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1.3. Cidadania e Carácter: é possível dissociá-los?

1.3.1. Conceptualização da Cidadania

Contrariamente a uma conceção em torno da Cidadania, que redunde exclusivamente numa literacia e participação27 política ou no serviço social voluntário (Davies, 2006; Arthur & Davies, 2006), hoje, na linha conceptual enfatizada pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (totalidade do ser e não reducionismo)28, existe um consenso alargado, nomeadamente na investigação académica recente e na tomada de posição de reconhecidas instituições, de que o cidadão não pode ser perspetivado somente através de um determinado prisma (Althof & Berkowitz, 2006; Audigier, 2000, citado em Freire-Ribeiro, 2010). Um cidadão competente, envolvido e efetivo, é alguém detentor de determinados traços que são necessários para uma participação plena no plano político, económico, social e cultural. Tal cidadania necessita de um conjunto de competências (cognitivas, processuais, éticas e de ação) que abranjam de forma equilibrada, criativa e contextualizada, os seguintes 4 domínios29: 1) conhecimento político e cívico (conceitos como a democracia, compreensão da estrutura e dos mecanismos do processo legislativo, direitos e deveres dos cidadãos, os problemas e assuntos políticos contemporâneos); 2) habilidades intelectuais (capacidade de compreender, analisar e verificar a fidedignidade da informação acerca do governo e políticas públicas sobre determinadas matérias); 3) competências sociais e de participação (capacidade de pensar, argumentar e expressar as suas opiniões nas discussões políticas; habilidades na resolução de conflitos; saber como influenciar as políticas e decisões através da petição e do lobbying, construir coligações e cooperar com organizações parceiras); e 4) possuir certos valores, atitudes e disposições geradores de motivação (interesse em assuntos políticos e sociais; sentido de responsabilidade, tolerância e reconhecimento dos seus erros; apreciação dos valores nos quais as sociedades democráticas são fundadas como a democracia, justiça social e direitos humanos). Nesta última vertente, os Direitos Humanos que compõem o eixo da adesão aos valores da democracia, sublinham na sua filosofia conceptual a dignidade de todo o ser humano, o respeito, a liberdade, a solidariedade, a tolerância, a compreensão ou a “coragem cívica”. A Declaração

27 Menezes, desde o início da década de noventa, tem desenvolvido um pertinente e amplo trabalho em torno dos processos de

socialização política ao nível da participação ativa na sociedade dos mais jovens (numa perspetiva nacional e europeia). Reconhecendo-se a necessidade da participação dos cidadãos na esfera pública, nas múltiplas esferas que vão além das associações culturais e recreativas, um dos últimos trabalhos nesse sentido indaga como os adolescentes constroem o significado de serem cidadãos, no âmbito das oportunidades de participação na família, escola e comunidade (Azevedo & Menezes, 2010).

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No relatório produzido pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, a conceptualização da Educação engloba quatro pilares, que enaltecem a totalidade do ser e contrapõem qualquer reducionismo. Dois deles estão intimamente relacionados com a FPS, ajudando-nos a focalizar e a não negligenciar determinadas dimensões humanas, a saber: aprender a viver juntos e aprender a ser, onde a compreensão do outro, a capacidade de encetar projetos comuns, gerir e dirimir potenciais conflitos, e viver autónoma e responsavelmente são consideradas metas educativas para o ser humano ao longo da formação. Nesse processo desenvolve-se de forma holística como pessoa, numa dialética constante e simbiose entre espírito e corpo, inteligência e sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal e espiritualidade (Unesco, 1996).

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Particularmente, Audigier sustentou que a Educação para a Cidadania não poderia ser insensível aos seguintes três domínios de competências, a saber: domínio cognitivo, domínio ético-afetivo e domínio social e de ação. Particularmente, no que concerne às competências ético-afetivas, estas articulam-se em torno da prática de um compromisso moral assente em valores como a liberdade, a igualdade e a solidariedade (2000, citado em Freire-Ribeiro, 2010).

Universal dos Direitos Humanos (DUDH)30, aparece “como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”, e pretende que todos os cidadãos “se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais” (para um bom enquadramento e exposição da DUDH ver Freire-Ribeiro, 2010, pp. 57-58). Estamos perante direitos que não se apelam unicamente em situações extremadas, mas reclamam-se na sua expressão quotidiana, que reconfiguram os relacionamentos interpessoais. Essa reconfiguração introduz pontos de referência que delimitam o espaço onde é legítimo coexistir a pluralidade e a expressão heterogénea da conduta e posicionamentos humanos, fazendo, inclusive, com que a tolerância seja ela própria uma virtude balizada por outros critérios normativos (Althof & Berkowitz, 2006; Audigier, 2000, citado em C. Figueiredo, 2005, p. 35; Legrand, citado em A. Fonseca, 2001, p. 53)31.

