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5.1. As políticas educativas em torno da FPS desde a LBSE

5.1.2. A Lei de Bases do Sistema Educativo de 1986

A LBSE142 de 1986 constituiu o quadro de referência da reforma do sistema de ensino, dotando-o de um enquadramento que consagrou as grandes linhas de política educativa, não se tendo ficado pela mera declaração de princípios. Em 1985, Portugal entra para a Comunidade Económica Europeia, o que desencadeou inevitáveis consequências ao nível das políticas educativas, que passaram a ser enquadradas num espaço europeu mais lato (Menezes, 2003). O sistema educativo foi reorganizado à luz do contexto europeu, o qual se tornara uma realidade muito mais próxima do país (Igreja, 2004).

É com a LBSE, que a FPS passa a constituir um dos vetores educacionais, claramente expresso no conteúdo do texto legal143. Nele são consagrados cinco princípios gerais (artigo 2º), dos quais três (3, 4 e 5) enfatizam a formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários, o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, do respeito pelos outros, do espírito crítico e da capacidade e vontade para a transformação social. No artigo 3º, seis dos onze princípios organizativos realçam igualmente essa dimensão educativa.

A problemática da educação moral e cívica insere-se na da socialização e desenvolvimento social na escola. O peso da finalidade de socialização no texto da LBSE é a mais proeminente, pois metade das referências aos objetivos gerais do sistema educativo releva uma finalidade socializadora (CRSE, 1988). De facto, no artigo 7º da LBSE, nas suas 14 alíneas, a dimensão sociomoral encontra-se bastante valorizada, pois 7 dos 14 objetivos do Ensino Básico privilegiam essa preocupação formativa. Eis alguns exemplos dos objetivos do ensino básico que realçam esse domínio em particular: descoberta e desenvolvimento do sentido moral (alínea a)); proporcionar aos alunos experiências que favoreçam a sua maturidade cívica e sócio afetiva, criando neles atitudes e hábitos positivos de relação e cooperação (alínea h)); formar cidadãos civicamente responsáveis e democraticamente intervenientes na vida comunitária (alínea i)). Com esse enquadramento, surge subsequentemente a operacionalização curricular no ponto 2 do artigo 47. Estabelece-se que

os planos curriculares de ensino básico incluirão em todos os ciclos e de forma adequada uma área de formação pessoal e social, que pode ter componentes como a educação ecológica, a educação do consumidor, a educação familiar, a educação sexual, prevenção dos acidentes, a educação para a saúde e a educação para a participação nas instituições, serviços cívicos e outros do mesmo âmbito.

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A Lei de Bases do Sistema Educativo foi aprovada pela Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, e, posteriormente, alterada pelas Leis n.º 115/97, de 19 de Setembro, 49/2005, de 30 de Agosto, e 85/2009, de 27 de Agosto. Em todas as alterações introduzidas nos 3 momentos referidos (1997, 2005 e 2009), não ocorreram quaisquer modificações ao nível dos pressupostos, orientações e enquadramento da Formação Pessoal e Social, tal como foi concebida em 1986.

143 Decorrente da análise do texto da LBSE, Marques menciona que se pode verificar que “50% das grandes finalidades do

É digno de nota que o n.º 2 do art.º 47º da LBSE não constava dos projetos dos cinco partidos políticos da Assembleia da República. Essa proposta foi concebida individualmente pela professora Maria Odete Valente da Universidade de Lisboa, a qual já tinha tido um papel interventor no processo de discussão das diferentes propostas apresentadas pelos diferentes partidos, no sentido de introduzir explícita e operativamente a área da Formação Pessoal e Social no sistema de ensino português. Esse contributo resultou do seu conhecimento da experiência no Canadá (Québec144), contexto onde, desde 1972, a “Formation personnelle et sociale” se constituía como uma área composta por 5 secções, existentes na escola primária e secundária (educação para a saúde, educação sexual, educação para as relações interpessoais, educação do consumidor e educação para a vida em sociedade). Essa experiência internacional contrastava com a situação portuguesa do final da década de 80 do século XX, onde, além do desconhecimento generalizado relativo ao termo de FPS, a questão da própria educação dos valores não detinha uma adesão significativa. Não obstante, essa proposta foi acolhida por unanimidade e assim incorporou o articulado final da Lei de Bases, apenas com ligeiras alterações, nomeadamente nos exemplos indicativos relativos às temáticas possíveis, as quais tinham seguido inicialmente a experiência canadense. De facto, a inclusão da redação esclarecida, incisiva e pertinente relativa à área de Formação Pessoal e Social na Lei de Bases, como mandato inequívoco da Escola, realizada pela professora Maria Odete Valente, marcou um momento chave e decisivo, no desenvolvimento das políticas e práticas educativas que a partir desse momento se expandiram no contexto português pós 25 de Abril.

