• Nenhum resultado encontrado

3. Identificação em Lacan nos anos setenta

3.2. Topologia do lapso: o sinthoma como suplência

Vimos como a topologia dos nós introduzida por Lacan no início dos anos setenta passa a desempenhar um papel articulador central em sua obra. Se até então o nó borromeano é o principal objeto topológico, seu privilégio dá lugar à investigação de cadeias compostas por quatro ou mais elos. Tudo se passa como se o nó borromeano não fosse suficiente para dar conta das relações entre as dimensões do Real, Simbólico e Imaginário, sendo necessário um quarto elo que introduza certa dissimetria, pondo fim à equivalência entre os três registros, como forma de poder identificá-los na estrutura.

55 Segue o trecho completo das citações empregadas: “A análise é isso. É a resposta a um enigma, e

uma resposta, convém inclusive dizê-Io a partir desse exemplo, completamente besta. E justamente por isso que é preciso conservar a corda. Quero dizer que corremos o risco de tartamudear, se não soubermos onde a corda termina, ou seja, no nó da não-relação sexual. O sentido resulta de um campo entre o imaginário e o simbolico, é evidente. Preciso lhes mostrar. Com certeza, aqui no centro, o pequeno a, a causa do desejo. Se pensamos que não há Outro do Outro, ou pelo menos que não há gozo desse Outro do Outro, precisamos de fato fazer em alguma parte a sutura entre esse simbolico que se estende ali, sozinho, e esse imaginário que está aqui. É uma emenda do imaginario e do saber inconsciente. Tudo isso para obter um sentido, o que é objeto da resposta do analista ao exposto, pelo analisando, ao longo de seu sintoma. Quando fazemos essa emenda, fazemos ao mesmo tempo uma outra, precisamente entre o que é simbolico e o real. Isso quer dizer que, por algum lado, ensinamos o analisante a emendar, a fazer emenda entre seu sinthoma e o real parasita do gozo. O que é característico de nossa operção, tornar esse gozo possível, é a mesma coisa que o que escreverei como gouço-sentido [j'ouis-sens]. É a mesma coisa que ouvir um sentido. É de suturas e emendas que se trata na análise. Mas convém dizer que devemos considerar as instâncias como realmente separadas. Imaginário, Simbólico e Real não se confundem. Encontrar um sentido implica saber qual é o nó, e emendá-Io bem graças a um artifício”. (LACAN, 2007, p. 70-71).

Como nos restringimos a investigar a topologia da identificação e não a totalidade dos desenvolvimentos topológicos em Lacan, o que seria demasiado complexo e requereria uma investigação que extrapola os limites desta pesquisa, iremos apenas apresentar algumas das principais articulações realizadas pelo psicanalista acerca da introdução de um quarto elo, o qual ganhará estatuto de quarto registro, junto com a tríade Real, Simbólico e Imaginário.

Estas considerações se fazem pertinentes, pois este quarto registro — inicialmente apresentado como uma nominação Real, Simbólica, ou Imaginária, a qual seria equivalente às três modalidades freudianas, Angústia, Sintoma e Inibição, respectivamente — é posteriormente designado como Sinthoma, utilizando a grafia antiga, com ‘h’, e articulado em relação à identificação e ao final de análise. O sintoma então muda de estatuto, deixando de ser pensado como envoltório formal que guarda a insistência de um desejo inconsciente não pronunciado, ou seja, como retorno do recalcado, passando a ser definido “pelo modo como cada um goza do Inconsciente, na medida que o inconsciente o determina” (LACAN, 1974-1975, 18/02/1975, p.37).

Seguindo os passos de Lacan, apresentamos a primeira cadeia borromeana de quatro elos, na qual o quarto registro seria uma Nominação com um índice Real, Simbólico ou Imaginário, dependendo de sua configuração na cadeia, formando dois pares opositivos.