À luz desse pano de fundo, somos concordantes com vários autores portugueses (Afonso, 2010; Caetano, 2010a; Pereira, 2007; Pires, 2007; Rodrigues, 2008; Roldão, 1992, 1999), os quais têm chamado à atenção para que a Cidadania não seja perspetivada de forma minimalista. Para se ser um bom cidadão, a provisão de capacidades cognitivas e de informação, sendo claramente uma condição necessária, não se constitui como uma condição suficiente. Existe a necessidade de se contemplar a “interiorização de valores associados à liberdade individual e ao respeito pelos outros”, o desenvolvimento de “atitudes que traduzam um comportamento social esclarecido e interveniente” (Roldão, 1992, p. 105), de se atender às “disposições para agir” (Menezes, 2005, p. 18), configurando desse modo o espectro amplo da moralidade onde assenta a educação do carácter. Pires (2007), ao problematizar algumas variáveis a considerar na Educação para a Cidadania, além da tolerância, sublinhou explicitamente a formação do

30 A Declaração Universal dos Direitos Humanos emerge nos anos seguintes ao pós-guerra do conflito mundial de 1939-1945.

Volvidos 3 anos após o término da segunda grande guerra, em 1948, 148 nações aceitaram esse documento, assinalando-se assim um progresso notável e ímpar na defesa dos direitos humanos de todas as pessoas à face da terra. Mais tarde, esse movimento inaugurado levou a Comissão Europeia (1997) a reclamar para os sistemas educativos a responsabilidade de endereçar um conjunto de preocupações sociais e morais: os direitos do homem baseados na intrínseca dignidade humana, as liberdades fundamentais, a legitimidade democrática, a paz e a rejeição da violência como meio ou método; o respeito pelos outros; a solidariedade humana; o desenvolvimento equitativo; a igualdade de oportunidades; os princípios da argumentação racional: a ética da evidência e da prova; a observação do ecossistema e a responsabilidade individual. Ainda de acordo com a Declaração do Milénio (ano 2000), o desenvolvimento de um mundo melhor e mais equitativo depende de uma ação relativa à transmissão de valores aos membros das sociedades (Silva, 2012, p. 69).

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Louis Legrand (citado em A. Fonseca, 2001, p. 53) sinaliza, na mesma linha de argumentação, os seguintes eixos: a) o eixo da aquisição de conhecimentos: não se pode ser um cidadão completo sem se conhecer adequadamente o modo de funcionamento da democracia e das instituições democráticas, os processos políticos, jurídicos e financeiros inerentes a esse financiamento, os direitos, liberdades e responsabilidades, dos cidadãos e o contexto social onde se vive; b) o eixo da adesão aos valores da democracia: há que ter em conta os valores que decorrem da filosofia dos direitos do Homem, como a dignidade de todo o ser humano, o respeito, a liberdade, a solidariedade, a tolerância, a compreensão ou a coragem cívica; c) o eixo da formação de competências operatórias: ser capaz de resolver conflitos de forma não violenta, saber argumentar e defender o respetivo ponto de vista, ser capaz de interpretar os argumentos alheios, saber reconhecer e aceitar as diferenças, saber fazer escolhas, assumir as responsabilidades, estabelecer com os outros relações construtivas, desenvolver o espírito crítico e a capacidade para relativizar verdades supostamente absolutas. Recentemente, no contexto português, o conceito de cidadania foi também conceptualizado, remetendo para três dimensões: a) Cidadania enquanto princípio de legitimidade política; b) Cidadania como construção identitária; e c) Cidadania como conjunto de valores (M. Santos, 2011).

carácter, ao defender que “a formação do cidadão não se deve ficar pela transmissão de noções de valores. É necessário criar hábitos e atitudes através de experiências e práticas” (p. 33).