O artigo 47º da LBSE, de carácter indicativo e não exaustivo é, na nossa ótica, sensível ao aluno como pessoa no desenvolvimento nas suas múltiplas áreas (física, intelectual, emocional e moral). O ser humano é atravessado por esses eixos que ontologicamente o definem como ser ético, e por sê-lo, é pensado inserido nessa esfera ética, jamais distanciado, como alertaria Freire (1996) na Pedagogia da Autonomia. Com base no estatuído no ponto 2 desse artigo, reconhecemos três dimensões inerentes a essa eticidade, que configuram um quadro interdependente de literacias, competências, atitudes e valores. Primeiramente, reconhecemos uma dimensão Ecológica, incluindo a temática da ecologia e do consequente respeito pelo meio ambiente. Outro tópico relacionado com essa dimensão, lida com o consumismo, temática que interpela o ser humano no desafio contemporâneo de Ter em detrimento do Ser, e que realça a hierarquia do universo axiológico. A segunda dimensão é de âmbito Pessoal-Interpessoal. Nela temos as questões familiares, com todos os seus relacionamentos interpessoais eivados de valores, e a própria dinâmica educativa e hierárquica entre os membros. A área sexual, dimensão vinculativa à dignidade da pessoa humana e à existência de valores que presidem ou não a essa

faceta da vivência humana. Ainda associada a essa dimensão, a saúde, certamente também estruturada na compreensão e sensibilização de facetas que vão além da vertente técnica e informativa. A prevenção dos acidentes, é um eixo que não prescinde do respeito pelos outros e por si mesmo, a atitude e o comportamento cívico e social na circulação rodoviária assente num comportamento preventivo e de autorresponsabilização. Por último, reconhecemos uma dimensão Política, refletida na capacidade em participar nas instituições e realizar serviços cívicos: essa dimensão, além de convocar a apreensão de literacias essenciais relacionadas com o funcionamento das estruturas sociais, contempla igualmente as motivações e os propósitos dessa almejada intervenção, que em última análise não pode descurar o bem comum e a concretização da virtude cardinal - a Justiça (ver Figura 5).

Figura 5. Dimensões da Cidadania presentes no artigo 47º da LBSE

Outra forma de analisar o assunto, é ter consciência da dinâmica interdependente que cada objetivo encerra. Por exemplo145, a educação ambiental, nas diversas competências assinaladas (Pureza et al., 2001), resulta do cruzamento triplo de literacias, valores e participação, as três componentes fundamentais para uma conceção substantiva do exercício da cidadania que desenvolvemos no capítulo um. Nessa conceção, conforme poderemos ver na

145 No âmbito da Educação para a saúde, note-se a predominância quase exclusiva da área dos valores (responsabilidade, criação

de hábitos, autocrítica, resiliência): comportamentos e atitudes no âmbito da promoção da sua saúde, da dos seus pares e dos mais novos, tornando-se um agente responsável e ativo na promoção da saúde da comunidade onde está inserido; hábitos de vida saudáveis, que favoreçam a robustez física e o equilíbrio psico-emocional; capacidades de autocrítica que contribuam para melhorarem os comportamentos; capacidade de resistir à pressão que outros possam exercer para a adoção de práticas prejudiciais e autodestrutivas (por exemplo: fumar, consumir drogas, alimentação desajustada e ter um comportamento sexual de risco) (Pureza et al., 2001).

L B S E

Artigo 47º, 2 Valores, competências e literacias Dimensão Política • Participação nas instituições • Serviços cívicos Dimensão Ecológica • Ecologia • Consumismo Dimensão Pessoal- Interpessoal • Educação Familiar, Sexual • Saúde • Prevenção Acidentes

figura 6, o eixo axiológico é essencial ser endereçado, e é determinante para a consecução dos demais dois. Ora vejamos com mais detalhe.