Figura 28: Cadeia brunianna de quatro elos apresentada por Lacan

Já no seminário 23, “O sinthoma”, Lacan apresenta uma série de desenvolvimentos topológicos acerca da introdução de um quarto elo, justificado principalmente pela noção de lapso do nó, como suplência de uma falha na escrita do nó borromeano. O lapso do nó, ainda que empregado em seu uso mais comum da linguagem, como um erro que se produz ao escrever o nó, pode ser entendido em referência à noção de lapso destacada por Freud como um tropeço no discurso

que faz surgir o inconsciente. Simultânea à noção de lapso do nó é a inclusão de outro elo que corrige o erro cometido, um elo suplementar56 que vem compor a cadeia de forma a suprir esta falta que a desencadearia. Vale notar que com isso, Lacan introduz certa noção de causalidade calcada em uma dimensão à posteriori, ou seja, a cadeia foi escrita “errada”, de forma que não se sustenta como tal, e num segundo momento é possível — ou ainda, contingente — que haja uma correção, uma suplência que venha sustentar o nó. O quarto elo, denominado Sinthoma (Σ), como elemento que sustenta a cadeia, passa a ocupar o lugar outrora reservado ao Nome-do-Pai, que, por sua vez, teria destronado o complexo de Édipo freudiano, sendo assim reduzido à função de nominação. (LACAN, 2007)

Embora este seminário gire em torno do “caso Joyce”, nos contentaremos em sintetizar em poucas palavras que o interesse de Lacan por Joyce e suas elucubrações são feitos em torno de sua escrita peculiar, marcada pelos neologismos e expressões non-sense, o que é relacionado com aspectos conhecidos da biografia do autor, que destacam uma forma singular de relação com a linguagem, mas também com seu próprio corpo, o que irá resultar em uma revisão do estatuto do inconsciente estruturado como uma linguagem, desembocando na tese do inconsciente como à série de equívocos d’Alingua. Alingua seria a forma de transmissão da linguagem carregada de afeto, cujo protótipo é a lalação, primeira forma de comunicação entre mãe e bebê.

Em termos gerais, trata-se para Lacan da reformulação de questões fundamentais para a clínica, decorrente da importante modificação acerca da problemática da castração introduzida pelas fórmulas quânticas da sexuação, passando de uma teoria do Nome-do-Pai, ancorada no mito edipiano e no mito da horda primitiva, para uma pluralização dos nomes-do-pai, tendo importante incidência em sua consideração acerca do mecanismo central na estrutura clínica da psicose, na medida em que, se antes a foraclusão do Nome-do-Pai produzia a anulação da função fálica desencadeando a crise psicótica, caracterizada por alucinações e falas impostas, cuja estabilização se daria através da construção

56

Mantemos o adjetivo empregado por Lacan, porém, cabe ressaltar que no contexto da topologia dos nós não se evidencia a pertinência do termo. Ao que tudo indica, seu emprego se deve a ideia de que, como elo que corrige uma cadeia “mal-escrita”, por assim dizer, o sinthoma será aquilo que permite a escrita da relação sexual para um sujeito, ou seja, permitindo uma transposição da problemática do gozo feminino – o qual é pertinentemente caracterizado por ser suplementar ao gozo fálico - apresentada pelas fórmulas quânticas da sexuação para o paradigma do nó borromeano.

delirante, a partir de Joyce a foraclusão poderia de alguma forma ser compensada por suplências relacionadas a outras formas de nomeação.

Essa noção de lapso e suplência é atribuída ao sinthoma, no entanto, ora ela é realizada como introdução de um quarto elo que repara uma cadeia borromeana falhada, ora funciona como suplência de um nó, sendo diretamente relacionada à suplência da não-relação sexual. Vejamos este segundo caso, apresentado por Lacan no seminário 23, no qual ocorre um lapso, não na composição de uma cadeia, mas na composição do nó mais simples e não trivial, que é o nó de trevo.

Figura 29: Erro que se produz ao fazer o nó de trevo corrigido

Lacan destaca que é importante que o reparo seja realizado no lugar do erro de cruzamento produzido, o que resulta em uma cadeia na qual não há equivalência entre os dois componentes, ou seja, diferente do nó borromeano que permite o deslocamento entre os três componentes permanecendo o mesmo, não é possível o intercambio de posições dos componentes da cadeia.

Figura 30: Não equivalência entre os dois elos

A figura acima mostra a cadeia resultante deste procedimento e a impossibilidade de intercambio de posição dos componentes da cadeia. Lacan dirá que a não-equivalência dos componentes da cadeia indica a escrita da relação sexual, afirmando que só há relação sexual com o sinthoma. Vemos como a ideia de uma dissimetria fundamental colocada pela escrita da relação sexual é reafirmada novamente por estes desenvolvimentos.