A cidadania democrática envolve a capacidade da pessoa se mover além dos seus próprios interesses individuais, para que possa comprometer-se com o bem comum da comunidade, onde ela se encontra inserido (citado em Althof & Berkowitz, 2006, pp. 500-501). A Cidadania é então perspetivada de forma a também incluir os valores, atitudes e comportamentos expectáveis do bom cidadão e da própria sociedade (M. Santos, 2011, p. 5). Heater (1999) sintetiza assim as diversas valências que uma pessoa deve incorporar para que, de facto, seja considerado um cidadão pleno: “a citizen is a person furnished with knowledge of public affairs, instilled with attitudes of civic virtue, and equipped with skills to participate in the political arena” (p. 336). O conceito de Cidadania possui assim um carácter multifacetado e holístico, nomeadamente o inter-relacionamento e a relevância do conhecimento cívico, das competências e das disposições (virtudes), refletindo desse modo aquilo que o Character Education Partnership designou como carácter cívico (Althof & Berkowitz, 2006). Assim, o carácter cívico resulta da interação das três componentes da Cidadania: literacia (englobando o conhecimento político e cívico e as habilidades intelectuais), participação e moralidade. Se alguma não for contemplada a Cidadania torna-se, respetivamente: uma Cidadania Alienada (não detém conhecimentos que permitam uma tangibilidade ao nível da esfera de uma participação esclarecida e produtiva), uma Cidadania de Bancada (por muito conhecimento e património cívico e moral, não entra no jogo real da vida social, perdendo aquilo que Aristóteles (Séc. IV a.C./1998) considerava a qualidade verdadeiramente característica do cidadão32 – a participação no exercício do poder público na sua pátria) e uma Cidadania Niilista (pode até mesmo ter todas as outras dimensões altamente desenvolvidas, mas carece de um núcleo axiológico que possibilite uma intervenção, além de esclarecida e efetiva, moralmente dirigida33 (ver Figura 1).

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Crick (2007) chama a atenção de que existe uma diferença entre ser um bom cidadão e um cidadão ativo. Aliás, é possível ser um bom cidadão num estado autocrático ou num estado democrático, sem contudo possuir qualquer tipo de ação juntamente com outros, em matérias que afetem as políticas públicas. É necessário ter um paradigma que não se confine à boa cidadania somente, mas que inclua a dimensão da ação. Pois, desde o tempo dos romanos e dos gregos, o conceito de cidadania significa “people acting together publicly and effectively to demonstrate common values and achieve common purposes” (p. 247).

33 Veja-se por exemplo, contemplando as preocupações e desenvolvimento da polis, como dimensão essencial da atividade

política, a cidadania ativa e participativa deve enquadrar-se numa orientação para a política, e não da política, tal como Weber (1917/2005) polarizou na sua obra.

Figura 1. A Cidadania na ausência de uma das suas dimensões34

Portanto, a Educação para a Cidadania, tal como afirma Kerr (2004), tem como coluna vertebral um núcleo essencial de “sensibilidades morais”, que possibilita a construção (ação, preservação e valorização) do respeito, da confiança, da tolerância e da autoestima. O conhecimento e competências por si só não se constituem como fatores suficientes para conduzir à prática de uma cidadania responsável e ativa. É necessário o desejo e a vontade de participar positivamente na sociedade dessa forma (Salema, 2005).

1.3.2. Cidadania e Democracia

Em segundo lugar, existe um vínculo entre a constituição moral de cada cidadão e a democracia e vivência democrática. Essa preocupação relacionada com a moralidade dos indivíduos, para que o sistema político proposto, a República, pudesse subsistir, foi manifesta desde os primeiros filósofos educacionais (Sócrates, Platão e Aristóteles). O carácter cívico ou a virtude cívica surgem assim, segundo alguns pensadores, como um vetor preponderante na composição de uma cidadania harmoniosa e consistente. Uma sociedade democrática, onde a ordem e coesão social são legitimamente almejadas, não pode descurar a predisposição individual dos seus membros.

Viver em conjunto suscita inúmeros desafios que cada pessoa tem de lidar e ultrapassar da melhor forma possível, consubstanciando desse modo uma moralidade pública. Relembramos como a polis grega cultivou conscientemente hábitos particulares entre os seus cidadãos,

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Desde o Pacto internacional sobre os direitos económicos, sociais e culturais (Nações Unidas, 1966, artigo 13), passando pelo relatório produzido pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (Unesco, 1996), até ao projeto europeu Educação para a Cidadania Democrática e para os Direitos Humanos (ECD/DH), iniciado em 1997, a ênfase tem recaído na responsabilidade de formar as novas gerações, no sentido de existirem condições para uma convivência harmoniosa conjunta (independentemente de qualquer critério étnico, social ou religioso) e para uma intervenção útil na sociedade. Aliás, este último projeto referido tem vindo a construir um quadro conceptual, expresso em convenções, declarações, recomendações políticas, trabalhos de investigação teórica e aplicada, no campo da Democracia, dos Direitos Humanos, da Cidadania, da Pedagogia e da Formação de Professores, onde a Cidadania é perspetivada como pró-ativa, ética, responsável, descolando-se assim do paradigma minimalista (Salema, 2010).

