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3. Identificação em Lacan nos anos setenta

3.3. Os reviramentos tóricos: o “endo-psíquico”

A problemática da identificação volta a ser pauta no seminário de Lacan em 1976. Neste momento de seu ensino Lacan se mostra bastante empenhado em apreender as inversões que podem ser realizadas nos nós borromeanos tomados como toros, ou mesmo em toros simples e toros complementares. Se Lacan já havia referido tomar o nó como consistência tórica, é a partir deste seminário que fica mais evidente que a topologia dos nós de Lacan não é a mesma que a dos matemáticos e se borra ainda mais a fronteira já não muito nítida entre a distinção entre topologia das superfícies e topologia dos nós para a psicanálise.

Lacan inicia seu seminário “L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre” da seguinte forma:

Este ano, digamos que, como esse ‘não-sabido que sabe de um-engano’, eu tento introduzir alguma coisa que vá mais longe, que vá mais longe que o inconsciente: qual relação há entre o que se deve admitir que nós temos um interior que chamamos como podemos... psiquismo por exemplo, vemos mesmo Freud escrever ‘endo’, endo-psíquico. Não é óbvio que ψυχή [psuké] é endo, não é óbvio que se deva endossar este endo.. que relação há entre esse endo, esse interior, e o que chamos correntemente de identificação? É basicamente isso, sob este título que é assim feito para a ocasião, é isso que eu gostaria de colocar sob este título. Porque... é claro que a identificação é o que se cristaliza em uma identidade. (Lacan, 1976- 1977, lição de 16/11/1976, tradução do autor).

Vemos que a problemática da identificação surge no discurso de Lacan agora referida à espacialidade inerente à constituição do aparelho psíquico em Freud, colocada como questionamento da noção de interioridade. Vale mencionar que essa questão foi por diversas vezes abordada por Lacan no decorrer de seu ensino: Em seu Seminário de 1958-1959, a questão do interior-exterior é abordada por Lacan em relação à estruturação do sujeito tal como proposta por Melanie Klein, referente à passagem da posição esquizo-paranoide à posição depressiva57,

57 Cf. Lacan: “O que Melanie Klein nos propõe é uma espécie de álgebra primitiva, que vai

plenamente ao encontro, pode-se dizer, do que estamos tentando destacar sob o nome de função do significante. O que Melanie Klein, com ou sem razão, descreve, e que só nos cabe registrar, são as formas primárias, primitivas, da função do significante, esteja este efetivamente presente nessa data ou seja simplesmente uma Rück-Phantasie, fantasia, mas para trás. A partir daí, que valor irá ganhar a fase-limite entre os dois períodos, qual seja, o período paranoide, com seu ordenamento dos objetos bons, que são interiorizados, internalised, pelo sujeito, e dos maus, que são rejeitados, e o

problemática que culmina no paradoxo objeto mau interiorizado (LACAN, 2016); Em 1964, Lacan retoma esse ponto a partir da estruturação do Ich freudiano em relação ao Lust e ao Unlust58, intimamente relacionada à problemática da identificação — na medida em que os objetos do campo do “Lust têm uma relação tão profundamente narcísica com o sujeito que, no fim das contas, o mistério da pretensa regressão do amor à identificação encontra sua razão na simetria desses dois campos que Ihes designei por Lust e Lust-Ich” (LACAN, 2008b, p. 236) — e, na lição seguinte deste seminário, faz uma crítica ao uso corrente dos termos de projeção e introjeção59; Já no seminário de 1968-1969 (2008d), Lacan retoma a temática do dentro-fora em paralelo com o problema do idealismo e realismo, criticando os esquemas de representação que pressupõem um sujeito da representação interior e um real exterior, e mai uma vez refere que os termos de projeção e introjeção são insuficientes60.

No seminário de 1976-1977, tratar-se-ia de elaborar o problema em termos das relações entre continente e conteúdo — questão também abordada por Levi-Strauss, utilizando-se da garrafa de Klein — em paralelo à questão da dissimetria entre significante e significado:

período depressivo, em que intervém a noção do sujeito como um todo? Notem, com efeito, que é só a partir do momento em que o sujeito considera a si própio como um todo que ele pode ter um dentro e um fora. Somente então é concebível manifestar-se o processo de internalisation e de externalisation, de introjeção e de projeção, que, do ponto de vista de Melanie Klein, é decisivo para a estruturação do animal primitivo”. (LACAN, 2016, p. 475).