Figura 6. A Educação Ambiental: interpelação de Literacias, Valores e Participação A FPS passa a constituir um dos vetores educacionais do sistema de ensino público português. Os valores de natureza cívica e moral (liberdade, responsabilidade, autonomia e solidariedade) encontram-se consagrados nos princípios da LBSE, nomeadamente quando se refere que a educação deve contribuir “...para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos indivíduos, incentivando a formação de cidadãos livres, responsáveis,

autónomos e solidários e valorizando a dimensão humana do trabalho” (sublinhado nosso)

(art.º 2º, n.º 4). Destaque-se ainda a alínea b) do artigo 3º, onde é mencionado que o sistema educativo organiza-se de forma a “contribuir para a realização do educando através do pleno desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania, preparando-o para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos” e a alínea c) que refere a formação cívica e moral dos alunos (sublinhado nosso). Relativamente à Educação Pré-escolar, a LBSE, refere como um dos objetivos, a necessidade de “desenvolver a

formação moral da criança e o sentido de responsabilidade, associado ao da liberdade”

(sublinhado nosso) (capítulo II, secção I, art.º 5º, alínea d)).

Conforme temos verificado, na LBSE, a promoção de cidadãos ativos e críticos, enformados por um conjunto de valores, é estabelecida como meta educacional. O artigo 47º prevê claramente a criação da área de FPS. A FPS torna-se assim um dos pilares educacionais que privilegia a dinâmica da cidadania. O corpus da LBSE (vejam-se os artigos 2º, 3º, 7º, 47º e 48º) eleva a Educação para a Cidadania a um patamar de destaque, onde é perspetivada uma

LITERACIAS • compreensão da necessidade de considerar as questões ambientais no âmbito dos processos de planeamento, ordenamento e desenvolvimento; • reconhecimento e valorização da interdependência dos factores económicos, políticos, culturais e ecológicos na afirmação de um processo de desenvolvimento sustentável; VALORES • capacidade de mudar comportamentos, atitudes e sistemas de valores, tanto a nível pessoal como social, como tradução do reconhecimento da importância do ambiente como base da subsistência própria e dos outros; • capacidade de

valorização e de responsabilização pessoal pela preservação dos bens públicos;

PARTICIPAÇÃO • capacidade de elaboração e implementação de projetos de cooperação para promoção da prevenção e resolução de problemas ambientais locais e longínquos; • capacidade de colaborar de forma ativa e responsável em ações, de iniciativa própria ou alheia, visando a defesa e melhoria do ambiente.

formação global, indutora de uma intervenção social ativa (Freire-Ribeiro, 2008c), consagrando assim uma área educacional que se tinha confinado, até então, ao currículo oculto (CNE, Parecer n.º 2/2000, 10). Nas palavras de Pedro (2002, p. 139), almeja-se que o aluno, através da Escola, possa desenvolver-se harmoniosamente, “quer horizontal quer vertical (art.º 47º, ponto 1), com base na interdisciplinaridade, através da aprendizagem de resolução de problemas suscitados pela própria vida e de um caminhar progressivo do conhecimento do eu, dos outros e do mundo”. Aquilo que a CRP, acervo baseado num conjunto de valores e princípios civilizacionais, estabelece como princípios orientadores da política educativa, é claramente expresso na Lei de Bases do Sistema Educativo. Na linha da tripla preocupação da Constituição (art.º 1º, n.º 2), a Lei educativa contribuiu desse modo para o desenvolvimento global da personalidade da pessoa e para que a sociedade beneficie de progresso social e se democratize mais plenamente.

Em síntese, à luz da conceptualização da Nova Educação do Carácter, temos algumas evidências relacionadas com a abordagem, no sentido de perspetivar-se a formação da pessoa, não negligenciando a sua dimensão moral expressa em determinados traços de carácter, evidências tangíveis de atitudes e hábitos positivos no domínio interpessoal. A LBSE não é igualmente alheia à conceção de uma cidadania interventiva, a qual, conforme defendemos nas páginas introdutórias deste trabalho, transporta uma componente moral, além de todas as demais facetas que incorporam um desenvolvimento sadio global, sustentado pelo articulado de 1986 (como por exemplo as competências de vida e os processos de desenvolvimento psicológico).

O espírito da LBSE, a Carta Magna da Educação, encara a Escola como um espaço holístico de Formação Pessoal e Social, não axiologicamente neutro. No entanto, não houve indicações claras para a criação para uma disciplina específica. Uma palavra ainda relativa à expressão formação do carácter. Encontramo-la somente uma vez (artigo 3º, b)) e não será mais explicitada e invocada nos diversos documentos ministeriais posteriores a 1986146.