica todos os atos psíquicos singulares. O fato de unificarmos vários atos psíquicos num único “ato” demonstra assim nossa capacidade de juízo

a priori20.

Essa multiplicidade de atos, unificada num olhar, será mais bem especificada posteriormente, quando Husserl a define, como componente do método fenomenológico, de intuição. Isso será necessário, pois caso contrário, cairíamos num processo inconsciente de elaboração e unificação, contrário a proposta fenomenológica. A intuição, que está na base da multiplicidade, é um processo reflexivo que se realiza no interior dos processos psíquicos21.

Conceitos como “número”, “ato psíquico”, “intuição”, entre outros, são apenas temas que serão posteriormente reformulados por Husserl, de modo a transformá-los em objetos de apreciação fenomenológica, configurados numa teia mais complexa e refinada de investigação que estarão correlacionados aos atos puros da consciência. Veremos, gradativamente, sua estruturação e configuração.

      

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A este respeito, Biemel (1959, p. 36, tradução nossa) expressa com precisão a análise husserliana do número e sua relação com a multiplicidade: “Como procede Husserl? Ele parte da definição euclidiana de número como ‘multiplicidade de unidades’. Mas ele mostra não obstante que esta definição permanece desprovida de sentido quando não pensou e analisou em si mesmo o conceito de multiplicidade. Para chegar a este conceito, não é suficiente de proceder por abstração a partir de conteúdos dados, pois tal abstração não doa jamais o conceito de multiplicidade, o qual só é percebido na operação pelo qual os elementos singulares são conexos de modo a constituir um todo. Essa conexão é um fator decisivo. Pelas conexões homogêneas nós atingimos os fenômenos decisivos da multiplicidade”.

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Em “Sur le Concepte de Nombre”, concebida em base psicológica, a definição de número é um problema de ordem filosófica não de uma disciplina exata. Ocorre, assim, uma espécie de suspensão, pela negação da natureza dos conteúdos singulares, o que seria uma forma preliminar de representação ideal destes objetos psíquicos. Como se pode notar, tanto os objetos reais ou imaginários podem ser, num conjunto visado, representações da consciência.

Todo objeto de representação seja físico ou psíquico, abstrato ou concreto, seja ele dado pela sensação ou pelo imaginário, etc., pode ser reunido a qualquer outro e não importa quantos outros num conjunto. Por exemplo: qualquer árvore determinada; o Sol, a Lua, a Terra e Marte; um sentimento, um anjo, a lua, a Itália, etc. Nesses exemplos nós podemos sempre falar de um conjunto, de uma pluralidade, de um número determinado. A natureza dos conteúdos singulares não tem aqui nenhuma importância. (HUSSERL, 1972a, p. 363, tradução nossa)

A passagem por alguns temas tratados em “Philosophie de l’Arithmétique”, permite, por meio da psicologia, traçar um primeiro esboço acerca da origem do campo da imanência nos escritos de Husserl. São temas preliminares e embrionários que oferecerão, no devido tempo, os alicerces filosóficos para o desenvolvimento de questões relevantes para a pesquisa fenomenológica22. O que por ora, é apenas o ensejo desta disciplina, tornar-se-á, oportunamente, o ponto central, de onde partirá toda investigação de rigor científico em que deseja transformar a filosofia.