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1.1. Na escola da matemática

1.1.3 O ver como momento perceptivo

A análise da constituição intuitiva exige uma aproximação do objeto no momento em que ele é intuído. Isso se faz necessário, para que a unidade perceptiva do objeto de fato se cumpra plenamente. O dado mais elementar dos sentidos, em que se pode dar uma percepção fenomênica é o ver27. Ela sintetiza, pela constituição ideal, a percepção do objeto externo e sua relação com o mundo. A partir do ver, a intuição desencadeia um processo, em que o objetivo final é a captação total da coisa percebida.

Husserl, nesse período, não havia rompido ainda totalmente com o psicologismo. Porém, aqui, o ver não se resume a um ato dos sentidos, isso tornaria todo o processo apenas uma análise de fatos, que é função das ciências da natureza, não da ciência do psíquico. O que nos interessa, a partir do ver, é como se constitui, subjetivamente, a unidade constitutiva do objeto, “Subjetivamente, não há nada mais que um continuum de intuições [...]” (HUSSERL, 1993c, p. 224, tradução nossa). Pela análise fenomenológica, neste continuum de coisas intuídas e apreendidas num olhar, se desencadeia a apropriação dos objetos pela percepção. É importante notar, porém, que há distinções do ver, em que gradações da atenção se dirigem aos objetos, que ora se fixa em alguma parte, ora perpassa superficialmente todo o objeto. Para esta distinção faz-se uso dos conceitos, respectivamente, “fazer atenção” (atentar) e “reparar”.

O ‘reparar’ não está ligado ao ‘fazer atenção’. Fazer atenção é uma maneira de estar voltado em direção ao conteúdo ao qual está fixada uma certa intenção que aspira à satisfação. Reparar, é se representar ao sentido mesmo da palavra; o simples fato de receber o conteúdo, o fato de estar-simplesmente-voltado-para ele. Se um conteúdo está presente, então nós o reparamos. (HUSSERL, 1993c, p. 226, tradução nossa)

A diferença se acentuará posteriormente, nas descrições das vivências puras da consciência. A sutileza de detalhes em que os níveis de descrições intencionais se constituem, vão das situações mais simples, como o ver-reparar, no plano genealógico, às gradações mais complexas e elevadas, que são os níveis superiores das descrições perceptivas, dados pelo ver- atentar, no plano teleológico28.

      

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Como se refere Paul Ricoeur, em nota-de-rodapé em “Idées I”, o “ver” é um momento essencial da análise fenomenológica, pois trata do momento de transição da análise da intencionalidade ao da reflexão (HUSSERL, 1950a, p. 118).

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Com relação à tradução do alemão para o francês, Jacques English, observa, em “Sur les objets intentionnels”, que, “É impossível de traduzir de uma maneira correta a oposição que Husserl estabelece aqui, como frequentemente também em outros lugares na mesma época, e como tinha tornado-se uso na Escola de Brentano, entre Bemerken et Aufmerken, que já se trata ali de uma diferença entre dois verbos muito comuns [...].

O tempo empírico, no plano psicológico da intuição, não é mais levando em conta, não assumindo qualquer importância, ou, qualquer função específica relevante para este tipo de descrição, “No entanto, nesse, o movimento temporal não assume qualquer papel, ele torna-se eliminado; ele não chega de modo algum, através de relações particulares, a atrair a atenção”, (HUSSERL, 1993c, p. 228, tradução nossa). As investigações no campo psicológico, não levam em consideração partes relativas do campo transcendente, o que será radicalizado posteriormente, a partir da redução transcendental. Aqui, temos uma primeira gênese deste longo processo, em que a temporalidade em si será objeto de investigação transcendental, não enquanto temática transcendente e real, mas por sua referência na imanência pura e ao eu puro.

A definição da intuição pela temporalidade é um dado fundamental, pois ela mostra uma primeira síntese deste processo cognitivo de apreensão das coisas pela consciência intuicional. Os vários fragmentos que compõem uma intuição particular, são sintetizados por uma intuição globalizante, que passa, destes pequenos fragmentos à nitidez do todo, o que a torna uma outra intuição, fazendo sempre conexão com a intuição anterior, num ciclo de ruptura e identificação, “[...] os estados de desenvolvimento da intuição jorram de uma maneira cíclica transbordando uma sobre as outras, mas sem nenhum ciclo fixo, sem nenhuma ordem determinada”, (HUSSERL, 1993c, p. 228, tradução nossa). Na intuição, a unidade objetiva pertence à própria essência do conteúdo imanente, sendo desprovida de qualquer referência temporal externa. Nesses escritos, Husserl apresenta uma definição pouco precisa da temporalidade, por não haver ainda tratado acerca da constituição ideal dos objetos na consciência. Isto o fará voltar, após “Logische Untersuchungen”, por necessidade de fundamentação conceitual, a definir a temporalidade numa perspectiva transcendental, concebida no interior das vivências puras29.

O que é importante frisar, em relação ao ver e a percepção, é a emergência de uma dissimetria entre os níveis de correlação intencional, que ocorrem através dos atos de consciência e seus objetos. Essa correlação se efetivará por meio de uma supremacia das vivências puras em relação a seus referentes transcendentes. Não há dúvidas de que nesses        Bemerken, é reparar, mas somente a um nível primário, quando a intencionalidade começa genealogicamente a destacar de uma ‘unidade não analisada’ de fundo [...], qualquer coisa que se põe pela primeira vez, enquanto que Aufmerken, é sem dúvida ainda ‘reparar’, mas a um nível teleológico superior, quando em um campo de objetos já todos distinguidos uns dos outros, a atenção se dirige, a um momento dado, exclusivamente sobre um dentre eles” (ENGLISH, 1993c, pp. 225-226, tradução nossa ).

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Com relação à temporalidade, teremos oportunidade de fazer alguns apontamentos no último capitulo dessa pesquisa, que se restringirá, sem maiores detalhamentos, à sua importância na fenomenologia e sua convergência sobre a temática da imanência.

escritos, pelo “a priori da correlação” e pela via intencional, as vivências já assumem, de modo mais sistemático, suas primeiras formas ideais e puras.