Literacia • Cidadania Alienada Participação • Cidadania de Bancada Valores • Cidadania Niilista

virtudes percecionadas pelos gregos como necessárias para a vida na cidade, para se ter uma vida civilizada (Ryan & Bohlin, 1999). A resolução de conflitos e saber lidar com a diferenciação de uma forma justa, quer numa perspetiva intergrupal quer numa ótica interpessoal, é outro dos aspetos do exercício da cidadania (Althof & Berkowitz, 2006; Johnson & Johnson, 2008). Na verdade, esses eixos foram recentemente reconhecidos pelo Citizenship Education Policy Study Project, cujo alvo foi identificar as exigências que a cidadania contemporânea iria requerer no dealbar do século XXI. As características fundamentais que um cidadão deveria ter, a bem da própria estabilidade da sociedade global, passariam incontornavelmente por assumir responsabilidade pelas suas funções e compreender, aceitar e tolerar as diferenças culturais, resolver um conflito de uma forma não violenta e respeitadora dos direitos humanos (Narvaez, 2001, pp. 4-5). Vemos assim a necessidade de contemplar os valores da responsabilidade, da tolerância e do respeito pelos outros, como acervo imprescindível à formação de uma cidadania tal que satisfaça os exigentes desafios locais, nacionais e à escala global que a contemporaneidade encerra para a humanidade. Viver juntos de forma pacífica implica a existência de um conjunto básico de valores universais, uma ética comum da humanidade em torno dos direitos do ser humano e da democracia, que os membros da comunidade reconheçam e compartilhem entre si – constituem a “alma da sua identidade coletiva”, a qual constitui o centro de gravidade da importante Educação para a Cidadania (Reis- Monteiro, 2003). É indeclinável a existência de um núcleo axiológico, onde alguns princípios universais mínimos que subjazem à generalidade das matrizes culturais e religiosas, asseguram a liberdade responsável do ser humano e proporcionam um verdadeiro diálogo intercultural (Araújo, 2005; Carneiro, 1999). Um regime democrático carece de uma intervenção ao nível educativo, não somente devido aos problemas de indisciplina e violência social e escolar, mas também pelo recrudescimento da intolerância e da xenofobia, pelo declínio dos valores e da autoridade tradicionais, pela descrença no primado do Direito, e pelos novos problemas éticos emergentes do progresso científico-tecnológico, designadamente no campo das ciências da vida (Reis-Monteiro, 2003). No contexto português, Nata e Menezes (2010), enfatizam essa condição ao nível transpessoal em sociedades heterogéneas, quando sustentam:

A qualidade das nossas democracias depende quer do sistema político em si, quer das ‘virtudes’ dos seus cidadãos. Entre outras, a democracia necessita de cidadãos que participem na vida política e cívica, e que, simultaneamente, tolerem e aceitem a participação e identidade de outros, particularmente quando estes outros pensam de forma distinta da sua e são diferentes de si (p. 3397).

O filósofo educacional Covaleskie (1999) argumenta ainda que sem essa condição, dos cidadãos se apropriarem de um conjunto de disposições morais, a alternativa em zelar pela

manutenção da ordem social seria um sistema que colocaria em causa a própria democracia. O seu pensamento é refletido assim:

In a democratic society, character does matter. For democracy to work, the citizens must have a settled predisposition to do the right thing far more often than not. For social order to obtain, either this must be true or the citizenry must be subject to such pervasive surveillance and regulation that their behavior is controlled despite the lack of this predisposition. No society in which supervision is the means of social control can lay legitimate claim to be democratic. Democracy requires citizens who are, literally, self- governing. Therefore, character formation — the fostering of virtue — is the critical role of education in any society, but perhaps never more than in a society that would be democratic (p. 181).