58 Cf. Lacan: “O que é Unlust, ao contrário, é o que resta inassimilável, irredutível ao princípio do

prazer. É a partir disso,Freud nos diz, que se vai constituir o não-eu. Ele se situa – notem bem – no interior do círculo do eu primitivo, pega um pedaço dele, sem que o uncionamento homeostático chegue jamais a reaborvê-lo. Vocês vêem aí a origem do que reencontraremos mais tarde na função dita do mau objeto” (LACAN, 2008b, p. 234).

59

Cf. Lacan: “Projetar e introjetar, passam, de bom grado, aos olhos de alguns, por serem dois termos reciprocos um do outro. Apontei, no entanto, há muito tempo - seria talvez conveniente aperceber-se disto - que um desses termos se refere a um campo em que domina o simbólico, e o outro ao imaginario, o que deve fazer com que, pelo menos numa certa dimensao, eles não se encontrem. O uso intuitivo desses termos, a partir do sentimento que temos de compreendê-Ios, e de compreendê- Ios de maneira isolada como desenvolvenda sua dimensao na compreensao comum, está evidentemente na fonte de todos os deslizamentos e de todas as confusões” (LACAN, 2008b, p. 237- 238).

60Cf. Lacan: “O fato de esses termos [dentro e fora] estarem presentes desde a origem no discurso

de Freud não é razão para não os interrogarmos da maneira mais rigorosa, sem o que corremos o risco de ver produzirem-se os tipos de desvios que entravam o que se poderia perceber na experiência analítica como próprio para alimentar a questão do sujeito suposto saber, ou, pelo menos, para confluir com ela. [...] Quando sabemos o uso que o analista faz atualmente, não só dia após dia, mas a cada minuto, dos termos projeção e introjeção, como não teriam esses termos, se não forem corretamente criticados, seu efeito inibidor no pensamento do próprio analista e, mais ainda, seu efeito sugestivo na intervenção interpretativa, de um modo que não há nenhum exagero em dizer que só pode ser imbecilizante?” (LACAN, 2008d, p. 274).

O interior e o exterior na ocasião — à saber: concernente ao toro — são noções de estrutura ou de forma? Tudo depende da concepção que se tem de espaço, e eu direi justamente até o ponto em que nós o apontamos como a verdade do espaço. Há certamente uma verdade do espaço que é aquela do corpo. O corpo na ocasião é qualquer coisa que não se funda a não ser sobre a verdade do espaço. É bem nisso que o tipo de dissimetria que eu coloco em evidência tem seu fundamento. Essa dissimetria se liga ao fato que eu designei do mesmo ponto de vista. É bem no que o que eu gostaria de introduzir esse ano é algo que me importa. Há uma mesma dissimetria não somente concernente ao corpo, mas concernente ao que designei ao simbólico. Há uma dissimetria entre o significante e o significado que resta enigmática. A questão que eu gostaria de fazer avançar esse ano é exatamente essa: a dissimetria do significante e do significado é da mesma natureza que aquela do continente e conteúdo, a qual é a mesma coisa que tem sua função para o corpo? Aqui importa a distinção entre a forma e a estrutura. Não é por nada que marquei aqui o que é um toro, embora sua forma não apareça. A forma seria qualquer coisa que carrega a sugestão? Esta é a questão que coloco e que coloco avançando a primazia da estrutura. (LACAN, 1976-1977, lição de 21/12/76, tradução do autor)

Vemos assim que a relação entre estrutura e corpo, conforme buscamos apresentar no primeiro capítulo da presente dissertação, continua a interrogar Lacan até os últimos anos de seu ensino. A grande questão seria, em última instância, como articular o corpo considerado como estrutura sem recair nos efeitos de sugestão colocados pela forma. Lacan então procede realizando reviramentos tóricos, inicialmente de um único toro e posteriormente como toros entrelaçados.

Figura 32: Reviramento tórico (LACAN, 1976-1977, lição de 16/11/1976).

A inversão do interior do toro em seu exterior está diretamente relacionada com a questão colocada acerca do aparelho endo-psíquico freudiano. Lacan diz que o corpo vivo para a psicanálise se organiza como um ‘trique’ composto por suas partes endo, meso e ecto.

