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5.1. As políticas educativas em torno da FPS desde a LBSE

5.1.3. A Organização Curricular do Ensino Básico e Secundário de 1989

De acordo com o previsto no artigo 59º da LBSE, o governo desencadeia um amplo debate em torno da configuração do sistema de ensino, no que concerne à sua organização curricular. Assim, no seguimento da proposta da Comissão da Reforma147 do Sistema Educativo

146 Não obstante, as atitudes a promover na disciplina de DPS (1º ciclo) não somente se relacionam com os traços de carácter que

este trabalho tem focado, sustentando desse modo uma perspetiva moral aos objetivos da disciplina, mas também invoca o carácter: sentido de ser responsável, o sentido da responsabilidade moral e do carácter, o respeito pelos outros (pelas suas ideias, culturas e projetos de existência), reconhecimento à diferença, abertura ao diálogo e à livre troca de opiniões, cooperação e solidariedade, sentido de responsabilidade social e cívica (Menezes, 1998, p. 175).

147 A Comissão de Reforma do Sistema Educativo foi “um dos mais amplos movimentos de reforma do sistema educativo

português ocorrido no século XX” (Igreja, 2004, p. 188), que abrangeu toda a sociedade civil e as instituições vinculadas ao fenómeno educativo. O corolário foi um massivo documento de 700 páginas, Proposta Global de Reforma – Relatório Final,

(CRSE), do Grupo Fraústo148, dos pareceres da Comissão Episcopal da Educação Cristã e do Conselho Nacional de Educação, foi publicado, depois de um intenso debate, o DL (Decreto- Lei) n.º 286/89, de 29 de Agosto, onde estabeleceu-se a organização dos planos curriculares do ensino básico e secundário (Campos, 1992, 1997; Igreja, 2004).

As intenções preconizadas pela LBSE concretizaram-se objetivamente nos novos planos curriculares do ensino básico e secundário no final da década de oitenta, três anos depois da aprovação da Lei de Bases. Nessa reestruturação curricular foi estabelecido que

todas as componentes curriculares dos Ensinos Básico e Secundário deverão contribuir de forma sistemática para a formação pessoal e social dos educandos, favorecendo, de acordo com as várias fases de desenvolvimento, a aquisição de espírito crítico e a interiorização de valores espirituais, estéticos, morais e cívicos (sublinhado nosso) (DLn.º 286/89).

De acordo com o Decreto, a FPS era instituída como: a) temática transdisciplinar para ser endereçada em todas as disciplinas, disseminando desse modo a FPS pelo currículo; b) como objeto de um projeto multidisciplinar, potenciando uma área curricular não disciplinar (Área Escola); c) como uma disciplina específica (Desenvolvimento Pessoal e Social149), assegurando desse modo a FPS, onde se iria concretizar de modo especial as matérias enunciadas no n.º 2 do artigo 47º da Lei de Bases do Sistema Educativo.

Era criada assim uma área curricular de natureza disciplinar, que funcionaria contudo como alternativa à disciplina de Educação Moral Religiosa (Igreja, 2004; Menezes, 2003). Registe-se ainda que, além das estratégias, transdisciplinar, multidisciplinar e disciplinar em termos das vertentes consagradas em 1989, surge no ano seguinte uma estratégia de complemento curricular. As atividades de complemento curricular também deveriam concorrer para a consecução dos objetivos da FPS (Despacho 141/ME/90, de 17 de Agosto) (Menezes, 1999).

Contrariamente ao posicionamento cético de Tavares (1999, p. 88), acusando a reforma de ser globalmente uma operação de cosmética, e à crítica ao nível da substância e da semântica feita por Patrício (1997, p. 33) em relação ao DPS150, com o DL n.º 286/89 existe uma evolução em relação à LBSE, pois inicialmente esta tinha somente referido, em termos gerais a existência entregue ao governo em Julho de 1988. Segundo Marques (1999), foi um trabalho ímpar cuja pertinência ainda perdura no âmbito da reforma educativa.

148 Segundo Menezes (1998, p. 157), o Grupo Fraústo propôs a abordagem da educação cívica através da infusão disciplinar e da

intervenção no currículo oculto, rejeitando a criação de uma disciplina específica.

149 Aquando da aprovação em Conselho de Ministros, a disciplina designava-se Educação Cívica. Depois, devido a dúvidas

suscitadas pela Presidência da República, na promulgação em Diário da República do DL, a designação passa a Desenvolvimento Pessoal e Social (Campos, 1997). O programa para a disciplina de DPS propunha a promoção nos alunos “da apreciação dos valores da identidade nacional”, do “respeito pelos outros”, do “reconhecimento das diferenças”, da “abertura às culturas de diferentes povos” (Judite Fonseca, 2009).

150 Por um lado, considerou a disciplina de DPS como “inteiramente desnecessária” (p. 33), pois os programas continham

rubricas de outras disciplinas. Por outro lado, sustentou que designação era filosoficamente inaceitável, pois o desenvolvimento pessoal abrange a vertente social. Certamente, o professor eborense defende a tese aristotélica onde o ser humano, animal social por natureza, não pode ser concebido fora de uma teia de relações com os outros; se assim não for, ou é um deus ou um bruto (Aristóteles, Séc. IV a.C./1998, 1253a).

da FPS para o Ensino Básico. O enquadramento ulterior, por seu turno, além de abranger os alunos do ensino secundário, cria especificamente a Área-Escola e a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social como indutores privilegiados da FPS. Com uma formação percorrendo horizontal e verticalmente todo o currículo, estavam assim criadas as condições para que, na convicção de alguns, se perspetivasse um sucesso garantido em relação à meta educacional formativa da instituição Escola (CNE, Parecer n.º 1/1998, 1).

A disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social (DPS), prevista no n.º 2 do artigo 7º, surge como um dos pináculos da organização curricular, apesar da discordância manifesta entre alguns investigadores, como já mencionámos. Constituía-se assim um espaço curricular disciplinar específico, traduzindo desse modo, no plano curricular, as preocupações expressa na LBSE no domínio da FPS. A implementação da decisão de 1989 iniciou-se experimentalmente em 1991 num número reduzido de escolas. É digno de nota mencionar que, somente em 1995 (seis anos depois) o Ministério Educação aprovou as linhas programáticas oficiais da disciplina de DPS, para o 3º ciclo do ensino básico (a elaboração dos programas ficou atribuído ao Instituto de Inovação Educacional) (Menezes, 2003). Assim, os demais ciclos de estudo não foram formalmente contemplados, revelando uma ausência de investimento que seria necessário e esperado, não somente por parte da esfera política, mas também da própria comunidade científica e da própria comunidade escolar (Freire-Ribeiro, 2008c). Além da não intervenção no secundário, outro eixo inibidor foi a residual formação específica de docentes151, permitindo poucas escolas oferecerem a disciplina (em 1996/97 somente 1% dos alunos do ensino básico beneficiaram da disciplina) (Afonso, 2004; ver Menezes, Xavier & Cibele, 1997). Inevitavelmente, o balanço efetuado expressou esses condicionamentos estruturais.

Assumiram-se “os equívocos, contradições e falhanços” da disciplina de DPS (CNE, Parecer n.º 1/1998, 3), nomeadamente o facto do funcionamento alternativo à EMR, “não potenciou a lecionação da disciplina para a qual não foram formados os professores” (Pacheco, 2000, p. 112). O DPS foi assim considerado “uma espécie de nado morto no seio da reforma” (Igreja, 2004, p. 217), gerando desse modo “um sentimento geral de inconsecussão” (CNE, Parecer n.º 4/1994)152.

No que respeita às duas outras valências possíveis (formação transdisciplinar e Área Escola), alunos, professores e instituições de formação de docentes, reconheceram que no plano

151 Apesar do Despacho 171/ME/93 ter configurado o modelo de formação para os docentes de DPS, somente um pequeno grupo

de profissionais beneficiou de tal formação complementar. As ações de formação, no plano da formação contínua, escassearam (Freire-Ribeiro, 2008a). Depois desse Despacho, volvidos dois anos, surge o Despacho n.º 25/ME/95 que revogou o anterior, com o intuito de serem criadas condições que fomentassem uma oferta maior da disciplina de DPS. Todavia, o CNE reconheceu que, apesar desse esforço legislativo, tal intento não foi conseguido (CNE, Parecer n.º 2/2000, II, 11).

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A investigação de doutoramento de Menezes (1998), com base em dois estudos de caso, um dos quais procedeu à experimentação de DPS no ano letivo de 1991-92, revelou “a aparente incapacidade da disciplina específica para produzir mudança no desenvolvimento psicológico dos alunos, tanto quando se consideram dimensões centrais e periféricas do sistema pessoal, como quando se atendem às perceções da orientação para a rede e do clima psicossocial da sala de aula” (p. 393).

prático a FPS esteve quase ausente (ver Menezes, Xavier & Cibele, 1997). A transdisciplinaridade “ficou no plano das intenções” (Pacheco, 2000, p. 112). A Área-Escola não foi operacionalizada na generalidade dos estabelecimentos de ensino, “contribuindo assim para a sua fracassada missão” (Freire-Ribeiro, 2008c), tornando-se assim a maior desilusão da Reforma Curricular, tendo em consideração a novidade que constituía (Campos, 1997). De facto, todas as estratégias que a legislação tinha consagrado, na maioria das escolas, não “passaram do papel” e não suplantaram a invisibilidade (Bento, 2000, p. 256; Campos, 1997, p. 104). Apesar de terem existido aspetos positivos decorrentes da tentativa de implementação e desenvolvimento da FPS (e.g., Cadima, 1993; C. Figueiredo, 2000; Ramalho153, 1992, citado em Menezes, 1998, p. 184), globalmente “não tinha constituído um êxito na vida das escolas e uma mais-valia fundamental na formação das crianças e dos jovens” (C. Figueiredo, 2005, p. 23). Duas décadas volvidas após a publicação da LBSE, o Conselho Nacional de Educação (CNE) reconhecia que era ainda necessário “definir com precisão os objetivos de um programa de educação para a cidadania que pudesse ser generalizado e concretizado em todo o 3º ciclo do ensino básico, de forma efetiva e consequente” (CNE, Parecer n.º 1/1998).

Em suma, podemos afirmar que a área de FPS não foi globalmente implementada, tornando parcos os reflexos práticos no sistema educativo até 2000 (CNE, Parecer n.º 2/2000). Portanto, 14 anos após a publicação da LBSE, após a Reforma do Sistema Educativo de 1989 e subsequentes normativos, que destacou a educação integral dos alunos como objetivo estratégico do projeto pedagógico da instituição Escola, era diagnosticado um “bloqueio” na escola pública portuguesa no que concerne à FPS (CNE, Parecer n.º 2/2000, II, 12). Decorrente da nossa análise, não encontrámos evidências e argumentos suficientes, que nos levassem a discordar desse diagnóstico negativo, emitido em 2000 pelo Conselho Nacional de Educação.