Apesar das divergências em torno do conceito da cidadania, tem-se chegado presentemente a um consenso relativamente à convicção de que a estabilidade das democracias, o desenvolvimento das sociedades inspiradas e baseadas nos Direitos Humanos e a resposta aos novos reptos do contexto pós-moderno, não somente dependem da organização do Estado, mas também da virtude individual dos seus cidadãos e das suas atitudes de diálogo, de respeito, de participação e de responsabilidade (González, citado em Valenzuela, 2011, p. 44). A Escola torna-se assim, como agente de socialização, não esquecendo o seu protagonismo contemporâneo, uma oficina de cidadania, assumindo-se como uma das componentes importantes na estruturação do alicerce do sistema democrático.

1.3.3. Considerações finais

Portanto, chegados a este momento, reiteramos que o conceito da Cidadania, perspetivado nas suas múltiplas facetas e nas suas implicações, requer que a dimensão moral esteja presente, particularmente no seio de uma democracia, pois esta terá implicações na harmonia e coesão social. A democracia necessita, para subsistir, mais do que qualquer outro sistema político, da motivação para ser virtuoso, da partilha de valores e objetivos similares. A cidadania ativa e efetiva encerra e requer em termos da necessidade de existir, como condição prévia, a formação de valores operativos35, sob pena de ser apenas um simulacro, uma intenção que reside somente na esfera do currículo pretendido. Como Silva (2012) sustenta, “a cidadania só se completa se também lhe for associada a visão dos valores e da moral” (p. 69).

Assim, educar para a cidadania é perspetivado como um projeto que visa instilar determinadas virtudes, para que se tornem princípios interiorizados responsáveis de um processo de decisão e comportamento dos alunos numa sociedade regida por uma matriz democrática. A responsabilidade moral e social é considerada essencial e condição necessária para que as

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Esse foi também o entendimento da sociedade inglesa que determinou que a Educação para a Cidadania se tornasse uma disciplina obrigatória, onde sobressai claramente o conceito de educação com carácter. Pela primeira vez em 50 anos, é inequivocamente salientado e sustentado o relacionamento íntimo entre carácter e Educação para a Cidadania (Arthur, 2003a; ver Arthur, 2003b, 2003c, 2005, para a evolução da Educação do Carácter no Reino Unido no contexto educacional).

demais componentes que lidam com a literacia política e a participação ativa possam ser realmente concretizadas (Kerr, 2003; Kiwan, 2005).

E, se a cidadania requerer pelo menos uma certa forma de carácter, designando-se virtude cívica ou carácter cívico ou democrático, então a Educação para a Cidadania deverá incorporar as conceções relevantes do carácter e as práticas da educação do carácter (Althof & Berkowitz, 2006, p. 511)36. Não nos parece então forçado em afirmar que a Educação para a Cidadania realmente carece de um fundamento baseado numa educação do carácter, como se de uma pré-condição se tratasse (“a precondition of good citizenry is a virtuously ordered character” (Carr, 2006, p. 453))37. À luz do que foi dito, não faz sentido uma conceção minimalista da Educação para a Cidadania, reduzindo-a somente à provisão de informação e ao desenvolvimento de competências, sem levar em consideração, com a mesma preocupação, o eixo da moralidade e da formação do carácter. Conforme hoje a designação no contexto educativo português estabelece, além de se ensinar sobre a cidadania e através da cidadania, é necessário educar para a Cidadania.

1.4. Síntese do capítulo

A triangulação38 contemporânea Família-Escola-Media, induz à instituição Escola responsabilidades acrescidas na educação para os valores. No plano teórico, a NEC surge como uma metodologia necessária que promove, além da plataforma cognitiva, a imaginação moral e a preocupação na conduta baseada em valores centrais à vida em sociedade, honrando uma efetiva e compreensiva abordagem à formação holística do aluno. No plano normativo, está explicitado um processo legítimo de interiorização de valores, da formação do carácter baseado também em experiências, que promova um clima escolar sadio e harmonioso. A atmosfera cívica escolar de um número crescente de escolas oficiais do Ensino Básico, leva-nos a reconhecer que o desenvolvimento moral dos alunos através da formação do carácter é algo que merece ser considerado, como meio de combate e de prevenção, até pela reivindicação que assume de ser uma metodologia eficaz. A teoria do desenvolvimento curricular reconhece a análise das necessidades sociais como uma das suas fontes privilegiadas, aspeto saliente na própria LBSE, que secunda esse postulado, quando menciona que “o sistema educativo

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De facto, existe uma conexão forte, mas somente se perspetivas e comparações abrangentes estejam a ser usadas (Davies et