Figura 33: “Trique” e as zonas ecto, meso e endo (LACAN, 14/12/1976)

Lacan esclarece que este procedimento trata de articular o que seria a espacialidade do corpo em sua constituição, que não seja confundida com sua forma, senão tomada em sua estrutura. O toro é escolhido como estrutura privilegiada na medida em que apresenta uma dissimetria, a qual não diria respeito somente ao corpo, mas também ao Simbólico. A questão seria saber se a dissimetria entre o significante e o significado é da mesma natureza daquela entre o que contém e o que é contido, o que teria sua função para o corpo (LACAN, s 24, 21/12/76). Esses são os termos sob os quais Lacan apresenta a questão dos reviramentos tóricos, aos quais irá relacionar às três formas de identificação:

Como — coloco a vocês a questão — como identificar, pois é distinto, como identificar: a identificação histérica, a identificação amorosa dita ao Pai e a identificação que chamarei de neutra, aquela que não é nem uma, nem outra, que é a identificação a um traço particular, a um traço que chamei — é assim que traduzi o ‘Einziger Zug’ — que chamei: ‘à não importa qual traço’? Como repartir essas três inversões de toros homogêneos de forma que sua prática e mais, que mantenha a simetria, se posso dizer, entre um toro e outro, como os repartir, como designar de forma homóloga: a identificação ‘paternal’, a identificação ‘histérica’, a identificação ’à um traço’, que são somente a mesma? (Lacan, 1976-1977, lição de 16/11/1976, tradução do autor)

Cruglac (2001) e Korman (2004) explicitam que, na lição de 16 de novembro de 1976 do seminário, Lacan realiza alguns reviramentos tóricos com toros entrelaçados e indica que seria uma via a ser desenvolvida para se articular as diferentes modalidades de identificação. Ao longo de praticamente todo o seminário 24 e em algumas lições do seminário 25, Lacan procede com operações de reviramento tórico, porém sem retornar explicitamente ao tema da identificação. Bouquier (1986) efetivamente realiza posteriormente uma relação entre alguns reviramentos tóricos e as três identificações:

Figura 34: As três identificações: Primária (Incorporação), Secundária (Identificação ao traço unário) e Histérica – Colunas da esq. para a dir. (VEGH, 1991, p. 144)

Este esquema dos reviramentos tóricos relacionados às três modalidades de identificação são apresentados nos trabalhos de Cruglac (2001), Vegh (1991) e de Korman (2004), todos citando o trabalho de Bouquier (1986).

Vappereau (1997) apresenta os seguintes procedimentos de reviramentos tóricos como equivalentes às três identificações, ainda que não desenvolva mais minuciosamente a correspondência entre o conceito e sua topologia, segundo o autor, de acordo com o que o próprio Lacan propõe.

No primeiro caso um único toro é revirado através de um furo em sua superfície:

No segundo exemplo aparecem dois toros entrelaçados, dos quais apenas um é revirado pelo mesmo procedimento empregado no caso anterior, envelopando seu par complementar.

Figura 36: Reviramento de um toro entrelaçado a outro (VAPPEREAU, 1997, p. 203-204).

No terceiro caso se inicia como que da onde se parou no segundo, com um toro envelopando outro. Ambos os toros são revirados através de um furo em suas superfícies, iniciando pelo toro exterior. Ao final o toro que se situava no interior passa ao exterior, invertendo a relação envelopado-envelopante.

Figura 37: Reviramento de dois toros, invertendo a relação envelopado-envelopante (VAPPEREAU, 1997, p. 204-206)

Nota-se que os resultados obtidos por Vappereau são os mesmos obtidos por Bouquier (1986), com a diferença de para o primeiro os reviramentos se efetuarem por furos e para o segundo por cortes. Uma única e crucial diferença relativa à marca de fechamento do corte em cada caso é apontada por Cruglac

(2001): no reviramento operado por furo a marca é reduzida a um ponto ilocalizável na superfície, já na operação realizada pelo corte resta como que uma linha da cicatriz de sua sutura, irredutível a um ponto. Essa distinção é utilizada posteriormente por Affonso (2016) como forma de pensar a sutura constituindo uma escrita, um traço indelével do corte, e será retomada nesta pesquisa.