Por mais que a correlação entre uma propriedade topológica — referente à não-equivalência entre as posições ocupadas pelos componentes na cadeia — e um axioma fundamental de seu ensino seja interessante, o uso do conceito de sinthoma aparentemente não segue um rigor lógico, referindo a diversas situações e possibilidades de suplência, algumas borromeanas, outras não, o que observamos na figura abaixo:

Figura 31: Duas formas de suplências feitas por um quarto elo

Temos que ter em consideração que as diferentes formas de suplência do nó borromeano são elaboradas por Lacan, a partir de sua interpretação da biografia e obra de Joyce, para abordar questões que mantem certa distinção entre si, algumas priorizando a suplência como estabelecimento de uma dissimetria que faz equivaler à escrita da relação sexual com o sinthoma, outras enfocando o problema de qual registro não se escreve “certo” em relação aos outros. A hipótese que desenvolveremos no capítulo cinco é de que estas dificuldades encontradas por Lacan a respeito da introdução do quarto elo e de sua posição de alguma forma privilegiada na estrutura são facilmente resolúveis através da consideração da topologia do nó borromeano mergulhado no toro triplo, a qual, mediante certas operações, permite ver que a estrutura erigida a partir do nó borromeano apresenta um quarto elemento implícito, sem a necessidade de recorrer a um quarto elo adicional, o qual ocupa um lugar privilegiado na estrutura, evidenciado justamente por sua dissimetria.

O que nos interessa mais especificamente dentro da proposta da presente pesquisa é que a questão identificação no final de análise é novamente retomada por Lacan:

Esta é uma questão de grande interesse porque resultará de algumas propostas que foram feitas, de que o final da análise seria se identificar ao analista. Para mim, não penso assim, mas ainda assim é o que o Balint sustenta, e é muito surpreendente. A que nos identificamos no fim da análise? Nós nos identificamos com seu inconsciente? Isso é o que eu não acredito. Eu não acredito nisso, porque o inconsciente resta... Digo "resta", eu não digo "resta eternamente", porque não há eternidade ... resta o Outro. É o Outro com um grande A do que se trata no inconsciente. Eu não vejo que podemos dar sentido ao inconsciente, exceto para situá-lo neste Outro, portador de significantes, que puxa as cordas do que é chamado imprudentemente... imprudentemente porque é aí que se levanta a questão do que é o sujeito desde o momento em que depende tão completamente do Outro. Então, em que consiste esta reparação que é a análise? Seria ou não seria se identificar... se identificar tomando as garantias, uma espécie de distância... se identificar com seu sintoma? Eu sugeri que o sintoma pode ser — é corrente — pode ser o parceiro sexual. Está na linha do que eu proferi... proferido sem que o faça gritar como um beligerante... é um fato, eu disse que o sintoma tomado dessa maneira é — para usar o termo conhecer — é o que conhecemos, é mesmo o que conhecemos melhor, sem que isso vá muito longe. (LACAN, 1976-1977, lição de 16/11/1976, tradução do autor)

Essas considerações levam Lacan a dizer no mesmo seminário que “saber fazer com seu sintoma, é isso o fim da análise”. (LACAN, 1976-1977, lição de 16/11/1976, tradução do autor). Vemos como o sintoma é elevado a uma condição indispensável, sendo considerado não mais apenas como um enigma que porta uma verdade ignorada pelo sujeito, mas como o que guarda uma opacidade de um saber inapreensível referente ao Outro sexo. No ano seminário seguinte, Lacan reafirma a mesma posição ao declarar que:

A análise não consiste em que sejamos liberados de nossos sinthomas... uma vez que é assim que escrevo, sinthoma... a análise consiste em saber à que estamos entravados. Isso se produz porque existe o Simbólico. O Simbólico é a linguagem: aprendemos a falar e isso deixa vestígios. Deixa traços e, como resultado, deixa consequências que não são nada mais do que o sinthoma, e a análise consiste... havendo mesmo um progresso na análise... a análise consiste em se dar conta do porquê de termos estes sinthomas, para que a análise esteja ligada ao saber. (LACAN, 1977-1978, 10/01/1978, tradução do autor).

O sinthoma resgata a dimensão irredutível de um gozo que não se esgota, o que indica precisamente que a análise não se reduz a uma terapêutica, tampouco a um fortalecimento do ego ou a uma identificação ao analista, mas convoca o sujeito a um posicionamento ético perante o impasse colocado pela impossibilidade da escrita da relação sexual.

A seguir veremos como a questão da identificação não é esgotada por Lacan, retornando como um questionamento incisivo acerca do estatuto da constituição do corpo como estrutura.