Mais adiante, no mesmo seminário, Lacan propôs que a estrutura histérica se sustenta, em forma de “trique”, por uma armadura, a qual ele faz equivaler ao amor pelo pai. A estrutura apresentada por Lacan acerca da histérica nessa aula do seminário é uma cadeia composta por três toros, a qual é revirada através de um furo em um dos toros, fazendo com os outros dois se situem em seu interior.

Figura 38: Reviramento tórico cadeia histérica (LACAN, 14/12/1976)

Lacan posteriormente passa a pensar o reviramento operado no nó borromeano composto por três toros, a partir de um furo sobre um de seus toros. O registro que Lacan privilegia nesta mostração é o do Simbólico:

Figura 39: Reviramento do nó borromeano composto por 3 toros (LACAN, 14/12/1976)

Essa operação feita por Lacan é acompanhada de uma consideração acerca do que seria a finalidade da análise, colocando que no caso de se optar por uma orientação em que prevaleça o inconsciente, orientação equiparada ao reviramento pelo furo no Simbólico, seria posteriormente necessária uma “contra- psicanálise”, a qual, realizando novamente o mesmo procedimento de reviramento do Simbólico, restabelecesse a configuração original do nó borromeano (LACAN, 14/12/1976).

Lacan posteriormente explora mais atentamente essa configuração do nó borromeano composto por três toros, no qual um deles passa a ‘envelopar’ os demais através de seu reviramento. Um dos aspectos que ressalta é de que ao se realizar um corte concêntrico no toro envelopante a cadeia borromana se desfaz, ao passo que a realização de um corte perpendicular no mesmo toro não tem o mesmo efeito:

Figura 40: Cortes sobre o toro envelopante (LACAN, 13/12/1977)

Lacan procede em sua investigação topológica com a ajuda de Soury, passando a considerar os efeitos do reviramento em cadeias brunnianas compostas por quatro toros. A cadeia a seguir mostra o procedimento de reviramento de um dos toros da cadeia:

Figura 41: Reviramento de cadeia de quatro toros (LACAN, 13/12/1977)

Tão logo é articulado o reviramento da cadeia composta por quatro toros, Lacan passa a se colocar a questão de como se daria o mesmo procedimento aplicado a uma cadeia composta por seis toros — para a qual aparentemente não obteve nenhuma resposta.

Figura 42: Nó brunniano composto por seis elos (LACAN, 20/12/1977)

Lacan atribui um caráter metafórico às designações realizadas por este nó, pois serve para efetuar uma analogia com as oposições colocadas por Freud que ele retoma, no caso, entre Real e Realidade, para aí indicar a presença da fantasia.

Esses últimos desenvolvimentos topológicos realizados por Lacan são pouco explorados por ele em relação à clínica ou mesmo aos conceitos psicanalíticos de forma mais geral. A escolha de apresentá-los se deve menos ao propósito maior desta pesquisa acerca do substrato topológico fundamental da identificação do que de destacar as operações que caracterizam o método topológico empregado por Lacan em sua amplitude e engenhosidade. A topologia dita dos nós de Lacan não se detém na escrita dos registros e das modalidades de gozo no nó borromeano simples, ela se prolifera, seja no exame de nós mais complexos ou borrando os limites entre a topologia das superfícies e dos nós.

A nosso ver, o mais interessante acerca do procedimento de reviramento do toro é que ele realiza a mesma inversão entre as voltas da demanda e do desejo, presentes nos toros entrelaçados apresentados no seminário sobre a identificação, em um único toro, sem precisar recorrer a um toro complementar. A figura abaixo apresenta o reviramento realizado através de um furo em um toro no qual se inscreve um nó de trevo.

O reviramento realiza a inversão do número de voltas em torno dos eixos da demanda e do desejo, fazendo a passagem de três voltas em torno do furo periférico e duas em torno do furo central para duas voltas em torno do furo periférico e três em torno do furo central.

Uma via que se mostra possivelmente produtiva e que seguimos em nossa pesquisa se refere ao estudo dos resultados e implicações do procedimento de reviramento operado em superfícies multi-tóricas nas quais foram previamente mergulhados a cadeia borromeana, em uma topologia que articule os nós com as superfícies multitóricas para o desenvolvimento de uma estrutura que apreenda os nós sem recorrer à planificação e permita uma nova perspectiva sobre a economia do gozo em suas diferentes modalidades. (AFFONSO, 2016).

A seguir examinaremos a problemática colocada pela generalização do nó borromeano apresentada por Lacan em seu derradeiro ensino.